LE PEN, A FRANÇA NACIONALISTA

 

Demétrio Magnoli

18 de abril de 2022

 

Placa em memória aos judeus presos no Velódromo de Inverno, em Paris, em julho de 1942

“Se houve responsáveis, eram aqueles no poder na época, não a França”. A declaração de Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN), é de 9 de abril de 2017, pouco antes do 1º turno da eleição francesa que catapultou Emmanuel Macron à presidência. Ela se referia à captura policial de 13.152 judeus em Paris, em 16 de 17 de julho de 1942, que acabariam no campo da morte de Auschwitz. A frase ilumina a difícil marcha de “normalização” de seu partido político.

A FN foi fundada em 1972, como expressão da ultradireita francesa, por Jean-Marie Le Pen, pai de Marine, antigo soldado da Legião Estrangeira na Indochina e organizador político dos veteranos das forças coloniais francesas na Argélia. As raízes ideológicas do partido situam-se no solo do poujadismo, um movimento dirigido por Pierre Poujade para defender a manutenção do poder colonial no Magreb africano. Contudo, no tóxico caldo de cultura da FN misturavam-se a nostalgia do regime de Vichy com a negação histórica do Holocausto.

A cidade de Vichy foi a sede do governo do marechal Philippe Pétain, que colaborou com os ocupantes nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Explicando sua declaração de 2017, Marine Le Pen insistiu na ideia de que o regime de Vichy “não era a França” – e que o legítimo governo francês encontrava-se exilado em Londres, sob o comando do general Charles de Gaulle. Um ano mais tarde, o nome original do partido foi substituído pelo atual Reunião Nacional (RN).

 

Da ultradireita à direita nacionalista

A FN figurou como partido marginal, quase insignificante eleitoralmente, durante sua primeira década. Contudo, nas eleições presidenciais francesas de 1988, Jean-Marie Le Pen obteve mais de 14% dos votos e, em 2002, conseguiu disputar o 2º turno, quando foi fragorosamente batido por Jacques Chirac (82% a 18%).

A decepção eleitoral de 2007 assinalou o fim de seu ciclo. Menos de quatro anos depois, sua filha assumiu a liderança da FN e iniciou uma operação destinada a moderar as posições partidárias. Nesse processo, em 2015, após uma controvérsia sobre a negação do Holocausto, Jean-Marie foi expulso do partido que fundou.

A “normalização” funcionou. Nas eleições presidenciais seguintes, Marine ampliou o eleitorado do partido, disputando o 2º turno em 2017 e, novamente, alcançando o turno final nestas presidenciais de 2022.

Na marcha ideológica da ultradireita à direita nacionalista, Marine rompeu com os dogmas de natureza fascista de seu pai. Separou-se da nostalgia do regime de Vichy e repudiou o negacionismo do genocídio nazista. O novo discurso, coroado com a expulsão de Jean-Marie e a mudança de nome do partido, assenta-se nos pilares do Estado protetor e, sobretudo, da xenofobia.

Desde a campanha de 2017, e com maior ênfase em 2022, Marine concentra-se no populismo social, apelando aos eleitores da classe média baixa das pequenas cidades do leste e do sul. Paralelamente, mantém o discurso anti-imigrantes que está nas origens do partido. Por essas vias, conseguiu conectar a RN às correntes principais da direita nacionalista europeia.

A palavra “soberania” tem especial destaque na política da RN. Por meio dela, desenrola-se a fábula nativista segundo a qual a França é vítima de uma inundação de imigrantes que ameaça sua identidade, sua cultura, seu modo de vida e os empregos de seus cidadãos. 

 

A conquista dos eleitores gaullistas

Durante as décadas do pós-guerra, a política francesa organizou-se ao redor de três eixos ideológicos: a centro-direita, os social-democratas e os comunistas. A força da RN deriva da conquista parcial de antigas bases eleitorais comunistas e, mais recentemente, de avanços entre os eleitores de centro-direita.

