XENOFOBIA: DESAFIO CIVILIZATÓRIO PARA A EUROPA

“Todas as histórias de mar são políticas; e nós, fragmentos de algo em busca de uma terra”

 

Rafael Pepe Romano

(Bacharel em Direito, graduando em Ciências Sociais/USP e pesquisador de 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos)
12 de dezembro de 2022

 

Era 2 de fevereiro de 2019, daqueles dias de chuva e vento em Roma. Acordei e saí para tomar um café. Os jornais La Repubblica e Corriere della Sera falavam da popularidade de Matteo Salvini, então vice-primeiro-ministro e ministro do Interior da Itália, pela sua aposta em fazer da xenofobia seu trunfo político.

Me lembro bem daquele dia porque aconteceram uma série de manifestações por todo o país. As pessoas se davam as mãos em torno dos principais monumentos históricos nas grandes cidades e protestavam, ao canto de Bella ciao, contra o racismo e a xenofobia do governo da direita nacionalista.  

Àquela altura, Salvini havia editado uma série de disposições legais, os Decretos de Segurança (Decreti Sicurezza), que impuseram o bloqueio naval a embarcações transportando imigrantes e refugiados. Os decretos – um conjunto normativo vergonhoso – aboliram a proteção humanitária internacional, confrontando diretamente o Pacto Global para Migração da ONU. 

Pensei nos meus e na história que me antecedeu. Eu também gritava: “Salvini, apra i porti! (“Salvini, abra os portos!”)

 

Quando a xenofobia rende votos

Como outras lideranças políticas que surgiram na Europa na última década, Salvini é um fenômeno da direita nacionalista italiana. Salvini tensionava a sociedade, atacando direitos civis e políticos para desafiar as instituições de Estado ou hostilizando a burocraciada União Europeia. Ele disse reiteradas vezes: “Chega de clandestinos, vou defender as fronteiras. Acabou a festa.” O resultado de sua ação política foram portos fechados para impedir ações de resgate e desembarque que deixaram centenas de pessoas à deriva, muitas das quais não foram resgatadas a tempo. 

É o caso de se observar o emprego do termo clandestinopelo então ministro. Esse estatuto jurídico não existe nem nas definições do direito internacional humanitário, nem no direito europeu.  Qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade que coloque os pés em terras da União Europeia pode pedir asilo, valendo-se do direito previsto nas convenções internacionais e nas leis nacionais dos países que ratificaram tais acordos. Clandestinos são ilegais, malfeitores… A criminalização dos imigrantes, sobretudo africanos, era óbvia. Xenofobia pura, para criar o inimigo comum contra o qual a nação se une.

Acampamento imigrante na fronteira

Tendas de imigrantes em Ventimiglia, fronteira da Itália com a França. Lá, a polícia francesa impede que os migrantes e refugiados ingressem no seu país.

Salvini caiu, o tempo passou, mas a crise migratória no Mediterrâneo persiste. O intenso fluxo de refugiados e emigrantes oriundos da África do Norte, do Oriente Médio e da Ásia Central em busca de paz e oportunidade de uma vida melhor rendem imagens dramáticas todos os anos, expondo um rosário de tragédias humanas ligadas pelo fio de múltiplas violações dos direitos humanos. 

Pior, a crise imigratória tem sido a força propulsora de nacionalismos xenófobos que se nutrem das crescentes tensões sociais nos centros urbanos, onde emprego, custo de vida e escassos recursos assistenciais são disputados por nacionais empobrecidos e recém-chegados. Tudo isso agravado pela redução ou fechamento de mecanismos de assistência e integração atingidos pelos cortes de verbas públicas e, cereja do bolo, por novos e velhos preconceitos, como racismo e islamofobia.

 

O ideal da União Europeia e o fechamento à imigração

Na Europa, a xenofobia tem sido o fator aglutinador dos distintos partidos da direita nacionalista. A recém-eleita primeira-ministra italiana Giorgia Meloni também preside o grupo político Reformistas e Conservadores Europeus (RCE), que reúne partidos ultranacionalistas no Parlamento Europeu com o objetivo de transformá-lo em uma fortaleza conservadora, cristã e xenófoba. O grupo combate o que chamam de forças “europeístas” ou “globalistas” – isto é, as correntes que atuam em prol da democracia e dos direitos humanos, incluindo o direito de refúgio

Hoje o RCE conta com o partido da própria Meloni, o pós-fascista Irmãos da Itália; o Lei e Justiça, governando a Polônia; os Democratas Suecos, que participam da coalizão do novo governo; o neofranquista Vox, na Espanha, e o Fidesz – União Cívica Húngara, do primeiro-ministro Viktor Orban.

