PUTIN E O VOLK RUSSO

 

O Volk alemão assombrou a Europa, entre 1933 e 1945. Hoje, o Volk russo, uma invenção de Vladimir Putin, volta a assombrar a Europa.

A palavra alemã Volk significa “povo”. O nacionalismo alemão atribui-lhe um conteúdo étnico: fariam parte do Volk todos os integrantes da “cultura alemã”, dentro ou fora da Alemanha. Adolf Hitler ergueu sua reivindicação expansionista da “Grande Alemanha” sobre esse conceito de “sangue”.

A marcha da expansão começou em março de 1938, com o Anschluss (anexação da Áustria). O passo seguinte veio a transferência dos Sudetos para o Reich, com o vergonhoso Acordo de Munique, auge da política de “apaziguamento” conduzida por franceses e britânicos, em setembro de 1938. Daí, abriu-se caminho à imposição do protetorado alemão sobre a Boêmia e a Morávia (atual República Tcheca).

Nos primeiros anos da guerra mundial, Hitler fez as fronteiras do Reich coincidirem com as do Volk. As conquistas da maior parte da Polônia, do Tirol e da Alsácia-Lorena formaram a “Grande Alemanha” de 1943.

Putin sonha com uma “Grande Rússia” ancorada no Volk russo. A invasão da Ucrânia deriva, ao menos parcialmente, dessa febril meta geopolítica.

 

Os “russos do exterior”

O Estado-Nação fundamenta-se nos conceitos de nacionalidade e cidadania, que decorrem da política, não da “cultura” ou do “sangue”. Putin, porém, inspirado por uma coleção de ideólogos da restauração da “Grande Rússia” adotou o conceito étnico de Volk. Dele, extraiu o objetivo de política externa de proteção dos “russos do exterior”.

No intervalo que separa o fim dos conflitos civis na Transnístria e na Ossétia do Sul (1992) da anexação da Crimeia e do amparo aos enclaves separatistas no Donbass (2014), a Rússia estabeleceu presença militar no Azerbaijão, na Geórgia e na Ucrânia. Na prática, a soberania dos três países foi seriamente mutilada.

Os enclaves da Ossétia do Sul e da Abkhazia, na Geórgia, e da Transnístria, na Moldávia, surgiram de intervenções russas nos conflitos os dois Estados e minorias étnicas regionais, em 1992-93. O enclave de Nagorno-Karabakh, região povoada por armênios étnicos no Azerbaijão, consolidou-se após uma guerra entre os dois países, concluída por interferência russa em 1994. Na época, o governo russo de Boris Yeltsin não sonhava com a restauração de uma “Grande Rússia”, mas aproveitava-se de conflitos na Moldávia e na região do Cáucaso para estabelecer um “cordão de segurança” externa.

Putin mudou as regras do jogo. As minorias étnicas separatistas passaram a ser definidas como russos e a presença militar da Rússia nos enclaves foi estabilizada. Depois, em agosto de 2008, uma planejada provocação dos separatistas ossétios propiciou uma operação militar russa na Geórgia que se concluiu pela expulsão em massa de georgianos dos enclaves da Ossétia do Sul e da Abkhazia.

A revolução popular ucraniana de 2013-14, que derrubou o governo pró-russo de Viktor Yanukovich, funcionou como centelha para a intervenção militar da Rússia. Em março de 2014, forças russas invadiram a península da Crimeia, que foi anexada na sequência. Simultaneamente, forças especiais russas sem insígnias sustentaram a tomada dos enclaves de Donetsk e Luhansk, no Donbass ucranianos, por milícias separatistas.

Finalmente, em setembro de 2020, após a derrota da Armênia em novo conflito com o Azerbaijão pelo controle de Nagorno-Karabakh, a Rússia ditou os termos do cessar-fogo e passou a operar como força de paz no enclave.   

 

Novorossiya

Fonte: The Guardian, 5/3/2022

Na Geórgia, em 2008, e na Ucrânia, em 2014, a Rússia fabricou conflitos internos e os congelou com a finalidade de impedir que os dois países viessem a se tornar candidatos ao ingresso na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). O fundamento da OTAN é seu artigo 5º: o compromisso de defesa mútua contra agressão externa. Por isso, a aliança militar ocidental não incorporaria integrantes com tropas russas em seus territórios, gesto que conduziria à guerra entre EUA e Rússia.

Mas a motivação explícita do Kremlin esconde a motivação profunda de Putin, como ficou evidenciado pela invasão russa da Ucrânia, em 2022. A hipótese remota de adesão da Ucrânia à OTAN estava fora do radar desde 2014. Mesmo assim, a Rússia atacou.

A invasão russa ocorreu seis meses após a queda de Cabul. A fragorosa derrota americana no Afeganistão provavelmente estimulou Putin a tirar proveito da percebida fraqueza dos EUA.

Putin também agiu sob pressão da revolta popular que abalou a Belarus, entre maio de 2020 e março de 2021, e dos protestos de massa que irromperam no Cazaquistão em janeiro de 2022. Nos dois casos, ditaduras aliadas do Kremlin foram surpreendidas pela extensão do descontentamento interno – e, no Cazaquistão, os protestos só foram aplastados pelo envio de tropas russas.

O chefe do Kremlin teme os povos. A eventual estabilização de uma democracia europeia na Ucrânia configuraria um exemplo perigoso para a Belarus, o Cazaquistão e a própria Rússia. A invasão, seguida de intensa repressão contra manifestantes e os raros veículos de imprensa independente na Rússia, destina-se a reforçar os alicerces do autoritarismo putinista.

Contudo, mais uma vez, as razões de fundo da invasão situam-se no solo tóxico do conceito de Volk. Nas planícies ucranianas, Putin deflagrou o passo mais ousado na sua aventura de restauração da “Grande Rússia”.

O objetivo final da guerra de agressão era instalar um regime fantoche na nação vizinha, não ocupá-la duradouramente. Sobretudo, porém, era esculpir a Novorossiya, separando o leste e o sul da Ucrânia do restante do país.

Novorossiya (Nova Rússia) foi o nome de uma província do Império Russo criada no século XVIII. A ideia de sua reconstituição, como parte da Rússia, habita as mentes de ideólogos expansionistas que giram ao redor do Kremlin e, desde 2014, dos líderes separatistas do Donbass ucraniano. Putin a adotou como elemento crucial na sua estratégia de “reunificação” do Volk russo.

Putin e o Volk russo

No leste e sul da Ucrânia, o russo é a língua mais falada, enquanto no resto do país a língua principal é o ucraniano. Língua não é prova de identificação nacional. Diversas pesquisas indicavam, mesmo antes da guerra de agressão russa, que uma vasta maioria dos ucranianos russófonos identificam-se como ucranianos, não como russos. Mas, do ponto de vista de Putin, pouco importa o que pensam os cidadãos da Ucrânia. De acordo com seu dogma da nação “de sangue”, a Ucrânia que fala russo é Novorossiya.

Do nacionalismo étnico emanaram os mais assustadores crimes contra a humanidade cometidos no século XX. A Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu como resposta aos crimes do nazismo, provocados pela obsessão de Hitler com a unificação do Volk no “Reich de mil anos”. A Rússia atual não é uma reedição da Alemanha nazista e Putin não é uma nova encarnação de Hitler. Mas, na terceira década do século XXI, em nome da “nação de sangue”, o chefe do Kremlin ordenou a destruição de cidades ucranianas e a aniquilação de milhares de vidas.

 

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