A nova Constituição cubana não reconhece o princípio da pluralidade política. No 24 de fevereiro de 2019, os cidadãos cubanos ratificaram em referendo o texto constitucional. Cerca de seis milhões de cubanos disseram “Sim” e mais de dois milhões mostraram, nas diferentes expressões de comportamento eleitoral legítimo, seu rechaço a esse texto. Assim, Cuba começará a ser regida por uma nova Carta Magna com legitimidade débil, na qual uma importante minoria social e política não encontra espaço de representação.
Esta legitimidade débil se assenta em três pontos essenciais: a substituição da soberania cidadã pela do Partido Comunista, a ausência estrutural de um Estado de direito e o fechamento de espaços à pluralidade. Ao que se soma a escassa legitimidade de representação política de uma presidência não eleita pelo povo.
Depois do 24 de fevereiro, o que? Esta é, sem dúvida, a pergunta mais pertinente. Tanto diante do governo quanto diante dos cidadãos. O debate público mais visível em torno da questão de saber se o referendo seria ou não aprovado pelos cidadãos cubanos desviou a atenção daquilo que, a meu ver, era o tema principal: se o referendo permitiria ou não verificar a ruptura estrutural da dinâmica política dos últimos 60 anos. Ou seja: a ruptura ou não do sentido holístico da chamada Revolução Cubana, expresso na unidade/unanimidade do povo em torno de seu modelo.
O poeta José Martí, considerado “pai-fundador” da Cuba independente, queria assentar a lei no culto à dignidade humana. O sonho de Martí exige o reconhecimento da pluralidade política
E a melhor notícia foi esta: a clara irrupção da pluralidade. Consolidou-se, em um só ato, a tendência que se configurava nos últimos processos eleitorais na Ilha, ao menos desde 2012: a existência social de uma minoria crítica marginalizada do sistema político – e, o que é significativo, marginalizada por outra minoria menor tanto em termos quantitativos como de transversalidade social.
Desse modo, Cuba transita da utopia à distopia, através de uma complicada normalização que põe fim à excepcionalidade latino-americana e na qual a diversidade e a pluralidade reinam na base social enquanto a supremacia se reitera no poder. A sociedade se des-comuniza enquanto o Estado se re-comuniza, agora como partido constitucionalmente único.
O que se apresenta face aos cubanos e à sociedade é, a meu ver, um desafio constitucional. E tentamos, um setor da comunidade civil pró-democracia em Cuba, oferecer uma resposta a esse desafio com a Proposta 2020.
Qual é o seu conceito? Converter o âmbito e a dinâmica constitucionais criados, a partir tanto do processo quanto da própria Constituição, em um campo de ação cívica e política preferenciais para a cidadania e a sociedade civil, a fim de alcançar a meta política pendente: um Estado democrático de direito. Para nós, o 24 de fevereiro culminou a reforma constitucional do Partido Comunista. Um dia depois, no 25 de fevereiro, começa a reforma constitucional a partir de baixo, isto é, dos cidadãos.
São três as linhas de ação definidas pela Proposta 2020:
1) O diálogo deliberativo permanente com os cidadãos em suas comunidade em torno da própria Constituição, dos direitos limitados que ela reconhece e das novas iniciativas de lei que podem e devem ser gestadas a partir da cidadania;
2) O apoio cidadão a propostas de reforma constitucional que sintonizem as demandas compiladas nos debates populares sobre o anteprojeto de Constituição, que ainda não foram codificadas, com o próprio ordenamento constitucional, de modo que a Constituição se assemelhe cada vez mais ao país;
3) O apoio cidadão a iniciativas de lei que regulem – a favor da cidadania, e não do Estado – certos direitos constitucionais reconhecidos na nova Constituição.
Este desafio constitucional tem uma aresta crítica que interessa enfatizar. Num sentido chave, a nova Constituição é antinacional. Devido a comando do Partido Comunista de Cuba, três de seus artigos não foram incluídos na discussão cidadã. Os três tocam, por um lado, na raiz da soberania popular e, ao mesmo tempo, determinam nossa pertinência nacional como cubanos.
Nesse sentido, e a rigor, os cubanos só ratificaram 226 dos 229 artigos da nova Constituição. O artigo um, que define a natureza do Estado como socialista; o artigo quarto, que estabelece a irrevogabilidade de um modelo decretado a partir do Estado, e o artigo quinto, que estabelece a supremacia ideológica de uma parte (o Partido Comunista) sobre o todo diverso e plural da nação, conformam a trilogia constitucional excluída do debate e excludente no interior da Constituição. A trilogia ataca, precisamente, esse núcleo de soberania que confere legitimidade aos Estados nas constituições modernas. Sobre eles, o Estado cubano decidiu que não se poderia “falar; falar e nem mesmo sussurrar”, como disse um renomado filósofo a propósitos de outros, mais esotéricos, assuntos.
Portanto, o Estado cubano não pode reivindicar legitimidade popular para este triplo núcleo de soberania depois do 24 de fevereiro. Mas os cidadãos estamos obrigados a recuperá-lo se queremos que a Constituição repouse sobre fundamentos nacionais – o que é, certamente, a única maneira de descolonizá-la. Porque a Constituição cubana é, provavelmente, a única que tem dois estrangeiros como referências chave.
Se o momento em Cuba é constitucional, então as demandas essenciais são de reconhecimento, participação e inclusão políticos. É a política o que tornará possível satisfazer as demandas sociais e econômicas dos cubanos. Não o contrário.
Manuel Cuesta Morúa trabalhou no Museu de História, em Havana, entre 1988 e 1991, até ser demitido devido às suas ideias políticas. É um dos dirigentes da organização dissidente Corrente Socialista Democrática. Por seu ativismo oposicionista, foi preso várias vezes
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