MARIELLE, SEIS MESES

 

Elaine Senise Barbosa

17 de setembro de 2018

 

Raul Jungmann, ministro da Segurança Pública, declarou que Michel Temer qualifica a solução do caso do assassinato de Marielle Franco como “questão de honra” para o governo federal. A execução da vereadora e do motorista, Anderson Gomes, completou seis meses em 14 de setembro – e os crimes seguem sem solução. A “desonra” do presidente ou de seu governo pouco importam. O que importa, nesse triste aniversário, é entender as raízes da impunidade. Não existem presos, réus ou processos porque a rede criminosa obviamente ultrapassa as fronteiras das famosas milícias, esses biombos convenientes, sempre invocados por políticos e policiais do Rio de Janeiro.

As milícias certamente colocaram o nome de Marielle na lista de marcados para morrer. Vereadora pelo PSOL, quinta mais votada no Rio em 2016, socióloga, feminista, defensora dos direitos humanos, oriunda da Favela da Maré, Marielle representava esse novo Brasil que por meio da educação deixa os lugares subalternos para lutar por direitos de cidadania efetivos e não teme desafiar os poderes instituídos.

Ainda jovem, depois de ver sua melhor amiga ser morta em uma troca de tiros entre policiais e bandidos, Marielle comprendeu que aquela realidade só poderia ser transformada de dentro, pois a política de segurança pública do Rio se baseia, nas últimas décadas, em tratar sumariamente toda a parcela pobre e favelada como inimiga. Quando helicópteros da polícia sobrevoam favelas e atiram a esmo para baixo; quando agentes de segurança pública trocam tiros com traficantes tendo escolas no meio do fogo cruzado e estudantes morrem de bala perdida; quando se tem a polícia que mais mata e também a que mais morre – é incontestável a trágica falência do modelo de segurança pública do estado.

Marielle tentou mudar isso. Trabalhou durante  uma década como assessora do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), o primeiro político destacado a denunciar as milícias – e morreu por causa disso.

MARIELLE, SEIS MESES

 

Jungmann declarou, desde o início das investigações, que o crime tinha motivação política e suas características apontavam na direção das milícias. Contudo, se fosse só isso, os culpados já teriam sido identificados – e a “honra” das altas autoridades, devidamente preservada. O problema é que, se solucionados, os assassinatos de Marielle e Anderson comprovariam uma suspeita generalizada: as milícias são tentáculos da polícia e a polícia miliciana não poderia existir sem o amparo da política.

Segundo uma reportagem do jornal O Globo, publicada em 20 de agosto, investigadores da Polícia Civil do Rio trabalhavam com a hipótese de que as execuções teriam sido cometidas por um certo Escritório do Crime, grupo de matadores especializados em assassinatos por encomenda, formado por policiais da ativa, entre eles um major, e antigos policiais, inclusive um ex-oficial do BOPE, o Batalhão de Operações Policiais Especiais, força de elite da PM do Rio. O Escritório do Crime cobraria algo entre R$ 200 mil e um milhão de reais por execução. Um suspeito de integrar a quadrilha teria estado no bairro do Estácio, local dos crimes, no dia e horário em que ocorreram. Além disso, o veículo utilizado pelos matadores passou, comprovadamente, pelos arredores da favela do Rio das Pedras, onde se situa o quartel-general da quadrilha.

Jungmann declarou à Globo News, em agosto, que as execuções envolviam não só “órgãos de Estado” (leia-se: a polícia) como “órgãos de representação política”. Nessa linha, a revista Veja publicou reportagem que informa sobre outra hipótese de investigação, que não entra em conflito com a anterior. De acordo com ela, Marielle teria sido vítima de uma vingança contra Freixo, responsável pela ação judicial que cortou o acesso do deputado estadual Edson Albertassi (MDB-RJ) a uma cadeira no Tribunal de Contas do Rio.

Albertassi e seus colegas de partido Jorge Picciani e Paulo Melo, ambos ex-presidentes da Assembleia Legislativa do Rio, estão presos sob a acusação de conluio criminoso com uma máfia de empresários de ônibus. Previsivelmente, os três declaram-se inocentes de qualquer envolvimento com o assassinato de Marielle.

As declarações de Jungmann e as hipóteses policiais evidenciam que, seja qual for a verdade, as milícias não existem no éter. Elas são parte de um sistema criminoso que abrange significativos setores da polícia e relevantes agentes políticos. O avanço das investigações, a prisão de suspeitos e a abertura de processos judiciais têm o potencial de romper o manto de silêncio que preserva os “órgãos de Estado” e os “órgãos de representação política” envolvidos com os lucrativos negócios das milícias. A “honra” de Temer vale bem menos que a segurança das máfias policiais e políticas incrustadas no aparato de segurança pública do Rio. Talvez por isso, seis meses depois, nada se tenha, exceto vazamentos anônimos de linhas de investigação policial.

Jungmann ofereceu os serviços da Polícia Federal (PF) para auxiliar a investigação dos assassinatos, o que foi recusado pela Polícia Civil do Rio. Tanto a oferta quanto a recusa refletem as ambiguidades do cenário da segurança pública no estado. O Rio está sob intervenção federal parcial, restrita à segurança pública e operada pelo general de Exército Walter Souza Braga Netto. As polícias estaduais obedecem, em última instância, ao comando do interventor. Braga Netto poderia impor a participação da PF nas investigações, mas preferiu não fazê-lo. Por isso, o fracasso da Polícia Civil em indiciar suspeitos atinge, diretamente, a credibilidade do interventor e do próprio Exército.

A intervenção federal parcial preservou a autoridade política do governador Luiz Fernando Pezão. Desse modo, o MDB do Rio perdeu o controle direto do aparato de segurança pública, mas conservou o poder político estadual. O fracasso das investigações do assassinato de Marielle e Anderson congela esse equilíbrio crítico, evitando que se faça uma radiografia completa das relações entre a elite política estadual, as polícias e as milícias. Temer parece disposto a sacrificar a sua “honra” – e, com ela, o direito coletivo à segurança pública – em nome de um bem maior, que é a preservação do MDB do Rio.

Enquanto isso, num Brasil onde ativistas de direitos humanos costumam ser assassinados sem que assassinos e mandantes sejam punidos, escalamos um novo patamar da violência – aquele que põe na linha de tiro representantes do povo democraticamente eleitos. A impunidade não tem nada a ver com essa abstração chamada “honra”, mas tem tudo a ver com os direitos inscritos na Constituição.

 

 

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