Em 30 de agosto os militares tomaram o poder no Gabão, ex-colônia francesa na África Equatorial. O enredo tem semelhanças com o golpe no Níger, desferido semanas antes. Em ambos os casos, homens fardados surgiram na televisão estatal e anunciaram uma junta militar de nome grotesco. No exemplo gabonês, é o recém- proclamado Comitê pela Transição e Restauração das Instituições (CTRI), sob comando do general Brice Oligui Nguema.
Todavia, o contexto geográfico dos dois golpes é diverso. Enquanto o Níger se localiza no semiárido Sahel e sofre com ofensivas jihadistas, o Gabão é um petroestado onde a floresta equatorial encontra o Golfo da Guiné. No Níger, o golpe derrubou um presidente eleito de forma legítima, Mohamed Bazoum. No Gabão, é a queda da “dinastia familiar” inaugurada por Omar Bongo em 1967 e continuada pelo seu filho, Ali Bongo Ondimba, desde 2009.
O Gabão possui um território maior que o Reino Unido, mas uma população de apenas 2,4 milhões de habitantes. Cerca de 40% do Produto Interno Bruto (PIB) depende do setor petrolífero, o que torna Porto Gentil o coração econômico da nação, enquanto Libreville é a capital. O Gabão também é o segundo maior produtor de manganês do planeta e um dos maiores PIBs per capita da África. Contudo, de acordo com o Banco Mundial, mais de 40% da população vive abaixo da linha da pobreza e o desemprego é um dos mais altos do mundo, com uma taxa de 37%.
Para Josep Borrell, alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança, o Gabão acaba de sofrer dois golpes de Estado. O primeiro foi “institucional”, com a reeleição de Ali Bongo em mais um pleito fraudulento, sem observadores internacionais, sem imprensa estrangeira, sem sinal de Internet no dia da votação (em nome do combate às “fake news”). O segundo golpe foi “militar”, ocorrido minutos após o anúncio de vitória do presidente. A pergunta agora é: quanto irá durar o “governo de transição” comandado por um general?
Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Os golpes de Estado eram muito comuns na África durante a Guerra Fria e haviam diminuído de frequência desde o início deste século. Mas os desdobramentos da chamada Primavera Árabe – iniciada em 2012 na Tunísia e causadora de trocas de governos em diversos países, como a Líbia, cuja instabilidade atual cria uma permanente disputa pelo poder – acabou favorecendo a chegada e multiplicação de novos grupos políticos, ligados ao fenômeno bastante contemporâneo do jihadismo. Por sua vez, a União Africana tem respondido a esse efeito dominó com a suspensão dos países que foram palco de golpes de Estado, apoiando-se também nos blocos regionais dos quais são membros.
Os países africanos criaram uma série de blocos econômicos após a descolonização. A partir dos anos noventa essas organizações regionais passaram a se concentrar na mediação de conflitos, pois a sucessão de guerras civis inviabilizava qualquer organização institucional. Na União Africana, assembléia maior de Estados africanos, o Conselho de Paz e Segurança (PSC) divide suas cadeiras regionalmente, obrigando o órgão a negociar seus posicionamentos com os respectivos blocos.
Como exemplos, temos a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (Sadc), a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao/Ecowas) e a Comunidade da África Oriental (Eac). Já o Gabão integra a Comunidade Econômica dos Estados da África Central (Ceeac/Eccas), que condenou o golpe no país, mas possui pouco peso geoestratégico em comparação às outras alianças.
Os países membros da Ceeac/Eccas se encontram em palcos geopolíticos muito diversos, prejudicando ações coordenadas. Angola, país da África Austral, possui preocupações distintas do Chade, localizado no Sahel, por exemplo, e diferem da República Centro-Africana, em guerra civil há mais de uma década. Além disso a Ceeac/Eccas tem entre seus membros alguns dos regimes mais longevos e autoritários do mundo.
