Adotamos a distinção entre “terror de Estado” e “terrorismo” proposta no Dicionário de Política (org. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino) para diferenciar atos de violência ou terror político produzido por atores não estatais daqueles resultantes de decisões governamentais. (Leia mais em O que é terrorismo?).
O cientista político David C. Rapoport, autor de vários estudos sobre o tema, propõe dividir o terrorismo contemporâneo em quatro ondas, caracterizadas pela causa e difusão geográfica. Ou seja: para caracterizar uma “onda”, é fundamental identificar o caráter internacional dessas ações. Assim:
Naturalmente, o fato de haver um padrão de ações e motivações em determinado período não significa que não possam ocorrer atos terroristas com causas diferentes.
O dinamismo de um automóvel (1913), de Luigi Russolo. Os futuristas captaram a excitação febril, ao mesmo tempo selvagem e voraz, trazida pela modernidade industrial. O mundo das máquinas e da velocidade combinava com certo desapego à vida
Depois de duas guerras mundiais, a ideia da violência regeneradora baseada na “lei do mais forte” estava incorporada ao senso comum: a Natureza , explicara Darwin, era assim. A incorporação da linguagem militar e de uma certa lógica de guerra por grupos políticos contestadores, sobretudo quando postos diante de grande assimetria de forças, trouxe a violência física para o campo das ações admissíveis no território da política. Essa legitimação da violência teria efeitos ainda mais nocivos quando incorporada pelos Estados, sempre prontos a esgrimir argumentos de segurança para avançar sobre as liberdades públicas.
Quando falamos em “segunda onda terrorista” identificamos a mundialização do fenômeno. A tática extremista foi adotada nas lutas anticoloniais na África, Ásia e Oceania, após a Segunda Guerra Mundial. O enfraquecimento do poder das metrópoles europeias, a ascensão de duas novas superpotências e a incorporação definitiva do princípio de autodeterminação ao direito internacional, expressa na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, tornaram irreversível o processo de descolonização. Com as independências, novos atores ganharam voz no palco da política internacional, especialmente representado pela Assembleia Geral da ONU.
O imperialismo era uma ferida aberta e parte da influência dos Estados Unidos na Guerra Fria esteve em aparecer como crítico do sistema colonial e defensor da autodeterminação dos povos. A União Soviética também apoiava a descolonização e enxergava nas lutas de independência o germe de revoluções socialistas. Reino Unido e França tiveram que aceitar, muitas vezes pela força das armas, o fim de seus impérios e das riquezas advindas da exploração de povos além-mar.
Ho Chi Minh: nacionalista, terrorista, comunista. As muitas faces de um líder político no conturbado século XX
As lutas por independência, pelo direito à autodeterminação, acabaram trazendo novos olhares sobre os significados da luta armada. Casos exemplares como o do Vietnã, onde Ho Chi Minh e seu partido Viet Minh, um dia chamados de terroristas, comandaram a guerra de libertação nacional combatendo sucessivamente japoneses, franceses e norte-americanos até se sentarem à mesa como vitoriosos chefes de Estado.
A partir dos anos 1960 começaram a se multiplicar as críticas ao uso abusivo das palavras “terrorismo” e “terrorista”, utilizadas como uma espécie de espantalho para encerrar qualquer debate sobre temas territoriais relacionados à autodeterminação.
Na Argélia, Palestina, Reino Unido e Espanha, movimentos como a FLNA (Frente de Libertação Nacional da Argélia), a OLP (Organização para a Libertação da Palestina), o IRA (Exército Republicano Irlandês) e o ETA (Euskadi Ta Askatasuna, em basco, ou Pátria Basca e Liberdade) deixaram milhares de vítimas, entre mortos e feridos, provocando torrentes de debates sobre o significado de “autodeterminação”, “terrorismo”, “terror de Estado”, dos quais derivam as disputas de opinião e os consensos legais.
No começo do século XX, enquanto os anarquistas eram caçados indiscriminadamente por acusações de atos terroristas (“Primeira onda”), grupos nacionalistas começaram a adotar a mesma tática para chamar a atenção da opinião pública. Lembremos que foi o assassinato do imperador austríaco por um nacionalista sérvio, em 1914, o deflagrador da Primeira Guerra Mundial.
O atentado de Sarajevo, em 6 de junho de 1914. O nacionalista sérvio atirou no futuro imperador austro-húngaro e matou os já moribundos Estados não-nacionais que ainda sobreviviam na Europa e entorno
Em 1919, quando os líderes dos países vencedores se reuniram na Conferência de Paris para estabelecer acordos sobre as reparações de guerra, o princípio da autodeterminação imposto pelos Estados Unidos foi incorporado como base das negociações. Assim foram extintos os impérios austro-húngaro e turco (o russo havia desaparecido em 1917, por força da revolução bolchevique) e substituídos por sete novos países, redesenhando as fronteiras territoriais do leste europeu.
