CUBA: A VEZ DA CIDADANIA

 

Armando Chaguaceda

(Cientista político e historiador cubano, especializado no estudo da democracia e do autoritarismo na América Latina e na Rússia)
10 de outubro de 2022

 

Com as baionetas, senhor, se pode fazer tudo

menos sentar-se sobre elas

(Charles-Maurice de Talleyrand)

 

Os cubanos voltaram às ruas. Depois de pouco mais de um ano dos emblemáticos protestos de 11 e 12 julho de 2021, cansados pela falta de eletricidade e o consequente corte de serviços essenciais de água e gás, em razão da passagem do furacão Ian, milhares de pessoas protestaram contra o governo em diversos pontos da capital Havana e outras cidades do país.

As palavras de ordem misturavam referências à má gestão dos apagões, ao desabastecimento e, cada vez mais, ao grito por “liberdade”. Apesar da repressão desenfreada – com paramilitares, operações noturnas e corte total de internet –, as pessoas saíram de casa cinco dias seguidos para dizer “basta”. São diversas as testemunhas que conseguiram vencer a censura; seus relatos podem ser encontrados nos veículos Diario de Cuba, El Toque, 14 ymedio e Inventario.

 

CubaCAPA - FuracãoIan

Sob a cor vermelha, centro do furacão, a ilha de Cuba

 

O porquê das coisas

Esses protestos irrompem contra o status quo imperante numa ilha governada por um regime autoritário no político, conservador no ideológico, explorador no econômico e excludente no social. Decadente na sua capacidade de ampliar a cooptação material (como na China de Xi Jinping) e manter um aparente consenso político (como ainda exibe Vladimir Putin), o regime abusa da coação, executada pelos órgãos de segurança estatais.

No entrecruzamento de suas diferentes dimensões e diante dos horizontes para garantir a sua sobrevivência, podemos qualificá-lo essencialmente como reacionário. E, segundo a recente caracterização dos cientistas políticos húngaros Bálint Magyar e Bálint Madlovics, como mafioso, termo cujo uso não obedece a nenhum impulso emocional ou afã sensacionalista, mas sim a uma compreensão inovadora das estruturas e propósitos do poder que impera nos regimes pós-comunistas.

Essa elite predadora revelou, durante esses dois anos, suas prioridades de acumulação de capital por meio da alocação dos recursos financeiros nacionais, com resultados sociais claramente antipopulares. Segundo os próprios dados oficiais (fornecidos pelo Escritório Nacional de Estatística e Informação), priorizou-se em Cuba o investimento em hotéis de luxo, em prejuízo da produção de alimentos, saúde, educação e assistência social.

Em 2020, em plena pandemia, o gasto em serviços imobiliários no orçamento do Estado foi 45 vezes maior que o dedicado (0,9%) à saúde. É visível que a precariedade dos serviços e a crescente desproteção social da população cubana não resultam de embargos econômicos ou ciclones. São o produto do tipo de decisão política que caracteriza uma casta autoritária e voraz… até um dia.

 

De habitantes a cidadãos

Tal conjuntura – e suas consequências – explica a natureza das atuais manifestações, que não se resumem a reivindicações para pedir “coisas” a quem governa, mas para exigir direitos a um poder insensível. Em primeiro lugar, o direito a ter direitos, que é sintetizado nos gritos de “fora”, “não acreditamos em vocês” e, de novo, “liberdade”, que ressoam nas ruas cubanas.

São gritos que não se limitam a pedir ao funcionário que cumpra melhor a sua tarefa, mas que questionam a existência mesma de um poder sem contrapesos institucionais, fiscalização cidadã e nem alternativas políticas. Que desperdiça o capital humano de seus melhores quadros técnicos, intelectuais e cidadãos. Um poder solipsista e soberbo que, ainda que quisesse, está estruturalmente condicionado a reproduzir a mediocridade administrativa e a incapacidade burocrática. No México, sem ter sofrido a sua forma totalitária, conhecemos bem essa praga.

A evolução da história recente de Cuba está modificando, aos poucos, uma realidade  que costumávamos descrever a partir da confrontação de duas minorias políticas. A oficialista, com o controle dos recursos de poder e legitimidade declinante, e a opositora, incapaz de aglutinar em torno da reivindicação democrática setores mais amplos da população, ocupados com a luta pela subsistência cotidiana.

É neste setor da população que surgiu uma massa crítica com reivindicações capazes de vincular o reconhecimento da responsabilidade dos que mandam na crise nacional. Uma tomada de consciência de que cada pessoa tem a capacidade e o dever de ser o protagonista do seu próprio destino. Uma população que, diante da crescente repressão e abandono por parte das autoridades estatais, vai deixando de se constituir como um conjunto de indivíduos isolados para se transformar em comunidade cidadã.

Protesto Havana 27/9/2022

Nos últimos dias de setembro, toda a ilha de Cuba experimentou manifestações populares. O povo descobre a cidadania e a sua força para enfrentar a ditadura castrista do presidente Díaz-Canel.

Essa cidadania é insuficiente ainda para se impor ao poder, mas efetiva o suficiente para que o governo comece a reconhecer, verbalmente, seu “direito de protestar”. Isso não revela, porém, uma súbita democratização do regime, que segue combinando cenoura com garrote: é capaz de mostrar-se disposto ao diálogo – enviando funcionários para lidar com manifestantes – enquanto mobiliza soldados à paisana para lançá-los contra as concentrações que considera mais perigosas. A estratégia vem acompanhada dos inéditos apagões totais de internet, que limitam a possibilidade de protestos massivos por todo o país.