O Partido Comunista Francês (PCF) entrou em crise com a queda do Muro de Berlim, em 1989, transformando-se em agremiação marginal. Desde a década de 1990, parcela significativa de seu eleitorado, concentrado no velho cinturão industrial do norte e leste franceses, migrou para a FN.

Charles de Gaulle (à direita, ao lado de Winston Churchill), líder do governo francês no exílio, em Londres, 1941

O núcleo da centro-direita era formado pelos seguidores de De Gaulle, agrupados na Reunião pela República (RPR), hoje rebatizada como Republicanos. Nas presidenciais de 2002, o gaullista Chirac bateu implacavelmente Jean-Marie Le Pen. Contudo, o sistema político francês entrou em convulsão em 2017, com o triunfo do centrista Emmanuel Macron, que capturou a maioria dos eleitores social-democratas e parte relevante dos eleitores da centro-direita. No turno final, Macron derrotou Marine Le Pen por margem avassaladora (66% a 34%).

A novidade é que a tradicional base gaullista, como aconteceu antes com os eleitores social-democratas, abandona suas lideranças históricas. Em 2012, o gaullista Nicholas Sarkozy obteve 27% dos votos no turno inicial, perdendo o turno final para o social-democrata François Hollande. Em 2017, o gaullista François Fillon  obteve 20% dos votos no 1º turno, ficando de fora da disputa decisiva. No turno inicial de 2022, a gaullista Valérie Pécresse não alcançou 5% dos votos.

Os votos gaullistas fragmentaram-se, engrossando a abstenção ou rumando a outros candidatos conservadores. A RN reformada capturou parcela significativa desse eleitorado. Quando Marine Le Pen repudia o regime de Vichy e aponta no governo do exílio de De Gaulle a “França verdadeira”, ela persegue um reposicionamento estratégico de seu partido. É por isso que a direita nacionalista converteu-se em alternativa viável de poder na França.

 

Um perigo maior

Marine Le Pen acostumou-se a derramar elogios a Vladimir Putin e, em 2014, seu partido obteve um empréstimo em condições excepcionalmente vantajosas de um banco que orbita em torno do Kremlin. A aliança com Putin, um traço comum a diversos partidos da direita nacionalista europeia, só foi deixada de lado na atual campanha eleitoral, após a invasão russa da Ucrânia. Tratava-se, claro, de não perder votos de franceses horrorizados diante da barbárie.

Le Pen, a França nacionalista

Marine Le Pen, o novo rosto do nacionalismo xenófobo na França

A reforma ideológica conduzida por Marine Le Pen abrange o tema da União Europeia. O partido de Jean-Marie queria extrair a França do bloco europeu; a atual RN não pretende imitar o Brexit britânico e nem mesmo almeja uma ruptura com o euro, a moeda comum europeia. Nesse ponto, a RN segue o rumo de partidos nacionalistas irmãos, como os da Itália, da Hungria e da Polônia. Exatamente por isso, o perigo tornou-se maior, não menor: é como alternativa viável de poder que a líder direitista francesa ameaça, a partir de dentro, os princípios democráticos fundamentais da Europa.

Em 2014, pouco antes de sua expulsão da FN, Jean-Marie chegou a celebrar a epidemia do ebola, apontando-a como “solução” para os “problemas” do crescimento demográfico e da imigração. Marine não emprega a linguagem do pai, mas conserva a alma xenófoba do antigo partido. A sua “França soberana” é a “França de mil anos”, uma fortaleza gaulesa, católica e branca, que se fecha a imigrantes e refugiados.

A França opera, em parceria com a Alemanha, como motor da União Europeia. Uma eventual vitória de Marine no turno final da eleição presidencial lançaria o bloco europeu a uma crise ainda mais grave que a do Brexit. Mas, desde já, a sombra de uma RN capaz de, no segundo turno, conquistar os votos de mais de 40% dos eleitores empurra a política francesa um pouco mais para a direita, rumo à intolerância cultural e à exclusão.

 

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