Um verdadeiro arco ditatorial envolve o Gabão por todos os lados. Ao norte está a Guiné-Equatorial de Teodoro Obiang Nguema e o Camarões de Paul Biya, eles ocupam o poder desde 1979 e 1982, respectivamente. Na República do Congo, que circunda o Gabão pelo sul e leste, o ex-presidente e militar Denis Sassou Nguesso voltou ao comando durante a guerra civil (1997-1999), e está lá até hoje. Estarão, os três ditadores, perdendo o sono temendo o mesmo destino de Ali Bongo Ondimba, o vizinho deposto?
Em 2016, a primeira reeleição de Ali Bongo Ondimba foi seguida por grandes protestos nas ruas de Libreville, a capital. Observadores internacionais ligados à União Europeia apontaram indícios de irregularidades no pleito. Mais de mil manifestantes foram parar na cadeia e o parlamento foi incendiado em meio à fúria popular. A sede do partido do principal líder oposicionista foi atingida por um raide da Guarda Presidencial, que chegou a utilizar um helicóptero no ataque.
Em agosto de 2023, os militares tomaram o poder antes que uma nova onda de contestação popular se organizasse frente ao anúncio da reeleição de Ondimba. O líder teria um novo mandato de sete anos, apesar de estar debilitado por um acidente vascular cerebral ocorrido em 2018. Na realidade, o mesmo exército que sustentou o regime cleptocrático dos Bongo resolveu derrubá-lo, com o claro intuito de controlar a transição política que poderia irromper pela insatisfação nas ruas.
O general Brice Oligue Nguema sendo exaltado depois de dizer que “com o novo governo, feito por pessoas de alto nível, haverá chance de esperança”.
O golpe no Gabão trouxe a imediata dissolução de “todas as instituições da república”, incluindo o Senado, a Assembleia Nacional e a Corte Constitucional. O general Oligui Nguema posou como “libertador”, numa retórica de ruptura que pretende disfarçar sua participação nos governos da família Bongo. Dias depois, na posse como “presidente de transição”, o general afirmou que “quando o povo é esmagado pelos seus líderes, é o exército que lhe devolve a dignidade”.
Após o golpe militar, a coalizão Alternância 2023, que enfrentou Ali Bongo nas eleições de agosto, exige a devolução do poder aos civis. Contudo, o regime do general Oligui Nguema usa o caráter fraudulento do pleito, vencido pelo presidente derrubado, para negar a sua validade. E novas eleições podem demorar, dado que o novo primeiro-ministro, Raymond Ndong Sima, sugeriu um prazo de 24 meses como transição “razoável”.
O risco maior é que um novo regime de exceção seja inaugurado no Gabão sob comando dos quartéis, como ocorreu em outras ex-colônias francesas. No Chade, por exemplo, o exército prometeu eleições num prazo de 18 meses após a morte do ditador chadiano Idriss Déby (1990-2021). A data expirou em outubro de 2022, o povo saiu às ruas e a repressão policial matou mais de 50 pessoas. Além de aliado da França, o país ainda não foi suspenso pela União Africana.
O Gabão é um exemplo clássico da Françafrique, alcunha para a esfera de influência mantida pela França sobre suas ex-colônias. Albert-Bernard Bongo (futuro Omar) chegou ao poder em 1967 e instituiu um regime de partido único, com as bênçãos do presidente francês Charles De Gaulle. Antes, Léon M’Ba, o primeiro presidente do Gabão, havia sido salvo de uma tentativa de golpe de Estado em 1964, pela intervenção de tropas francesas.
Albert-Bernard Bongo se tornou Omar Bongo na década de 1970, quando o Gabão entrou na Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), entidade formada por uma maioria de países muçulmanos. O islamismo era pouco expressivo no país, descrito como uma espécie de “emirado equatorial” da extensa família Bongo. Contudo, a queda nos preços do petróleo na década de 1980 dificultou a manutenção do sistema patrimonialista e autoritário.
O encontro do então presidente gabonês Ali Bongo com o líder chinês Xi Jinping.
