Há quase um mês ocorreram dois desastres marítimos completamente diferentes. No primeiro, o naufrágio de uma traineira matou aproximadamente 600 migrantes pobres, convertendo-se na maior tragédia registrada no mar Mediterrâneo. No segundo, um submersível implodiu em águas profundas, no Atlântico Norte, transportando cinco milionários que se aventuraram em uma excursão até os destroços do Titanic. A diferença de cobertura, atenção e esforços dedicados a cada um dos eventos não escapou à crítica.
No fim, a cobrança surtiu efeito jornalístico e diversos órgãos de imprensa europeia se uniram para investigar como foi possível um naufrágio de tamanha proporção em um mar policiado noite e dia por diferentes entidades e órgãos, sobretudo pela Frontex. A agência de fronteira europeia atua fundamentalmente na fiscalização de mar e ar no espaço do Mediterrâneo, com os mais sofisticados meios. Não teria sido possível evitar a morte de centenas de pessoas?
A investigação da imprensa coloca o governo grego e sua guarda-costeira em posição particularmente negativa. E também expõe as pressões e dilemas que as sociedades europeias estão sofrendo para preservarem seus perfis democráticos, uma vez que as disputas em torno da questão imigratória constituem, hoje, o fulcro do debate político europeu.
Como inúmeras outras embarcações precárias que partem do norte da África com destino a algum porto europeu, aquela traineira partiu de Tobruk, na Líbia, em 9 de junho, transportando entre 700 e 750 pessoas, cerca de metade deles paquistaneses. Uma navegação marcada por problemas com o motor e aparente desorientação do capitão terminou na madrugada de 14 de julho com o barco naufragando em águas gregas.
Foram resgatadas vivas 104 pessoas, a maior parte delas retirada das águas por botes enviados por um iate de luxo que atendeu prontamente aos pedidos de socorro. Os sobreviventes foram levados para o porto de Kalamata, na Grécia. Agora, os depoimentos de 16 deles apontam responsabilidades da guarda-costeira grega no desastre.
Fonte: The Guardian
A primeira pergunta a ser respondida é: como tanta gente pode morrer se desde a manhã do dia 13 diferentes organizações (uma agência italiana, uma ONG e a própria Frontex) alertaram para o risco de naufrágio da embarcação?
O relatório da guarda-costeira grega não reporta o naufrágio tal qual ocorreu. Afirma, apenas, que foi feito contato com a embarcação ao longo do dia, que estava tudo bem e que o capitão declinou ajuda porque seu único objetivo era atingir a costa italiana. Porém, de acordo com o testemunho de vários sobreviventes, os guardas gregos disseram à tripulação da traineira que a levaria para a Itália.
Quando os alertas de naufrágio foram emitidos, a guarda-costeira decidiu enviar uma embarcação que, além de pequena para uma operação de resgate, partiu da muito mais distante ilha de Creta, enquanto embarcações mais próximas não foram mobilizadas. Uma reportagem do jornal britânico The Guardian questiona o fato do navio grego não ter filmado a operação, mesmo sendo uma embarcação financiada pela Frontex para auxiliar nas operações conjuntas com a Grécia, e existir um protocolo: “se possível, todas as ações empreendidas por… ativos co-financiados pela Frontex devem ser documentados por vídeo de forma consistente”.
Os imigrantes relatam que o barco grego lançou uma corda para rebocar a traineira, passando a realizar manobras bruscas, o que teria feito o barco adernar e afundar rapidamente. Como os preços para embarcar dependem do lugar ocupado pelo migrante, aqueles que estavam confinados no porão na parte de baixo, sobretudo mulheres com crianças, não tiveram a menor chance. Sobreviveram os que estavam espremidos no convés. Eles puderam pular na água e conseguiram se afastar de outras pessoas que, desesperadamente, tentavam agarrá-las. Foram resgatados pelos botes lançados pelo iate, que se lançaram, no escuro da noite, em direção aos gritos e pedidos de socorro. Enquanto isso, a guarda costeira grega observava à distância, demorando para enviar botes de salvamento.
