CURDOS ENFRENTAM ESPECTRO DA LIMPEZA ÉTNICA

 

Patrícia Campos Mello

(Repórter especial e colunista da Folha de S. Paulo)
28 de outubro de 2019

 

Cadáveres de curdos que tentavam escapar de Halabja, no Iraque, em 16 de março de 1988

Diz um velho ditado que os únicos amigos dos curdos são as montanhas. Era para lá que eles fugiam quando lutavam contra o governo turco, que tentava acabar com a guerrilha separatista do PKK. Também tentaram se esconder nas montanhas ao serem perseguidos pelo ditador iraquiano Saddam Hussein, que acabou dizimando 5 mil curdos no ataque com armas químicas de Halabja, em 1988, no fim da guerra Irã/Iraque.

Agora, mais uma vez, os curdos se viram sem amigos – e, dessa vez, nem têm como fugir para as montanhas.

O presidente americano Donald Trump, além de trair os principais aliados dos EUA na luta contra o Estado Islâmico, agora está mandando eles se mudarem para o deserto, a centenas de quilômetros de onde moram, no norte da Síria. “Gostei muito de minha conversa com o general Mazloum Abdi (comandante das forças curdas na Síria). Ele aprecia tudo o que fizemos, e eu aprecio o que os curdos fizeram. Talvez esteja na hora de os curdos pensarem em ir para a região do petróleo”, disse o republicano no Twitter, após anunciar que os americanos só manteriam tropas para garantir a segurança dos campos de petróleo. Logo depois, Erdogan pediu a Trump nada menos que a extradição de Abdi.

Nos últimos meses, a pedido dos americanos, as milícias curdas sírias, YPG, desmantelaram toda sua estrutura de defesa na fronteira com a Turquia, todos os seus túneis e depósitos de armas. Segundo os EUA, era uma maneira de acalmar os turcos, membros da OTAN, e convencê-los de que os curdos sírios não eram uma ameaça. E os americanos tranquilizaram os curdos: nós estaremos aqui para garantir que não haverá problemas.

Pois bem, após lutarem ao lado dos EUA por 5 anos e perderem 10 mil homens e mulheres combatendo o Estado Islâmico, os curdos foram abandonados, em um momento em que estavam completamente vulneráveis ao exército da Turquia e as forças rebeldes bancadas pelo presidente Recep Erdogan.

Com a debandada dos EUA e o acordo firmado entre Rússia e Turquia, os maiores perdedores são os curdos. Está enterrado o sonho de ter um país – Rojava, como é chamada a região autonôma que eles vinham formando desde 2012, quando as tropas do ditador Bashar Assad tiveram de se concentrar no sul dos país, com o recrudescimento da guerra.

 

Crimes de guerra

Curdos enfrentam espectro da limpeza étnica

Bashar Assad, Vladimir Putin e Recep Erdogan. Aqui, só faltava Donald Trump

Bashar, e antes seu pai, Hafez, conduziram inúmeras campanhas de intimidação e prisão de curdos, proibiram que falassem kurmanji e promoveram uma arabização na região deles. Hoje, depois de sete anos livres do jugo do regime sírio, os curdos tiveram que entrar em um acordo com Assad para não serem destruídos pelos turcos – acordo que certamente acabará com qualquer possibilidade de autonomia para eles.

O ditador sírio – aquele que os EUA diziam que ia cair em alguns meses após os levantes da Primavera Árabe – não apenas conservou seu regime como vem ganhando a guerra. Já reconquistou controle de cerca de um terço do território sírio que antes estava sob poder dos curdos, sem dar um único tiro. Graças a Trump.

Os russos consolidaram sua crescente influência no Oriente Médio. E Erdogan marcou pontos com seu público doméstico, após sofrer um revés político com a vitória da oposição em Istambul, e em um momento de fragilidade econômica. Os turcos passam a dividir com os russos a patrulha de um corredor ao longo de 440 quilômetros da fronteira com a Síria, desalojando os curdos que antes lá estavam.

O líder turco pretende ir bem mais longe, transferindo 2 milhões de refugiados árabes sírios que estão na Turquia para a “zona de segurança” negociada com os russos. O experimento de substituição de populações provocaria uma “limpeza étnica” em larga escala – ou seja, um desastre humanitário de grande magnitude.

Dentro da “zona de segurança”, estão algumas das principais cidades de Rojava – Kobane, Qamishli, Amouda, Sere Kanye, e outras. A Anistia Internacional já alertou que as forças turcas e as milícias apoiadas pela Turquia (o antigo Exército Livre da Síria) estão cometendo “sérios crimes de guerra, incluindo execuções sumárias e ataques que mataram e feriram civis”.

Curdos enfrentam espectro da limpeza étnica

Fonte: BBC

“Os militares turcos e seus aliados têm mostrado desprezo total por vidas de civis, fazendo ataques em zonas residenciais que mataram e feriram civis”. Por dia, cerca de mil curdos sírios estão chegando no Curdistão iraquiano.

Trump causou mais uma crise de refugiados. E, ao falar de deslocamento em massa dos curdos “para a região do petróleo”, flerta com a limpeza étnica.

 

 

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