Acumulam-se evidências de que crimes de guerra estão sendo cometidos pelo exército russo contra os ucranianos. Na última semana, desde que as tropas se retiraram das cidades de Bucha e Irpin, localizadas nos arredores de Kiev, diversos veículos de imprensa constataram: civis foram transformados em alvos deliberados com o intuito de causar pânico e devastar centros urbanos.
Civil com tiro na têmpora e mãos amarradas, em Bucha, um sinal inconteste dos crimes de guerra
Na sexta-feira, 8 de abril, mísseis foram lançados contra a estação ferroviária da cidade de Kramatorsk, onde cerca de quatro mil pessoas, majoritariamente mulheres e crianças, aguardavam os trens para fugirem da guerra. O Kremlin, contra todas as evidências, ergueu a tese cínica de uma ação da própria Ucrânia.
A mentira faz parte da guerra, mas a torrente de fake news emanada de Moscou só ilude indivíduos hipnotizados pela ideologia. Desde o início da invasão, a Anistia Internacional e outras entidades de direitos humanos acusam crimes de guerra russos. Um dos mais notórios: o uso de bombas de fragmentação proibidas por tratados internacionais.
O recuo das tropas russas das proximidades de Kiev desvendou os crimes de guerra cometidos pelas forças de ocupação, que se estendem do assassinato a sangue frio de civis, passando por estupros, bombardeio de hospitais e ambulâncias até saques e destruição de infraestruturas necessárias à manutenção da vida civil. Cada um desses atos está previsto nos protocolos das Convenções de Genebra, base do direito humanitário.
Além de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a Rússia também integra o Conselho de Direitos Humanos, de onde acaba de ser suspensa pela maioria dos países, em 7 de abril. Vergonhosamente, o Brasil se absteve. Os governos da Argentina e do Chile, ligados à esquerda democrática latino-americana, cumpriram o dever de votar pela suspensão.
Desde o início da invasão, a destruição de edificações de uso estritamente civil, como maternidades, teatros e bibliotecas chamava a atenção, mas ainda poderia ser atribuída a “danos colaterais”, ou seja, alvos acidentais, não deliberados. Moscou, por sua vez, alega que as denúncias são mentirosas e parte da “propaganda de guerra”.
No entanto, o cerco russo à estratégica cidade portuária de Mariupol, no mar de Azov, e as ações militares levadas a cabo até agora evidenciam a aplicação da mesma tática usada na cidade de Grosny durante a Guerra da Chechênia, ou em Aleppo, na guerra síria. Em ambos os casos, as cidades foram sistematicamente bombardeadas até que não houvesse muito pelo que lutar e nem pessoas para fazê-lo, mortas aos milhares ou obrigadas a fugirem para sobreviver.
O bombardeio do teatro de Mariupol, onde 600 pessoas estavam abrigadas, é um caso exemplar. Nele, havia uma enorme inscrição com a palavra “crianças”, perfeitamente visível do céu, para alertar pilotos de guerra. Agora o teatro não existe mais, nem a metade das pessoas que estavam ali, mortas por um míssil. Imagens de satélites, relatos de refugiados e informações do prefeito local indicam a destruição de praticamente 80% das edificações de Mariupol. A mesma tática de destruir tudo. O conceito é não mais haver “lar” para onde retornar.
Imagem do teatro de Mariupol obtida pelo satélite Maxar. Escrita em russo, a palavra “crianças” deveria evitar que elas se tornassem alvos da guerra
No início de abril, Bucha e Irpin ocuparam as manchetes e provocaram comoção internacional pois as provas dos crimes de guerra cometidos pelas forças ocupantes estavam espalhadas nas ruas, sob a forma de corpos de civis insepultos.
A retirada russa possibilitou a chegada de repórteres e investigadores independentes da Human Rights Watch e da Anistia Internacional, que documentam os casos e colhem depoimentos capazes de funcionar como provas judiciais. Em todos eles, feitos com pessoas diferentes, em locais diferentes, destaca-se a convergência de relatos incriminando os soldados russos e a ausência de qualquer versão que corrobore as lendas difundidas pelo Kremlin.
