TPI CONDENA PUTIN POR DEPORTAÇÃO DE CRIANÇAS

 

Elaine Senise Barbosa

27 de março de 2023

 

Há dez dias, em 17 de março, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu ordem de prisão contra o presidente russo Vladimir Putin e uma subordinada direta, Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Comissária dos Direitos da Criança. Ambos são acusados pelo “crime de guerra de deportação ilegal” de milhares de crianças e adolescentes para a Rússia ou para áreas ucranianas ocupadas por tropas russas.

Putin e Belova

Putin e Belova: criminosos de guerra

Boa parte desses menores vivia no leste do país, em cidades como Kershon e Luhansk, área que os russos buscam controlar desde 2014 e que sofreram intensos bombardeios durante a invasão russa iniciada em 2022. As “deportações ilegais” podem, inclusive, gerar futuras acusações de tentativa de genocídio ou etnocídio, pois a retirada de crianças de um grupo nacional para ser criada por outro configura “matar o futuro” de um povo. Essa é a linha argumentativa do governo ucraniano.   

Já o Kremlin alega que os ucranianos são russos; logo, as crianças seriam russas e, portanto, caberia à “grande pátria russa” salvá-los dos demônios nazistas que tomaram conta da Ucrânia. Lembremos que esse foi o argumento usado inicialmente para justificar a guerra imperial russa. A Comissária dos Direitos da Criança chegou a declarar, em tom festivo, que o exército de Putin “salvou” as crianças do conflito e se empenhava para reuni-las novamente às suas famílias…

O promotor do TPI responsável pela acusação, Karim Khan, declarou: “Devemos garantir que os responsáveis ​​por supostos crimes sejam responsabilizados e que as crianças sejam devolvidas às suas famílias e comunidades… Não podemos permitir que crianças sejam tratadas como espólios de guerra.”

 

As provas

Os ucranianos acusam os russos de retirarem as crianças de seus pais desde o início do conflito, em fevereiro do ano passado. De acordo com o direito humanitário internacional, nenhuma parte de um conflito pode enviar menores de idade para outro país, exceto de forma momentânea por razões imperativas de saúde ou segurança.

Porém, quando se trata das regras do TPI, também chamado de Tribunal de Haia por estar sediado na cidade de mesmo nome, na Holanda, é essencial comprovar a cadeia de comando de onde partiu a ordem que caracteriza uma violação das leis de guerra. Essa regra é fundamental e tem por objetivo impedir que os soldados ou pessoas diretamente envolvidas com os crimes possam ser absolvidas alegando “cumprirem ordens”. Desde a assinatura do Estatuto de Roma, em 1998, ponto de partida para a criação do TPI, o foco está em punir as autoridades responsáveis por tais decisões.  

Nesse caso, a prova é um decreto assinado pelo presidente russo em maio de 2022, para simplificar os procedimentos burocráticos que permitem conceder cidadania russa a “órfãos” ucranianos. No mês passado, a própria Maria Lvova-Belova, em um programa da televisão russa, agradeceu a Putin por ele haver “adotado” um menino de 15 anos trazido de Mariupol, cidade do sul ucraniano ocupada pelas forças russas no início da guerra.

 Na semana passada, em 22 de março, a ONG Save Ukraine conseguiu repatriar o primeiro grupo de crianças e adolescentes (17 ao todo) e devolvê-los aos seus pais. Para a responsável pela operação, a jurista Miroslava Kharchenko, as autoridades russas usaram de “intimidação, manipulação e chantagem” para convencerem os pais a aceitarem que seus filhos fossem levados.

Crianças ucranianas em creche

Os “órfãos” que não são órfãos

 

Os menores negam terem sofrido maus-tratos, mas relataram episódios de doutrinação. “Se você não cantava o hino nacional russo, te obrigavam a escrever notas explicativas”, conta Taisia Volinska, de 15 anos, natural de Kherson.

Existem outras acusações – e provas – de crimes de guerra cometidos pelas forças invasoras, como a execução sumária de civis, tortura e bombardeio indiscriminado a alvos civis. O TPI e o governo da Ucrânia, que não integra a corte, acabam de assinar acordo para instalar um escritório da instituição no país, a fim de aprofundar a investigação dos crimes.

 

As consequências

A primeira reação à ordem de prisão deu-se três dias após seu anúncio: o Comitê Investigativo da Rússia abriu processos contra juízes e promotores do TPI. Já o ex-presidente russo Dimitri Medvedev, atualmente operando como “cachorro louco” da direita ultranacionalista, alertou aos juízes da corte internacional para “observarem os céus com cuidado” – se bem que, tratando-se de Putin, é melhor cuidarem do que comem e bebem, porque envenenamentos misteriosos fazem mais o perfil do autocrata russo.

Para Moscou, as acusações feitas pelo Tribunal de Haia não têm fundamento legal. É que, de acordo com a sua interpretação da Convenção sobre Prevenção e Punição de Crimes Contra Pessoas que Gozam de Proteção Internacional, criada em 1973, chefes de Estado têm imunidade absoluta em relação à jurisdição de outros países.

Plenário do TPI

Plenário do Tribunal de Haia, responsável pela primeira condenação internacional de Vladimir Putin

 

Mais relevante é o fato de as decisões do TPI só terem validade para os 123 países que aderiram espontaneamente ao Estatuto de Roma e ao TPI. Entre eles, não se encontram potências como EUA, Rússia, China e Índia, o que é um elemento de fragilidade jurisdicional do tribunal. Isso significa que a probabilidade de Putin ir a julgamento é mínima, inclusive porque as regras impedem o tribunal de ouvir e julgar casos à revelia, ou seja, quando o réu está ausente.

Na prática, portanto, a condenação não resultará na prisão do autocrata russo, ao menos em futuro previsível. Mas ela não deve ser qualificada como simbólica, pois implica imenso custo político. Amplia o isolamento internacional da Rússia e restringe a liberdade de movimentos de seu chefe de Estado, pois existe o risco teórico de execução da ordem de prisão na hipótese de entrada em algum dos países signatários do TPI.  Alguns analistas também consideram que a decisão pode enfraquecer Putin internamente, sobretudo dependendo dos reveses que o país vier a sofrer nos próximos meses da guerra.

 

Pisando em ovos

A próxima reunião de cúpula dos BRICS (grupo composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) está prevista para agosto, na África do Sul. O país faz parte do TPI e, embora seu governo mantenha relações estreitas com a Rússia, inclusive negando-se a condenar a invasão da Ucrânia, teria a obrigação de executar a ordem de prisão. No momento, o Kremlin não confirma a presença de Putin na reunião e especula-se que tentaria mudar o local do evento. O mundo ficou menor para o presidente russo.

A condenação do mandatário russo cria também maiores dificuldades para o governo brasileiro e o Ministério das Relações Exteriores. Lula gosta de criar falsas simetrias entre Moscou e Kiev, imaginando que isso o credenciaria a operar como mediador de um acordo de paz. Está prevista, para abril, uma visita do chanceler russo Sergei Lavrov ao Brasil. A decisão do TPI gera incertezas sobre a visita, que provocaria forte constrangimento interno e internacional para o governo brasileiro.

E para quem insiste que a condenação de Putin não trará consequências relevantes, é bom lembrar que uma parte essencial da matéria sobre a qual operam os políticos pertence ao campo dos símbolos. E isso vale tanto para o acusado quanto para aqueles que com ele confraternizarem.

 

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