A oposição se fortaleceu e o multipartidarismo foi restabelecido em maio de 1990, seguido de nova intervenção francesa para socorrer Omar Bongo. Salvo por Paris, o líder gabonês ficou no poder até sua morte, em 2009, acumulando quase 42 anos na presidência, com inúmeras eleições fraudulentas. Seu filho, Ali Bongo Ondimba, se tornou o sucessor de suas práticas até seu último dia no poder.
E enquanto a França se afastava do novo governante, Ali Bongo jogou a carta chinesa, tão importante hoje para diferentes líderes autoritários africanos. Em abril de 2023, Ali Bongo visitou Xi Jinping, o líder chinês, e foi qualificado como um “velho amigo da China”. Xi afirmou que a relação entre os dois países é “sólida como uma rocha”.
Mesmo assim, grupos econômicos franceses ainda estão entre os maiores exploradores de petróleo e manganês no Gabão. Mas a China vem ganhando espaço e já é a maior importadora de produtos gaboneses e segunda principal exportadora para o país.
A colônia do Gabão era a principal margem da África Equatorial Francesa (AEF) no Golfo da Guiné. O território ia desde um litoral entremeado por estuários, lagunas e pântanos até afluentes da bacia do Congo, no interior. Na arquitetura colonial, a metrópole congelou a paisagem humana diversa numa classificação étnica que não deixou de existir após a independência, em 1960. Léon M’Ba, o primeiro presidente gabonês, inaugurou um sistema de “equilíbrio étnico”, com a cooptação das lideranças regionais por meio do loteamento patrimonialista do Estado.
Omar Bongo, da etnia minoritária dos teke, deu continuidade à política de Léon M’Ba a partir de 1967. Etnias menos numerosas a viam como anteparo à superioridade numérica da etnia fangue, que respondem por 35% da população gabonesa. Divididos em facções regionais, os fangues, larga maioria na vizinha Guiné-Equatorial, também entraram no jogo. E assim, apesar do discurso de “união nacional”, a teia das identidades étnicas continuou a definir o panorama político do país.
Os protestos de 2009, contra a eleição de Ali Bongo Ondimba para suceder o próprio pai, demonstraram existir movimentos capazes de ultrapassar as disputas étnicas no Gabão. O próprio sistema de patronagem étnica ficou prejudicado pela concentração de poder em uma cúpula cada vez mais fechada e autoritária. Em março de 2017, as autoridades suspenderam as atividades do principal sindicato de professores do país por “distúrbio da ordem pública” em meio à organização de greves.
Nas ruas da capital Libreville, o exército gabonês tomando o controle da ordem pública
No Gabão, o golpe que derrubou Ali Bongo Ondimba não veio acompanhado de uma feroz retórica antifrancesa, como ocorreu nos casos de Mali, Burkina Faso e Níger. De todo modo, a antiga metrópole teme oscilações na política externa gabonesa. Afinal, a capital do país, Libreville, abriga uma das quatro bases permanentes da França na África, com as outras localizadas em Abdijã (Costa do Marfim), Dakar (Senegal) e no pequeno Djibuti, sem contar as forças “temporárias” no Sahel.
O caso do Gabão guarda uma certa semelhança com a situação da Guiné. Nesse país da África Ocidental, o presidente Alpha Condé foi reeleito em 2020 após uma reforma constitucional orquestrada para lhe permitir um terceiro mandato. O golpe militar veio em setembro do ano seguinte, encabeçado pelo coronel Mamady Doumbouya, que continua no poder e promete eleições apenas em 2024…
Em 28 de agosto, o presidente francês Emmanuel Macron afirmou que havia uma “epidemia de golpes em todo o Sahel”, onde os militares se apresentam como solução para enfrentar a ameaça jihadista. Dois dias depois, o golpe militar no Gabão trouxe a interrogação sobre a possibilidade de uma nova tendência na escala continental. Ou seja, um cotidiano de intromissão dos exércitos como forma de fazer política – ou melhor, de antipolítica?
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