O SILÊNCIO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA

 

 

Elaine Senise Barbosa

19 de fevereiro de 2024

 

Há quatro dias, em 16 de fevereiro, Alexei Navalny, o principal opositor de Vladimir Putin, morreu sob custódia do Estado em uma prisão de segurança máxima chamada Lobo Polar, na Sibéria, onde as temperaturas chegam a 20 graus centígrados negativos. Após o envenenamento em 2020, a volta para a Rússia, o novo julgamento com aumento da pena para 30 anos por acusações por corrupção, perturbação da ordem, o desaparecimento e o reaparecimento na Sibéria, a greve de fome, um suposto “mal súbito” provocou sua morte. O corpo ainda não foi entregue à família, permanecendo sob responsabilidade do Estado. Oxalá ele seja melhor cuidado que o corpo vivo.

Maria Corina

María Corina Machado, a principal candidata da oposição venezuelana, está fora do páreo por 15 anos

Apoiadores de Navalny deixaram flores num monumento em homenagem às vítimas do Gulag, o sistema de prisões de Stalin, e várias foram presas. A reação externa foi comum no sentido de responsabilizar o governo russo, se não pela morte, pela apresentação do corpo e pelo respeito ao direito dos familiares de o enterrarem.

Na Alemanha, onde os governos têm travado batalhas internas para conter o crescimento da extrema-direita, foram imediatas e firmes as respostas: a responsabilidade cabe totalmente a Vladimir Putin. O governo brasileiro nada disse de imediato, pois Lula só tem voz para denunciar a violência de Israel contra os palestinos (o que é correto), complementadas por abomináveis comparações de natureza antissemita entre o Estado judeu e a Alemanha nazista.

Uma semana antes da morte de Navalny, na Venezuela, o regime chavista prendeu a advogada e ativista Rocío San Miguel, junto com membros de sua família quando eles estavam no aeroporto para fazer uma viagem ao exterior. Rocío integra uma lista de pessoas presas ou procuradas sob a acusação fantasiosa de conspirarem para assassinar o ditador Nicolás Maduro e desestabilizar o país.

Quase simultaneamente, a principal rival de Maduro nas eleições, María Corina Machado, foi condenada e proibida de disputar eleição durante pelos próximos 15 anos. Os governos da Argentina, Paraguai, Uruguai, Equador protestaram e manifestaram grande preocupação. O Itamaraty nada disse. Celso Amorim, assessor internacional de Lula, não achou que o tema valia uma viagem à Caracas.

Custa crer que Lula, tão hábil em perceber o que lhe favorece mais politicamente, acredite que manter esse tipo de apoio a velhos aliados ideológicos não trará grandes danos à imagem que pretende construir, de hábil negociador. Por hora a política externa brasileira só “retomou o protagonismo internacional”, como muitos gostam de dizer, no quesito “um peso, duas medidas”.

 

Morto, finalmente  

Navalny & Yulia

Alexei Navalny e sua esposa Yulia

Navalny estava preso na colônia penal do Ártico considerada uma das mais duras da Rússia. De acordo com os agentes penitenciários locais, o prisioneiro “não se sentiu bem” durante uma breve caminhada, desmaiou e morreu.  Contudo, dois dias antes Navalny apareceu em perfeito estado de saúde durante uma audiência por vídeo com um juiz.

As autoridades russas afirmam que todos os socorros foram rapidamente prestados e houve tentativa de reanimá-lo por mais de trinta minutos. Nenhuma fonte independente confirma essa informação. 

A mãe de Navalny, Ludmila, esteve na prisão Lobo Polar no sábado e ouviu que seu filho teve “síndrome da morte súbita”, o que pode significar muitas coisas do ponto de vista médico. Ao tentarem recuperar o corpo, a mãe e a advogada que a acompanhava foram dirigidas ao necrotério local.

Chegando lá, tudo estava fechado e depois veio a informação negando a presença do corpo. Horas depois, as autoridades anunciaram que o corpo não será liberado enquanto as investigações não forem concluídas. Serão, algum dia? Qual é o valor da palavra de funcionários estatais da ditadura russa?

Manifestações realizadas por centenas de apoiadores de Navalny no sábado, 17, em diversas cidades russas terminaram com muitos presos. De fato, desde o início da invasão da Ucrânia, estão proibidas manifestações públicas.

 

Eleição como farsa

Na Venezuela, cujo regime é apoiado em qualquer circunstância pelos governos petistas, a ditadura chavista conta com o apoio de um Judiciário já depurado e passou as duas últimas semanas pondo em marcha a narrativa sobre a descoberta da enésima suposta conspiração apoiada pela CIA. No 15 de janeiro, Maduro anunciou a existência desses planos malévolos no Parlamento; no 21, o procurador-geral Tarek Willian Saab acusou onze pessoas de participarem da alegada trama e anunciou ordem de prisão imediata.

