REFUGIADOS, O GRITO DE LESBOS

 

Demétrio Magnoli

14 de setembro de 2020

 

Milhares de refugiados – homens, mulheres e crianças – dormiram pela segunda noite nos campos e estradas, depois que o fogo devastou o campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, em 9 de setembro. “Já se esgotou o tempo em que a Europa pode continuar sem uma política migratória”, alertou o grego Margaritis Shinas, que ocupa a vice-presidência da Comissão Europeia, descrevendo a tragédia de Moria como uma “afiada advertência” dirigida à União Europeia.

Há cinco anos, a União Europeia age como o proverbial avestruz. Por sua proximidade com a Turquia, Lesbos tornou-se um dos principais focos do fluxo de refugiados criado pelas guerras na Síria e no Afeganistão. O campo de Moria, estabelecido para abrigar temporariamente 1,5 mil solicitantes de asilo, transformou-se num enclave superpovoado, com 9 mil refugiados no final de 2018. Agora, a panela de pressão explodiu.

 

Moria ficou tristemente célebre por suas precárias condições sanitárias e pela crescente insegurança engendrada pela superlotação. O papa Francisco chegou a compará-lo a um campo de concentração. Em 2017, Moria já acomodava mais de 3 mil migrantes e ocorriam protestos violentos diante de decisões negativas sobre os processos de asilo. Na época, registrava-se o ingresso médio diário de algo entre 70 e 80 novos imigrantes.

O desespero agravou-se desde meados de 2019, com a ascensão do novo governo grego de centro-direita, que suprimiu o direito dos solicitantes de asilo de apelar contra decisões negativas. A pandemia do coronavírus rompeu o já degradado equilíbrio. Em março passado, a União Europeia solicitou ao governo grego a transferência dos migrantes que fazem parte dos grupos de risco para outras áreas, na Grécia continental. A Grécia, contudo, recusou a solução, colocando o dedo na ferida aberta: a ausência de uma política migratória do bloco europeu.

 

Uma muralha europeia

Refugiados, o grito de Lesbos

O campo de refugiados de Moria no inverno, em janeiro de 2019

Depois do influxo migratório inicial, quando a Alemanha abriu suas portas para quase um milhão de refugiados sírios, a União Europeia reverteu às regras migratórias tradicionais. De acordo com elas, o processamento dos pedidos de asilo compete ao primeiro país de entrada dos solicitantes, o que coloca o fardo mais pesado nas costas da Grécia e da Itália, situadas nos pontos de chegada dos migrantes provenientes do Oriente Médio e do norte da África. Moria e outros campos das ilhas gregas nasceram dessas regras.

A muralha erguida pela União Europeia em torno de suas fronteiras completou-se em 2016, com um acordo entre o bloco e a Turquia. Por meio dele, a Turquia aceitou acolher cerca de 3,6 milhões de migrantes provenientes da Síria, em troca de vultosa ajuda financeira europeia.

O acordo reduziu significativamente a pressão sobre a Europa, mas concedeu ao governo turco uma eficaz ferramenta de chantagem diplomática. A liberação episódica de passagem de migrantes rumo à Grécia é uma mensagem turca ao bloco europeu, utilizada em momentos de maior tensão diplomática. A superlotação de Moria decorre das aberturas circunstanciais da torneira migratória controlada pela Turquia.

Na conjuntura excepcional gerada pela pandemia, escancarou-se a hipocrisia europeia. Ao mesmo tempo em que solicitou ao governo grego a remoção de parte dos solicitantes de asilo para a Grécia continental, a União Europeia interrompeu a transferência de crianças desacompanhadas dos campos insulares gregos para outros países do bloco.

“Nenhuma dessas pessoas deixou seus países com a intenção de permanecer em Moria. Então, elas ficam frustradas”. A declaração, do general Giannis Balbakakis, antigo diretor do campo de Moria, é um reconhecimento do óbvio – mas, também, uma denúncia velada da lentidão burocrática do processamento dos pedidos de asilo.

Mais que frustração, há medo. “É perigoso”, explicou um migrante afegão alojado no campo de Lesbos. “Se alguém bebe, deixa de ser ele mesmo e torna-se incontrolável. Todos os dias havia guerra no Afeganistão, mas era melhor que em Moria pois eu tinha minha família para me dar segurança.”

 

“A Europa não mais existe”

Não se conhece a origem dos incêndios que devastaram Moria. O governo grego acusou demandantes de asilo que protestavam contra medidas de lockdown impostas no campo para impedir contágios. Por outro lado, migrantes apontaram o dedo para grupos de “vigilantes” locais que, há tempo, exigem a remoção do campo.

Scotti Kele e sua família. A Europa existe?

Moria não existirá mais. O governo grego enviou equipes para a montagem de tendas em outro local de Lesbos, a fim de instalar o campo substituto de Kara Tepe. Enquanto isso, as autoridades locais insistem na transferência definitiva dos migrantes para fora da ilha. Em 11 de setembro, os refugiados protagonizaram uma manifestação de protesto, erguendo cartazes com a inscrição “Queremos liberdade”. A polícia os dispersou utilizando canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo.

Scotti Kele encontrou uma cadeira de rodas abandonada, que usou para oferecer descanso à sua filha de quatro anos açoitada pelo sol escaldante. Ele sintetizou a catástrofe: “Estamos morrendo de fome aqui. Não temos nada. Quando estava em meu país, o Congo, e as pessoas falavam da Europa, eu pensava em direitos humanos. Mas, pelo que nós vemos aqui, penso que a Europa não mais existe.”

 

 

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