É uma triste ironia que a transnacionalidade proporcionada pelo chamado Espaço Schengen – que começou a surgir em 1985 e foi juridicamente integrado às leis da União Europeia em 1997, com o Tratado de Amsterdã – seja usada hoje por forças populistas para fazer avançar a xenofobia. O Acordo de Schengen aboliu o controle de fronteiras entre os países signatários, substituindo-o por uma só fronteira externa comum. É um pacto civilizatório construído sobre as premissas da liberdade, da democracia e do respeito aos direitos humanos que as gerações do pós-guerra firmaram para superar os revanchismos do passado.

Schengen é filho do sonho da Europa federal. Contudo, esse sonho parece cada vez mais envelhecido desde que a questão migratória se tornou fator de crise permanente. Os órgãos e instituições da UE não conseguem cooperar em matéria de recepção de imigrantes e concessão de asilo, o que provoca dissensos e ressentimentos entre os países do norte e do sul da Europa.

O Regulamento de Dublin prevê que os Estados-Membros estabelecerão os critérios de concessão ou não-concessão de proteção internacional a um cidadão de um país terceiro, que não faça parte da União Europeia. Significa, na prática, que quando alguém chega ao território europeu, a autoridade migratória do país de entrada fica responsável por decidir se a pessoa será enquadrada no estatuto de proteção internacional e acolhimento. Em muitos casos, o crescimento eleitoral dos partidos da direita nacionalista tem sido alimentado por reações de xenofobia nos países que se sentem mais sobrecarregados pelo problema migratório.

Em anos recentes, a rota do Mediterrâneo Central superou largamente as outras rotas marítimas de ingresso de migrantes na Europa. A Itália figura como principal ponto de chegada dessa rota, o que ajuda a entender os sucessos eleitorais dos partidos que agitam a bandeira da xenofobia. 

Fonte: Frontex

 

Problema do vizinho

A chegada de Giorgia Meloni ao poder na Itália fez o governo francês subir o tom, no último dia 25 de novembro: “Roma deve abrir os seus portos às ONGs. Caso contrário, não será discutido nenhum realocamento de imigrantes.” O encontro entre os ministros do Interior dos dois países expôs a tensão no Conselho de Ministros da União Europeia e até o papa entrou na história criticando os dois governos.

Emmanuel Macron e Meloni evitaram-se durante a cúpula do G20, realizada há pouco, na Indonésia. Isso depois de trocarem acusações sobre de quem é responsabilidade inicial sobre os imigrantes e refugiados, quem deve receber quem, em quais condições e quando. O dissenso interessa a ambos. Para o presidente francês, que na prática repele os imigrantes, o discurso serve de contraponto eleitoral à sua principal adversária, a ultranacionalista Marine Le Pen. Do lado italiano, a nova primeira-ministra anseia por um reconhecimento popular que reverta em maior apoio parlamentar. 

O problema não diz respeito apenas à França e à Itália. A Espanha está às voltas com tensões migratórias nos seus enclaves em solo africano. Ceuta e Melilla ficam no vizinho Marrocos e são cidades portuárias muito próximas do solo europeu. Na condição de enclaves espanhóis, elas funcionam como únicas fronteiras terrestres entre Europa e África. São, portanto, muito procuradas como rota de imigração. Mas é exatamente contra negros e islâmicos que a xenofobia é mais perversa.

No tuíte, Giorgia Meloni defende o bloqueio naval para impedir que migrantes cheguem à Itália. Chama a atenção a defesa de uma missão europeia em cooperação com países africanos contra a imigração

Em 2021, num só dia, oito mil pessoas, o equivalente a 10% da população de Ceuta, ultrapassaram a barreira fronteiriça em duas de suas praias, desencadeando a mais grave crise diplomática dos últimos 20 anos entre Espanha e Marrocos. Depois, em maio de 2022, duas mil pessoas tentaram entrar por Melilla. A polícia de fronteira espanhola reagiu, levando a um confronto que deixou 23 imigrantes mortos. O primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez chegou a declarar que a situação tinha sido “bem resolvida”; depois pediu desculpas, alegando não ter sido informado sobre as mortes. 

Recentemente, o Conselho Europeu tem apoiado uma série de parcerias entre governos europeus e governos do norte africano. Foi assim em relação à Espanha e Marrocos; Itália e Líbia; França e Argélia. A intenção é criar hotspots que sejam pontos de triagem para os candidatos a refúgio ou imigração, além do financiamento das guardas costeiras desses países de trânsito, a fim de evitar que a travessia do Mediterrâneo seja concluída. De fato, por essa via, a Europa está pagando para transferir a pressão imigratória para os países da África do Norte. 

As instituições da UE não podem se sobrepor à soberania dos Estados-Membros, quando eles resistem em aplicar certas disposições comunitárias, sobretudo quando dizem respeito à administração de assuntos internos como a recepção de imigrantes e refugiados. São essas brechas de poder que estão à mercê da instrumentalização ideológica dos governos da direita nacionalista. A xenofobia que alimentam reforça entre os países menos desenvolvidos a impressão de que os europeus são muito bons para cobrar de governos em territórios distantes aquilo que não fazem em sua própria casa.  

 

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