Em uma das conversas interceptadas pela inteligência alemã, um soldado russo comenta de modo banal com seu interlocutor que havia acabado de atirar em um civil de bicicleta
Segundo Hugh Williamson, diretor da Human Rights Watch, “os casos documentados representam crueldade e violência indescritíveis e deliberada contra civis ucranianos”. Reportagem da revista alemã Der Spiegel publicada em 7 de abril revela que as agências de inteligência da Alemanha captaram conversas de rádio entre soldados russos com indícios consistentes de que as atrocidades cometidas em Bucha fazem parte do plano de ocupação. Há ligação direta entre tais diálogos e as fotos dos corpos encontrados pela principal avenida que corta a cidade. As gravações oferecem provas com alto potencial para, um dia, conduzir Vladimir Putin ao Tribunal Penal Internacional.
O direito humanitário internacional tomou forma no final do século XIX e ganhou grande importância a partir da Primeira Guerra Mundial, em uma tentativa de disciplinar a violência militar contra populações civis e também garantir os direitos dos próprios combatentes. O Tribunal Penal Internacional, criado em 1998, foi mais um passo fundamental, pois pretende levar a julgamento não simples soldados, mas os responsáveis pelas decisões de violações às leis de guerra e aos direitos humanos. Tais crimes são considerados imprescritíveis.
Desde o início da agressão russa, em fevereiro, o presidente russo alega que o objetivo da operação é “libertar os ucranianos de forças neonazistas”. No entanto, essa extrema-direita é personificada por um único grupo, o núcleo original do Batalhão Azov. Nas últimas eleições ucranianas, a extrema-direita obteve cerca de 2% dos votos. Enquanto isso, os cidadãos russos estão proibidos de usar a palavra “guerra” para fazer referência à “operação militar especial” de Putin, sob ameaça de 15 anos de prisão.
A cidade sitiada de Mariupol é a base do Batalhão Azov, uma circunstância utilizada pelo Kremlin para justificar a matança e a destruição indiscriminadas. As autoridades russas atribuem os crimes de guerra aos membros do batalhão, em conluio com o governo de Volodymyr Zelensky. Enquanto isso, mercenários do Grupo Wagner – os cães de guarda do Kremlin – são apontados como responsáveis por várias das atrocidades praticadas na Ucrânia. Como o acesso à cidade por observadores independentes é quase impossível, esses eventos permanecem na esfera das “narrativas de guerra”, onde a verdade é sempre a primeira vítima.
Jornalista observa as bombas que caem sobre Mariupol. Foto: Evgeniy Maloletka (flickr)
O argumento de Vladimir Putin só engana quem quiser ser enganado: o problema russo é garantir a ligação entre as zonas ocupadas no leste e no sul da Ucrânia, além do acesso ao Mar Negro, uma questão geopolítica fundamental para o país. Confrontados com a tenaz resistência ucraniana, as forças russas recuaram em direção ao leste, na tentativa de ocupar toda a região do Donbass. No estágio atual, após o revés inicial, a agressão russa destina-se a concluir a ocupação iniciada em 2014, com a anexação da Crimeia e a criação de repúblicas separatistas em Donetsk e Luhansk. Nenhum princípio do direito humanitário parece capaz de desviar Putin desses objetivos.
Disponíveis nas redes sociais, enxurradas de artigos e vídeos que tem o intuito de justificar a guerra de agressão. São alegações supostamente históricas e geopolíticas que, de forma mais ou menos explícita, repetem a cantilena putinista sobre a “culpa do Ocidente” e dos neonazistas que infestariam a Ucrânia. O Batalhão Azov virou o escudo mágico que justifica a violação sistemática das leis de guerra.
Um dos vídeos falsos mostraria “milhares de neonazistas brasileiros indo para a Ucrânia desde 2015 para receber treinamento militar com o intuito de iniciar uma guerra racial no país”. Sob o ponto de vista dos promotores das correntes de propaganda putinista, o direito à autodeterminação só vale quando se trata de guerras conduzidas por potências ocidentais.
Em que momento perdeu-se a bússola? Quando os princípios universalistas da Declaração Universal dos Direitos Humanos passaram a variar ao sabor de opções ideológicas?
No Brasil, pela extrema-direita e pela esquerda, erguem-se vozes de líderes para declarar, pomposamente, que “não existem mocinhos e bandidos nessa guerra”. De fato, mocinhos e bandidos só existem no cinema e nos contos infantis. Contudo, nesse momento, a frase aparentemente inócua ajuda a minimizar os crimes de guerra cometidos pelas forças russas numa guerra de agressão.
Detalhe de área civil na capital, Kiev, destruída por bombardeio indiscriminado russo
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