As poucas colônias alemãs foram redistribuídas entre os vencedores. Ninguém perguntou a opinião dos colonizados. Depois de outra guerra mundial, em 1948, a Carta da ONU reafirmou o direito à autodeterminação e ao autogoverno.
Nesse quadro, atos terroristas passaram a estar justificados a priori pela necessidade de se lutar contra uma força externa dominadora, cujo poder só existia devido à total opressão. O ato terrorista, essencialmente simbólico, pareceu cada vez mais aceitável ou mesmo “justo”, por expressar a brutal assimetria de poder entre o opressor (e seus prepostos) e os oprimidos.
Como explicava Frantz Fanon, ativo militante da luta pela independência da Argélia: “Nas regiões coloniais, o gendarme e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm, a não se mexer. Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. O intermediário não torna mais leve a opressão, não dissimula a dominação. Exibe-as, manifesta-as com a boa consciência das forças da ordem. O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado.” (Os condenados da terra, Civilização Brasileira, RJ, 1968, p. 28).
Frantz Fanon, psicanalista nascido na França, militante político, engajou-se na luta pela independência da Argélia
A Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955, reuniu os líderes dos primeiros bem sucedidos movimentos de descolonização, ocorridos na Índia, China, Egito e na própria Indonésia, entre outros. A proposta era formarem um bloco para atuar fora da lógica bipolar da Guerra Fria e somarem forças para cobrar das potências ocidentais seu compromisso com a Carta da ONU e o direito a autodeterminação dos povos. Configurava-se o bloco político do “Terceiro Mundo” (o “Primeiro Mundo” eram os países capitalistas desenvolvidos e o “Segundo”, os países socialistas).
Irmanados pelo passado colonial, herdeiros de opressões e deficiências similares, os países que compuseram o movimento terceiro-mundista foram bastante marcados pelas ideias estatistas e socializantes em voga. Para setores da imprensa conservadora no ocidente, esses governos estavam associados a “perigosos revolucionários” e a “organizações terroristas”.
Tal impressão foi reforçada quando outro famoso “terrorista”, Fidel Castro, conclamou os delegados participantes da Primeira Conferência de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina (Havana, janeiro de 1966) a “responder à violência do imperialismo com a violência armada da revolução”. Por outro lado, conflitos étnicos muitas vezes dificultavam a estabilização dos novos países independentes, conduzindo à ditaduras brutais, com acusações generalizadas de “terrorismo”.
Apesar da retórica, a verdade é que tanto a União Soviética quanto os Estados Unidos interferiam nesses cenários, estimulando ou refreando o uso da violência contra os inimigos, desde que não degenerasse em guerra geral.
Sessão plenária da Conferência de Bandung. Nascia o Movimento dos Países Não-Alinhados
Encerrado o processo de descolonização afro-asiático na década de 1970, a questão do direito à autodeterminação continuou a ser a maior causa das ações terroristas. Os protagonistas já não eram povos colonizados, mas minorias étnicas absorvidas durante os processos de formação dos Estados-Nação contemporâneos, que passaram a exigir independência. Era, por exemplo, o caso dos bascos na Espanha; é o caso dos curdos, cujas terras situam-se na fronteira da Turquia com a Síria.
A diferença, nesses casos, é que a ONU não reconhecia a priori o direito à autodeterminação de minorias nacionais, diferentemente do que ocorre com territórios colonizados. O entendimento é que as minorias nacionais contam – ou deveriam contar – com autonomias negociadas e posse plena dos direitos civis.
A multiplicação das causas de minorias separatistas, a partir do final dos anos 1970, foi acompanhada pelo deslocamento das ações classificadas como terroristas para dentro do território de Estados soberanos, com a clara intenção de causar maior impacto sobre os centros de governo. Os debates e diretrizes adotados por esses grupos mostram o uso consciente das táticas terroristas como arma política. Bascos, catalães, corsos, irlandeses, palestinos, albaneses, curdos… a lista nunca mais parou de crescer.