Mas, assim como muda a estratégia repressiva, muda também a escala e o repertório dos protestos. A falta de internet é uma limitação temporária, porque desligar o serviço por tempo indeterminado teria alto impacto nas já fragilizadas economia e administração, e não impedirá protestos e formas de organização comunitária baseadas na comunicação em redes de confiança ​​e na interação pessoa a pessoa. O bloqueio das ruas, panelaços, piquetes, tudo isso parecia habitual na América Latina, mas alheio a Cuba. Essas coisas voltaram, assim como a reapropriação de lemas proclamados nas convocações oficiais, mas que agora adquirem o seu real sentido, como “o povo, unido, jamais será vencido!”.

Em um país como Cuba, a manifestação social – ainda que em pequena escala – e qualquer reivindicação pública adquire grande valor. Representam uma mudança na subjetividade pessoal e coletiva diante de um regime que perde velozmente a legitimidade e o controle da narrativa. Tal situação confirma uma ideia que expus em minhas redes sociais poucos dias antes do início dos protestos. Ali apontei o quão insensato seria, analítica e civicamente falando, rotular o povo cubano – e qualquer outro povo oprimido – como uma entidade homogênea e corrupta, culpada pela sua própria desgraça.

É uma postura que, além de humanamente injusta, alimentou por muito tempo a desesperança. Essas afirmações que vêm de um certo exílio radical e niilista – por parte de muitos que nunca foram rebeldes enquanto estavam na ilha – são hoje negadas pelo despertar cidadão que se expressa nos atuais protestos. Protestos que, diga-se de passagem, desmentem a idealização – cúmplice ou ingênua – de boa parte da academia e do ativismo latino-americanos. Porque, quando a libertação de Cuba finalmente acontecer, os cubanos não só estarão se emancipando de um Estado mafioso: também terão ferido de morte os totens ideológicos e morais de tantas outras pessoas, para além das fronteiras insulares.

           

Uma questão humanitária

Há uma última consideração que não pode ser negligenciada. A repressão aos protestos recentes coincide com as tentativas (vazadas à imprensa) do governo cubano de pedir ajuda material ao “inimigo histórico”: Estados Unidos. Especula-se, inclusive, que Havana esteja negociando, usando da ameaça de um êxodo migratório mais intenso do que o atual, para que Washington elimine todas as sanções e volte às relações estabelecidas na era Obama. Diante dessa conjuntura, alguns grupos de exilados e, em menor medida, a oposição que está em Cuba, insistem na posição de “não oxigenar a ditadura”. Tal situação, que reproduz a lógica binária da polarização, perpetua a condição de refém do povo cubano em relação ao regime.

huracão Ian - Pinar del Rio/Cuba

Rastro de destruição no distrito de Pinar Del Río, após a passagem do furacão Ian

Em meio a uma catástrofe natural que se soma à crise causada pelo fracasso do modelo castrista, é possível pensar numa rota alternativa, que não faça dos cubanos prisioneiros, entre a total eliminação das sanções tão desejada pela elite governante ou o reforço indiscriminado das mesmas a pedido dos exilados. A concessão massiva, imediata e transparente (segundo os ditames da cooperação internacional) de ajuda material à população atingida é imperativa. A questão do embargo é matéria para outra discussão.

A capacidade logística e financeira dos Estados Unidos e de outros países vizinhos está disponível. Entidades como a Cruz Vermelha e Cáritas, de reconhecido prestígio, imparcialidade e experiência, podem apoiar na entrega de ajuda aos afetados. As redes de ativismo que, em plena pandemia, se organizaram para garantir a chegada de remédios à ilha, poderiam se envolver neste projeto por meio da distribuição e fiscalização da ajuda. Por extensão, ajudariam a fortalecer o tecido social que está emergindo.

Nada disso significaria legitimar ou conceder mais poder do que já possui o Estado cubano. Mas seria um modo concreto e humano de atender centenas de milhares de pessoas. A Coreia do Norte, por exemplo, inimigo mortal dos Estados Unidos, recebeu ajuda na fome dos anos 1990. O Iraque trocou “petróleo por alimento” após a Guerra do Golfo. Nos dois casos foram salvas milhões de vidas, sem abrandar as sanções que pesavam sobre as duas tiranias. Em 2004, meses antes da onda repressiva chamada de Primavera Negra, o governo do republicano George W. Bush autorizou a venda de comida e remédios a Cuba, afetado pela passagem de outro ciclone. Há, portanto, antecedentes.

Sem deixar de lado as responsabilidades da elite cubana na crise nacional e nem abandonar as reivindicações em prol de uma transição democrática, a questão humanitária é urgente e adquire um papel relevante. Colocar no centro do debate a questão dos direitos humanos como irrenunciável, a partir da situação dos atingidos pelo ciclone e os presos políticos pelos protestos, é um imperativo não só possível como desejável. Nesse empenho deve estar alinhada a maior quantidade possível de atores internacionais, em especial aqueles de uma Europa e América Latina demasiado indolentes frente à situação da ilha.

A cidadania cubana, que começou a caminhar com seus próprios pés, não pode ser abandonada à própria sorte.

 

(Esse artigo foi publicado originalmente na revista LetrasLibres em 4/10/2022)

 

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