Quase um décimo da população da Ucrânia tinha fugido do país no início do segundo mês da guerra. Segundo o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), eram mais de 3,7 milhões de refugiados em 27 de março, 32 dias depois da deflagração da guerra de agressão pela Rússia. Além deles, contavam-se cerca de 6,5 milhão de deslocados internos.
No total, entre refugiados e deslocados internos, quase um quarto da população foi forçado a deixar seus locais de residência. Trata-se de um êxodo comparável a tragédias provocada pela Primeira Guerra Mundial (1914-18). “Putin está escrevendo um novo capítulo na história dos deslocamentos humanos”, explicou o historiador Andreas Kossert.
Fonte: Acnur/Al Jazeera
Os refugiados são, basicamente, mulheres, crianças e idosos, pois os homens adultos de menos de 60 anos estão proibidos, pelas leis de guerra, de deixar o país. A vasta maioria dos refugiados transferiu-se para a Polônia (mais de 2,2 milhões). Romênia, Moldávia, Hungria e Eslováquia, os outros vizinhos ocidentais, receberam em conjunto algo como 1,6 milhão de ucranianos. Uma parcela incomparavelmente menor transferiu-se para a Rússia ou para sua aliada Belarus.
Durante a fase inicial da invasão russa, o fluxo de refugiados atingiu a marca de um milhão por semana. No final do primeiro mês, reduziu-se para menos de metade disso.
A União Europeia agiu rapidamente. Em 3 de março, invocou sua diretiva de proteção temporária, concedendo aos refugiados os direitos de residência, trabalho e benefícios sociais. Na crise dos refugiados de 2015, a história foi diferente. Com exceções honrosas, como a Alemanha e a Suécia, os sírios que fugiam da guerra tiveram que experimentar longos processos burocráticos nacionais de avaliação de solicitações de asilo e muitos acabaram relegados a campos de confinamento.
O contraste tem motivações etno-religiosas e geopolíticas. Os ucranianos são europeus cristãos, não árabes muçulmanos. Os principais países de destino percebem a invasão da Ucrânia como um sinal de que o regime russo de Vladimir Putin poderia, em caso de sucesso, colocá-los numa futura alça de mira. A solidariedade é, num sentido muito específico, um gesto de autodefesa.
Romenos aguardam na fronteira com a Ucrânia para receber refugiados em seus próprios veículos, em 25 de fevereiro, Dia 1 da guerra
“Os refugiados nos recordam de que nós também não podemos ter certezas sobre nossa segurança”, nas palavras de Kossert. Significativamente, o governo semi-autoritário húngaro de Viktor Orban, que erguera uma cerca na fronteira para impedir o ingresso dos sírios, aceitou receber centenas de milhares de ucranianos e o partido alemão de extrema-direita AfD permanece em silêncio sobre o novo fluxo de refugiados.
Há um fator complementar, não desprezível: a crença de que o êxodo ucraniano é um movimento temporário, de curta duração. A Ucrânia resiste tenazmente à agressão russa e os refugiados nutrem a esperança de, logo, tomar o caminho de volta.
Em 24 de março, o presidente Joe Biden prometeu que os EUA receberiam até 100 mil refugiados e contribuiria com um bilhão de dólares para financiar o esforço europeu de acolhimento. Ao mesmo tempo, o Canadá, país que abriga a maior diáspora ucraniana depois da Rússia, comprometeu-se a receber tantos ucranianos quanto necessário.
Tudo se complica na hipótese de que o conflito se estenda, convertendo-se em mais uma das “guerras congeladas” do Exterior Próximo russo. No caso da crise de 2015, a prolongada permanência dos refugiados desaguou numa extensa reação do populismo de direita. Os partidos nacionalistas experimentaram sucessos eleitorais, a liderança da alemã Angela Merkel sofreu forte abalo e a União Europeia firmou um amargo acordo com a Turquia destinado a conter os fluxos de sírios, iraquianos e afegãos.
Um grupo na rede social Telegram registrou mais de 10 mil pessoas na Europa dispostas a acolher refugiados em suas residências. “É um tempo de pedagogia”, afirmou, com certa dose de otimismo, Harlem Désir, do Comitê de Resgate Internacional, uma ONG dedicada a refugiados, imaginando que a tragédia ucraniana modifique as atitudes europeias em relação a populações diaspóricas mais distantes. Talvez, mas no momento o cenário já se revela bastante desafiador.
Refugiados ucranianos na fronteira com a Eslováquia, em 27 de fevereiro
A Moldávia, onde o russo funciona como segunda língua, já recebeu 380 mil ucranianos, cerca de 15% de sua população. Varsóvia, capital polonesa, sofre o impacto da chegada repentina de mais de 300 mil refugiados, um incremento populacional de quase 20%. Mais de 10 mil ucranianos chegam diariamente a Berlim, onde alguns centros de refugiados foram forçados a colocar ucranianos em acomodações que estavam ocupadas por sírios ou afegãos.
As imagens de estações de trens apinhadas de ucranianos em fuga sugerem custos muito elevados de recepção da nova diáspora. É uma falsa percepção. Estima-se que, na hipótese razoável de que o fluxo atinja a marca de 4 milhões, as quatro maiores potências da União Europeia gastariam algo em torno de 0,2% do PIB em toda a operação de acolhimento e auxílio. Por outro lado, todos os demais dispêndios relacionados à guerra totalizariam 1,1% do PIB – e isso, excluindo-se a alternativa de um corte súbito das importações de gás russo.
O problema é político, não financeiro.
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