RocioSanMiguel

A presa política, advogada e ativista Rocío San Miguel

Um dos principais alvos do governo era Rocío San Miguel, detida no aeroporto em 10 de fevereiro. A advogada tem a seu favor medidas cautelares concedidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) desde 2018, quando ela se tornou alvo do regime. Agora a Anistia Internacional e o Centro de Justiça e Paz (Cepaz) pediram a “libertação imediata e incondicional” da ativista e, nesse momento, desaparecida política.

Como as últimas eleições no país sofreram forte contestação, em 17 de outubro de 2023, o governo venezuelano e membros da oposição, em negociações mediadas pela Noruega, assinaram o Acordo de Barbados, que estabelece condições para a realização de eleições livres e justas na Venezuela ainda em 2024.

Nos termos do acordo, o governo admitiu rever as inelegibilidades a cargos públicos e se comprometeu a não prender opositores. Em troca, os EUA suspenderiam sanções que pesam sobre a combalida economia venezuelana. Rússia, Holanda, Colômbia, México, Estados Unidos, Brasil e Barbados também firmaram o acordo.

Após a prisão de Rocío San Miguel, o Parlamento Europeu comunicou ao governo de Caracas que não reconhecerá o resultado das eleições se Corina Machado não puder participar. “Se todos os pontos do acordo de Barbados fossem respeitados, as eleições de 2024 na Venezuela poderiam marcar um ponto de viragem para passar de uma autocracia corrupta para um regresso à democracia”, destacou o Parlamento em um comunicado.

Contudo, de acordo com o procurador-geral da Venezuela: “Haverá novas prisões porque há grupos que se autodenominam políticos da oposição, mas pertencem à pior ‘extrema direita nazifascista’ de todo o hemisfério ocidental […]. Essa oposição nem sequer é política, é terrorista”, disse Saab. As palavras empregadas são tão caricaturais que iluminam a violação explícita do acordo. O Brasil, porém, embora signatário, parece não se preocupar com o assunto.

 

Polarização na diplomacia

Parte importante do prestígio construído pela diplomacia brasileira veio de uma conduta baseada na defesa dos direitos humanos.

Há pouco, lamentava-se no Brasil a presença de um presidente autoritário e de seu chanceler terraplanista. No seu lugar, o Brasil tem agora um presidente que pratica um discurso dúplice sobre direitos humanos, invocando-os ou ignorando-os segundo conveniências ideológicas. Como consequência, a diplomacia brasileira tornou-se refém da polarização política, abandonando a tradicional defesa de valores universais.

Nalvany morreu misteriosamente numa prisão russa. Maduro melou o Acordo de Barbados e mandou prender opositores. Nos dois países, regimes autoritários negam o princípio basilar da democracia, que é o direito do povo escolher seus governantes. Junto com ele, negam os direitos de exercer a livre crítica aos governantes e de se manifestar publicamente. Se o golpe arquitetado por Jair Bolsonaro tivesse dado certo, o Brasil estaria muito perto desse roteiro. Mas, na arena internacional, o Brasil oficial não ergue sua voz para, ao lado dos países democráticos, exigir o respeito aos direitos humanos e aos mais básicos direitos políticos. 

Manifestação de protesto contra a prisão de Navalny, em Moscou, em 2021

Quem cala, consente. Mas, em viagem à Etiópia, Lula fez algo ainda pior, acusando o Ocidente da ousadia de culpar o regime de Putin pela morte de Navalny. Para completar, utilizou a falta de resposta, seis anos depois, sobre os responsáveis pelo assassinato de Marielle Franco para justificar a recusa do governo de Moscou em entregar o corpo de Navalny sob a alegação de que investigações encontram-se em andamento. 

Está na moda a expressão “dissociação cognitiva”. Pois é exatamente o que vem à mente quando se tenta compreender que tipo de mensagem, afinal, passa a diplomacia do governo brasileiro.

Louvamos as investigações sobre os atos antidemocráticos promovidos pelo bolsonarismo em 8 de janeiro de 2023 e toda a sua trama golpista. Damos loas às instituições que resistiram bravamente e garantiram a democracia. Mas quando casos evidentes, escandalosos, reiterados de ações antidemocráticas são cometidos por líderes “amigos”, nós os apoiamos. É essa a diplomacia “ativa” e “altiva” anunciada pelo Itamaraty? 

 

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