“O Secretário-Geral da ONU apelou às partes em conflito a respeitar as leis de guerra”, insistiu Filippo Grandi, Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados. E reiterou: “A cada dia que passa, esse apelo é mais urgente”. A província de Idlib é palco de um perigoso confronto geopolítico e, simultaneamente, de uma das mais dramáticas crises humanitárias da longa guerra síria. Nos últimos meses, cerca de 900 mil pessoas, ameaçadas por fogo cruzado tiveram que abandonar suas casas e povoados. As partes em conflito bombardeiam o direito humanitário.
A guerra na Síria encontra-se em seu capítulo derradeiro. A província de Idlib é o último bastião relevante das forças rebeldes, hoje basicamente constituídas por grupos jihadistas. O avanço militar das forças da ditadura síria de Bashar al Assad, auxiliadas por destacamentos iranianos e milícias xiitas libanesas do Hezbollah, tem apoio aéreo russo. Os rebeldes, por sua vez, alinham-se taticamente com a Turquia, que controla uma zona-tampão junto à fronteira turca e instalou postos de observação em Idlib. É iminente um choque direto entre Síria e Rússia, de um lado, e Turquia, integrante nominal da OTAN, de outro.
No confronto geopolítico, a Turquia está encurralada. Depois de tensionar seus laços com os EUA, adquirir um sistema antiaéreo russo e costurar o acordo com Moscou que abriu-lhe caminho para a implantação da zona-tampão, o governo turco encara um desafio militar inédito. As alternativas parecem se resumir a uma inglória retirada ou enfrentar, no campo de batalha, um inimigo que tem o crucial controle dos ares.
Recep Erdogan, o presidente turco, só dispõe de opções desagradáveis. Contudo, os civis de Idlib não dispõem de nenhuma opção. Só podem fugir dos bombardeios rumo ao norte da província, na faixa contígua à fronteira turca, ou rumo à região de Aleppo, controlada pelo regime de Assad. “Milhares de pessoas inocentes não podem pagar o preço de uma comunidade internacional dividida, cuja incapacidade de encontrar uma solução para esta crise deixará uma marca profunda em nossa consciência coletiva”, alerta Grandi.
As leis de guerra determinam que as partes em conflito devem evitar bombardeios contra civis e prover assistência humanitária a populações deslocadas. As duas obrigações têm sido ignoradas na crise de Idlib.
A cidade de Idlib foi tomada pelos rebeldes em 2015. Diversos grupos armados assumiram o controle da região. O principal é o Hayat Tahrir al-Sham, uma organização jihadista com raízes na Al-Qaeda. Mas estão presentes, ainda, o Exército Nacional Sírio, formado por fundamentalistas alinhados à Turquia, uma nova organização ligada à Al Queda e militantes jihadistas uigures oriundos da região chinesa de Xinjiang, além de fragmentos do derrotado Estado Islâmico.
Nos anos seguintes à conquista pelos rebeldes, um imenso influxo de refugiados internos dobrou a população da província. Estima-se que, nela, residam atualmente cerca de três milhões de civis, inclusive um milhão de crianças, metade dos quais são deslocados internos. Muitos deles vivem nessa condição há anos e experimentaram múltiplos deslocamentos. Entre os 900 mil que sofreram novo deslocamento nos meses recentes, quatro quintos são mulheres e crianças.
Deslocados internos em Idlib, em fevereiro de 2020
A ofensiva do governo sírio chegou a Idlib em pleno inverno. Nevascas, temperaturas abaixo de zero, chuvas e inundações acompanham a fuga de civis. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) está engajado na assistência a 55 mil famílias que não têm acesso a itens essenciais como alimentos, roupas e remédios, além de providenciar tendas para outras 14 mil famílias. Mas, “deixe-me ser claro”, explica Grandi, “a janela para esse esforço está se estreitando”. Só uma ação diplomática urgente poderia aliviar a catástrofe humanitária.
O cenário é sombrio. Os EUA praticamente abandonaram o teatro de guerra desde que, meses atrás, traíram seus aliados curdos. Mike Pompeo, secretário de Estado americano, classificou os bombardeiros russos e sírios como uma “escalada num conflito já perigoso”, numa declaração tão óbvia quanto vazia. A prioridade do líder russo Vladimir Putin é auxiliar o regime sanguinário sírio a consolidar seu triunfo, pela reconquista de Idlib. A Turquia, que abriga 3,6 milhões de refugiados sírios e acalenta o projeto de transferi-los para a zona-tampão que estabeleceu no norte da Síria, definiu como prioridade proteger seus aliados fundamentalistas cercados em Idlib.
Aviões russos e sírios bombardeiam povoados controlados pelos rebeldes. As forças sírias avançam pelo sul da província, através da rodovia M4, que liga Aleppo a Latakia, no litoral do Mediterrâneo. Mark Lowcock, coordenador das operações de emergência do ACNUR, informou que os combates atingem, indiscriminadamente, centros de saúde, escolas, mesquitas e mercados – e que deslocados dormem ao relento, sob gélidas temperaturas. “Crianças pequenas e nenês estão morrendo sob o frio. Os próprios funcionários da ajuda humanitária estão sendo mortos e deslocados.”
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