O IRA E A QUESTÃO IRLANDESA

 

 

 

Finda a guerra civil irlandesa, em 1923, a Irlanda foi dividida em duas entidades políticas: o Eire, católico, ou simplesmente Irlanda, com capital em Dublin, e a Irlanda do Norte, protestante, ou Ulster, com capital em Belfast. Mas, para os nacionalistas irlandeses, a manutenção de uma parte do que consideravam seu território sob controle inglês era inadmissível e, portanto, a luta pelo direito à autodeterminação de toda a nação irlandesa não estava encerrada.

Contudo, as décadas seguintes, de depressão econômica, fascismos e Segunda Guerra Mundial concentraram as atenções em outros temas.  Ainda assim, o Estado Livre da Irlanda soube aproveitar o momento quando, em 1937, aprovou unilateralmente a primeira carta constitucional do país, enquanto a atenção britânica estava voltada para a Alemanha. E deixou clara a visão do Estado irlandês sobre a situação: o segundo e o terceiro artigos da Constituição estabeleciam a luta pela incorporação do Ulster e pelo fim da soberania britânica como fundamentais para a nação. Divisão UK e EIRE

 

Uma nova era de autodeterminação

Para ter o apoio dos Estados Unidos na guerra contra o Eixo, Winston Churchill teve que admitir princípio de autodeterminação dos povos. Em dezembro de 1948 o Reino Unido votou a favor da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em 1949, Londres aceitou a independência do Eire, agora República da Irlanda (segundo Ireland Act), mas manteve o controle sobre o Ulster, para o qual ainda valia a regra do acordo de independência, de que nada mudaria sem o consentimento da maioria protestante.

E esse era o aspecto complexo da situação pois, naquele território já determinado (as seis províncias do norte), ao longo de séculos, ingleses ali estabelecidos tornaram-se irlandeses por nascimento. Era natural que se considerassem com iguais direitos sobre as terras. E defendiam a união com a Inglaterra, sendo chamados de unionistas ou legalistas. É claro que Londres tinha todo o interesse em se aproveitar disso para manter o controle sobre aquela parte do território vizinho.

E assim como no caso do IRA entre os nacionalistas irlandeses, entre os norte-irlandeses mais radicais também houve a formação de grupos armados dispostos à “guerra suja”. A principal diferença é que no caso dessas milícias unionistas, o aparato policial e jurídico existente estava do mesmo lado, o lado inglês. As profundas convicções e os ódios arraigados de ambas as partes deixariam um rastro de sangue pelo caminho.

 

Troubles

Nos anos sessenta – época de Guerra Fria, descolonização e lutas de minorias por direitos civis – os católicos na Irlanda do Norte começaram a se organizar para denunciar a pobreza em que viviam e a discriminação que sofriam de um governo preocupado em garantir o status quo da maioria protestante. Um exemplo: as leis eleitorais favoreciam as famílias mais ricas, o que dava o controle dos distritos de maioria católica à elite protestante.

No final daquela década teve início um período turbulento que se estenderia até 1997, denominado Troubles. A palavra pode ser traduzida como problema/dificuldade/encrenca, mas costuma ser usada como sinônimo de conflito violento.

A crise se estabeleceu quando o governo de Belfast decidiu reprimir a campanha pelos direitos civis que ganhava força entre os católicos. A intervenção piorou a tensão e os choques entre as duas comunidades se multiplicaram, a ponto de muros serem construídos em alguns bairros para separarem os inamistosos vizinhos. A repressão alcançou o auge no episódio conhecido como Domingo Sangrento, quando agentes britânicos enviados para apaziguar a situação abriram fogo contra uma manifestação pacífica deixando 13 mortos. Era dia 30 de janeiro de 1972. 

Domingo Sangrento

Mural em memória ao Domingo Sangrento na cidade de Derry na Irlanda do Norte, quando o Exército Britânico abriu fogo contra manifestantes de direitos civis, deixando 13 pessoas mortas e pelo menos 15 feridas. A ação foi feita no bairro de Bogside, uma área predominantemente católica da cidade. 