Cadáveres no barco da Guarda Costeira Grega, após o naufrágio a 80 km sudoeste da cidade de Pylos
Segundo a investigação publicada pela revista alemã Der Spiegel, a Frontex se ofereceu em dois momentos distintos para enviar aviões até a embarcação, que estava sendo monitorada, mas o Centro Grego de Coordenação e Resgate ignorou a oferta. Fontes em Bruxelas disseram ser um padrão grego recusar ajuda em situações que depois se revelam controversas. No ano passado, inclusive, um tribunal europeu condenou a guarda-costeira grega por um naufrágio ocorrido em 2014, que ajuda a estabelecer um padrão: barco rebocado vira repentinamente, as pessoas se afogam e as autoridades gregas explicam que o naufrágio foi causado pelo brusco movimento das pessoas para o mesmo lado da embarcação. “Acidente”. Exatamente o que alegam agora…
Em Colônia, na Alemanha, manifestantes ordenam que refugiados (chamados de estupradores no cartaz) “fiquem longe” porque “não são bem-vindos”
Os Estados europeus vivem, desde 2015, um dilema em relação à questão do direito de asilo (para refugiados) e de imigração (geralmente motivada por questões econômicas). Em 2015, com a guerra da Síria, a maioria dos europeus priorizava o auxílio aos que fugiam de perseguições políticas e guerras civis. Hoje, as pesquisas de opinião pública e o crescimento dos partidos da direita nacionalista evidenciam que a xenofobia triunfou: a prioridade passou a ser reduzir o número de refugiados e imigrantes que chegam à Europa.
O problema é: como os partidos do campo democrático podem sobreviver frente a essas pressões? Porque, se a maioria dos eleitores, como já ocorre em países como a Itália, não sentir que suas reclamações são minimamente consideradas, os partidos democráticos perderão espaço e a capacidade de manter os compromissos com os valores humanitários estabelecidos após a Segunda Guerra Mundial.
É significativo que os partidos da direita nacionalista compartilhem o mesmo discurso xenófobo invocando os valores da “cristandade europeia” para recusar a chegada de estrangeiros, sobretudo islâmicos, enquanto o racismo ganha nova vitalidade. Essas correntes políticas falam em construir uma “Fortaleza Europa”, um sistema supranacional organizado para deportar rapidamente os “invasores”.
“Refugiados são bem vindos”. Demonstração de apoio, em Berlim, aos que tentam chegar à Europa. Protestos têm surgido em várias cidades europeias, clamando para que a União Europeia aceite refugiados na fronteira grega
O argumento da direita xenófoba contra o crescente fluxo migratório tem apelo eleitoral porque, espertamente, foca seu discurso nas máfias organizadas para explorar pessoas desesperadas, que entregam tudo o que possuem para ingressar em barcos tão precários quanto a traineira naufragada. Esse tráfico humano é responsável por graves violações dos direitos humanos, que abrangem desde trabalho escravo até prostituição, passando pelos frequentes naufrágios no Mediterrâneo.
Contudo, quando estão no governo de seus países, os partidos da direita xenófoba praticamente não agem para combater as máfias e seus agentes. O que fazem é restringir a entrada de novos imigrantes econômicos, barrando igualmente requerentes de asilo, cujos direitos de proteção são regulados por leis internacionais que a União Europeia subscreve.
As exigências burocráticas e prazos de análise de documentos cada vez mais demorados, com evidente carência de funcionários para esses setores, provoca um aumento das filas e as inevitáveis tentativas de burlar o sistema, pois as pessoas precisam trabalhar para viver. O caos serve à xenofobia, pois confere verossimilhança aos discursos alarmistas.
A leitura de documentos, notícias e debates sobre a questão migratória aponta para um momento crítico. A direita nacionalista europeia, que se opunha à União Europeia (UE) nas suas origens, aprendeu a somar forças de modo muito consistente, ocupando cadeiras do Parlamento europeu para tentar impor leis e instruções xenófobas de alcance continental. Um novo acordo de migração e asilo acaba de entrar em vigor na UE. Sua tônica é a padronização das regras e, principalmente, o endurecimento das penalidades para migrantes indocumentados.
Sede da Agência da União Europeia para o Asilo, em Valeta, na República de Malta
Há que se ter cuidado, portanto, para não transformar o governo grego e sua guarda-costeira nos únicos vilões na história desse naufrágio absurdo. As ações da guarda-costeira grega no Mediterrâneo e os campos de refugiados e imigrantes espalhados pela Grécia e suas ilhas resultam da sua condição de porta de entrada para o espaço europeu e deveriam seguir os padrões estabelecidos pela União Europeia.
No entanto, o país já esteve em outras manchetes negativas, ligadas ao degradante campo de refugiados na ilha de Lesbos. Na ocasião, multiplicaram-se as promessas de correção de rumos da parte de representantes da UE, que se revelaram vazias.
Agora mesmo, o campo de refugiados na ilha de Kos (nome oficial: Campo Fechado de Acesso Controlado) já aplica os procedimentos de fronteira descritos pelas novas regras de asilo que a UE estabeleceu. As condições se assemelham a uma prisão em regime semi-aberto, com direito a sair durante o dia e hora para voltar. Os solicitantes de asilo não recebem documentos ou um mero registro de entrada, permanecendo em completo limbo legal.
Para o advogado e estudioso da questão migratória, Maximilian Pichl, o que acontece em Kos se tornará o padrão em outras fronteiras externas da União Europeia: “a abordagem do hotspot grego foi, desde o início, um projeto-piloto”.
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