A brutalidade injustificada fez com que o governo em Londres ordenasse o fechamento do parlamento de Belfast. Foi nomeado um interventor para o Ulster e mais tropas foram enviadas para tentar conter a tensão entre nacionalistas e unionistas (ou legalistas). Entre os católicos cresciam as simpatias por aqueles indivíduos dispostos a lutar para conseguir a unificação de toda a Irlanda e acabar com a opressão protestante.

No IRA delinearam-se duas alas, a “provisória” e a “oficial”. Ambas aspiravam à criação de uma Irlanda republicana e socialista, mas divergiam quanto aos meios para alcançar o objetivo almejado. Os “oficiais” priorizavam a atuação político-parlamentar e a conquista de espaços de poder por meio do voto. Já os “provisórios” entenderam ser a luta armada o único meio capaz de levar a uma vitória sobre os britânicos – e, para alguns de seus membros, viabilizar o projeto socialista.

Os “provisórios”, também chamados “provos”, planejaram uma “longa guerra” baseada em atentados a bomba, assassinatos e emboscadas, enquanto os “oficiais” quase desapareceram. Essa opção mais radical e revolucionária refletiu-se na direção do Sinn Féin, controlada durante esse período por aliados dos “provisórios”.

 

Violência sem fim

Os republicanos aplicavam táticas de guerrilha contra as forças britânicas, como bombardeios de instalações de infraestrutura, locais comerciais ou prédios governamentais. O IRA Provisório realizou vários ataques em território inglês, incluindo tentativas malsucedidas contra o Parlamento em Londres. O assassinato de maior repercussão ocorreu em agosto de 1979, quando Lord Louis Mountbatten, primo da rainha, foi morto em seu iate. Em 1982, onze soldados e sete cavalos foram mortos quando bombas foram detonadas no Hyde Park durante a troca da guarda, ou seja, em frente ao Palácio Real. 

Já as milícias unionistas fuzilaram católicos e atacaram pubs em Belfast. Em maio de 1974, atentados simultâneos com dois carros-bomba nas cidades de Dublin e Monaghan mataram 33 civis, o maior número de vítimas em um único episódio registrados durante os troubles. A Força Voluntária do Ulster só assumiu a responsabilidade pelo atentado em 1993.

atentado IRA

Em 15 de junho de 1996 o IRA detonou uma tonelada e meia de explosivos em um caminhão no centro de Manchester, na Inglaterra. Essa foi considerada a segunda maior explosão a bomba na Grã-Bretanha desde a Segunda Guerra Mundial. 

As disputas partidárias eram muito sectárias, tanto no interior de cada grupo como entre grupos supostamente aliados, com vários episódios de justiçamentos. Mas os troubles também foram as imensas mobilizações da sociedade civil, com numerosos protestos, confrontos e atos de desobediência civil, expondo ao mundo a brutalidade que sustentava o poderio inglês quando desafiado, pois a parcialidade dos agentes policiais e jurídicos era evidente.    

O resultado das três décadas dos troubles foram mais de 3.500 vítimas fatais, sem contar os feridos. Destrinchando os números, temos que 52% das vítimas eram civis; 32% eram membros das forças de segurança britânicas; e 16%, membros de grupos paramilitares. O IRA foi responsável ​​por 60% das mortes; os legalistas por 30%; as forças de segurança por 10%, segundo o levantamento realizado pela Universidade do Ulster. 

Por outro lado, a crença na capacidade infinita de um Estado policial levou as forças de repressão britânicas a inúmeras denúncias por violações de direitos, sobretudo de presos. A prática de prisões generalizadas de ativistas católicos fez a Corte Europeia de Justiça condenar Londres pela prática de torturas na prisão de Long Kesh, em 1978.

 

Thatcher e o lobby irlandês nos EUA

A violência do IRA Provisório encontrou uma opositora digna de sua intransigência, a primeira ministra inglesa Margareth Thatcher (1979-1990), conhecida como Dama de Ferro. A recusa em negociar a “questão irlandesa”, contrariando as recomendações de comitês anglo-irlandeses formados em Dublin para buscar algum tipo de solução para a violência fratricida, isolou a primeira ministra. Em outubro de 1984, por muito pouco ela escapou de um atentado promovido pelo IRA em pleno território inglês.

Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, o presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan (1981-1989) se tornava um aliado e aconselhava Thatcher a negociar. Ele agia assim porque o poderoso lobby irlandês-americano tinha senadores e deputados fazendo discursos em Washington e cobrando do presidente um posicionamento, inclusive por suas origens familiares na Irlanda.

Thatcher acabou cedendo e, em novembro de 1985, ela e seu homólogo irlandês, Garret FitzGerald (1981-1987), falando pela República da Irlanda, assinaram o Acordo o Anglo-Irlandês, em Dublin. Nele foi estabelecida a concordância do Reino Unido para que o governo irlandês assumisse um papel consultivo em relação ao governo da Irlanda do Norte; sem abandonar a regra fundamental de que nada aconteceria na Irlanda do Norte sem o aval da maioria protestante.

Margareth Tatcher

A primeira-ministra Margareth Thatcher escapou por pouco de um atentado no hotel de Brighton, em outubro de 1984.

A realidade, contudo, se mostraria mais complexa. O convencimento individual de uma geração que tinha sangue nas mãos e nos olhos, apenas pela assinatura de um tratado, por mais relevante que fosse, não aconteceu. O então presidente do Sinn Féin, Gerry Adams, denunciou o acordo acusando-o de, na prática,  apenas levar a Irlanda a reconhecer que a Irlanda do Norte era britânica.

E Ian Paisley, do unionista DUP, discursava: “De onde os terroristas operam? Da República da Irlanda! É daí que eles vêm! Para onde os terroristas retornam em busca de santuário? Para a República da Irlanda! E, no entanto, a Sra. Thatcher nos diz que essa República deve ter algo a dizer em nossa Província. Dizemos nunca, nunca, nunca, nunca!”

 

Cansados de guerra

O mundo pós-Guerra Fria trouxe momentaneamente maior flexibilidade e racionalidade para o debate político, posturas mais afeitas à conciliação. Mal tinha começado e já tinha nome: Nova Ordem Mundial.

Na Irlanda do Norte ambos os lados do conflito enfrentavam a desaprovação da sociedade civil, cansada de violência e arbitrariedade. E novamente foram retomadas as negociações entre Belfast, Dublin e Londres. O Sinn Féin sob o comando de Gerry Adams e Martin McGuinness, e o Partido Social-Democrata Trabalhista, de John Hume reorientaram suas bases para reconhecerem a insensatez da luta violenta.

Em 1993, os Primeiros Ministros da Irlanda, Albert Reynolds, e do Reino Unido, John Major, assinaram a Declaração de Downing Street, o documento que definia as bases para futuras negociações:

  • Qualquer discussão sobre unificação deve obter o consentimento da maioria da população da Irlanda do Norte;
  • As disputas entre Irlanda e Irlanda do Norte são uma questão de soberania de ambas e não devem sofrer ingerência externa.

A grande mudança da parte do Sinn Féin foi admitir o princípio democrático de autodeterminação baseado no voto popular e individual. Isso significava aceitar a comunidade protestante e unionista como tão pertencente à Irlanda do Norte e legitimamente ligada à Grã-Bretanha quanto os católicos nacionalistas. A aceitação do acordo pelo governo da Irlanda enfraqueceu a lógica de atuação militar por parte do IRA.

Mas os unionistas exigiam que o IRA entregasse todas as armas, o que não aconteceu, em um quadro de desconfianças recíprocas, e o Sinn Féin continuou excluído das negociações. Em fevereiro de 1996 as divisões internas vieram à tona com a explosão de uma bomba em Londres, que deixou dois mortos. Setores do IRA mostravam que nem todos concordavam com o acordo, enquanto Gerry Adams reafirmava o compromisso com a não-violência.

Gerry Adams

Gerry Adams, membro do partido Sinn Féin, em sua convenção, em 2016.

 

Em uma Sexta Feira Santa

Muitas rodadas de negociações multipartidárias, incluindo os representantes do sindicalismo (como é chamada a corrente unionista que sempre se opôs à ruptura com a Inglaterra), mais os governos britânico e irlandês resultaram no Acordo de Sexta Feira Santa, Acordo da Páscoa ou Acordo de Belfast, assinado dia 10 de abril de 1998 na capital da Irlanda do Norte.

Bush, Blair e Ahern

O então presidente dos EUA George W. Bush, o primeiro-ministro britânico Tony Blair e seu homólogo irlandês Bertie Ahern em Hillsborough Castle, Irlanda do Norte, em 2003, cinco anos após o Acordo de Belfast.

Ali foi desenhado um plano de compartilhamento do poder por meio de uma assembleia paritária que governaria a Irlanda do Norte, e também como a Irlanda e o Reino Unido deveriam se comportar a partir desse novo estatuto para o Ulster. As negociações incluíram questões de soberania, governança e justiça; tratamento aos integrantes de grupos paramilitares presos ou não e a desmilitarização, prevendo a criação de uma comissão de Direitos Humanos e de Paridade, para assegurar o fim da discriminação aos irlandeses católicos.

O acordo deveria ser aprovado em referendo nas duas Irlandas. A votação ocorreu simultaneamente no dia 22 de maio de 1998. A grande maioria votou a favor nas duas partes. O referendo na República era sobre mudar a Constituição e retirar os Artigos 2 e 3, que falavam em “reivindicação territorial” sobre a Irlanda do Norte, para admitir o direito à autodeterminação daquela parte da ilha. Apenas 56% do eleitorado compareceram para votar, mas 94% deles era a favor da emenda constitucional. 

Já na Irlanda do Norte 81% dos votantes compareceram e 71% foi favorável ao acordo. Apesar disso, poucos acreditavam na realidade de um poder executivo compartilhado. O único que recusou o acordo foi o Partido Unionista Democrático, de Ian Pasley. O Sinn Féin votou a favor.

 

Últimos atos

Novamente o IRA viu suas bases racharem. A facção the Real IRA ou IRA Verdadeiro apareceu em agosto de 1998, dois meses depois das primeiras eleições para a Assembleia compartilhada da Irlanda do Norte. Eles explodiram um carro-bomba em Omagh matando 29 pessoas e ferindo outra centena, numa brutalidade sem comparação durante os troubles.

Mas os defensores do tratado não se deixaram levar pelo surto de indignação que desejava destruir o acordado. No dia dois de dezembro de 1999 o Acordo da Sexta Feira Santa se completou, quando a nova Assembleia assumiu formalmente o poder, junto com um Conselho Ministerial Norte/Sul e um Conselho Britânico-Irlandês, e a soberania de Londres sobre o norte da ilha se extinguiu.

Desde então, as dificuldades de pacificação e como elas têm sido resolvidas são da ordem da soberania dos irlandeses sobre o seu território e seus destinos enquanto sociedade. O desarmamento dos grupos armados e paramilitares demorou ainda alguns anos após o acordo, e terminou basicamente em 2005, quando o IRA anunciou o abandono definitivo da luta armada, em favor da via pacífica para a resolução de conflitos.

 

SAIBA MAIS

  • (Filme) Em nome do pai. (In the name of the father); 1993; direção Jim Sheridan
  • (Filme) Traídos pelo desejo. (The crying game); 1992; direção Neil Jordan
  • Imperial War Museums – Museu britânico com vasto material fotográfico.
  • Conflict and politics in Northern Ireland. O website, ligado à Ulster University, apresenta uma coleção de informações, documentos e fotos sobre o período denominado Troubles e sobre a política do Ulster de 1968 até o presente.
  • Good Friday Agreement

 

 

 

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