Um manifesto político pintado em um muro em Belfast, na Irlanda do Norte, onde o IRA, assim como o ETA no País Basco, reivindicavam independência e autodeterminação
Na segunda onda do terrorismo, os assassinatos individuais de monarcas cederam lugar aos de ministros e chefes de polícia e, com o tempo, miraram gente comum. Os debates no interior desses grupos, calcados em uma suposta dialética marxista, levaram à chamada “ação-reação-ação”: provocar ações que promovessem respostas ainda mais brutais da parte dos governos, evidenciando a opressão e o caráter discriminatório do Estado. Objetivo: conquistar o apoio popular.
Para o historiador Eric Hobsbawm, “O ativismo de minoria, em forma de guerrilhas e terrorismo rurais ou urbanos, continuou, e na verdade se tornou endêmico no mundo desenvolvido e em partes significativas do sul da Ásia e da zona islâmica. Os incidentes de terrorismo internacional, na contagem do Departamento de Estado americano, aumentaram quase continuamente de 125 em 1968 para 831 em 1987, e o número de suas vítimas de 241 para 2905.” (A Era dos Extremos, Cia das Letras, SP, p. 443).
Pela primeira vez, graças ao novo palco da Assembleia Geral da ONU, o monopólio do discurso político das potências ocidentais começou a ser arranhado e suas atitudes contraditórias passaram a ser apontadas. Por isso, muitos Estados árabes, africanos e asiáticos votavam contra qualquer ação antiterrorismo, argumentando que os movimentos de libertação eram invariavelmente denunciados como “terroristas” pelos regimes contra os quais lutavam. Para eles, ao condenar genericamente o terrorismo, a ONU agia em defesa do status quo.
Os novos Estados independentes propunham uma nova perspectiva, focada nas causas da violência (miséria, frustração, ressentimento, desespero). Em meio aos debates, o valor negativo da palavra “terrorista” foi transmutado em algo positivo, associado à liberdade, revolução e idealismo. Os vietcongues foram enaltecidos como “guerreiros da liberdade”; a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) também adotou o título, bem como os radicais sionistas do Irgun, do mais tarde primeiro-ministro israelense Menachem Begin.
Yasser Arafat, o líder e maior símbolo da OLP, e Kofi Annan, chefe da ONU, em encontro no ano 2000
O palestino Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina, entendeu a batalha de comunicação para ganhar a simpatia do grande público ao afirmar, em seu discurso na Assembleia Geral, em 1974: “A diferença entre o revolucionário e o terrorista reside na razão pela qual cada um luta. Pois quem defende uma causa justa e luta pela liberdade e libertação de suas terras dos invasores, colonos e colonialistas, não pode ser chamado de terrorista…”
Por outro lado, em nome de combaterem o inimigo oculto, os Estados deslizaram para práticas ilegais, como o financiamento de forças paramilitares, esquadrões da morte, centros de tortura clandestinos e prática de assassinatos seletivos… A normalização desses expedientes por parte de instituições de controle dos Estados deu sustentação e facilitou a execução de muitos crimes, financiados com dinheiro público e ao arrepio das leis que deveriam proteger.
A radicalização das ações e o número de vítimas cresceram junto com a “aldeia global”, anunciada pelo teórico da comunicação Marshall McLuhan nos anos 1960. Isso significou que, diante da crescente integração das comunicações e do consequente aumento na oferta de informações, era necessário ser muito chocante para capturar a atenção do público em segundos e causar pressão intolerável sobre os governos.
Na década de 1990, quando a Guerra Fria acabou e a globalização acelerou, os atos terroristas foram ganhando mais visibilidade com atentados em estações de trem e cafés que serviam para envolver as pessoas comuns na rede do pânico. É o que fica claro no estudo sobre o ETA conduzido pelo sociólogo Jerónimo Ríos Sierra, a partir de entrevistas com antigos militantes.
O autor descreve “uma mudança tática na forma de atuar do ETA em relação às suas vítimas” denominada de “socialização do sofrimento”. Nas palavras de um dos entrevistados: “A socialização do sofrimento não se coloca como uma simples socialização. É a socialização do sofrimento vivido. Não do alheio. De tudo o que sofrem os familiares de membros da organização, e de qual é o sofrimento dos independentistas que não podem exercer seu direito de decisão.” Mas o efeito real dos atos de terror destinados a “socializar o sofrimento” foi o repúdio da maioria, e mesmo os que apoiavam a causa começaram a questionar os métodos.
Certamente a “banalização do mal” tem parte de sua pedagogia associada a esse fenômeno, pois a opinião pública foi saturada de sangue e distanciamento.
Parentes e amigos dos atletas israelenses assassinados por terroristas palestinos do grupo Setembro Negro durante a Olimpíada de Munique, em 1972, aguardam a chegada dos corpos no aeroporto de Lod, em Tel-Aviv.
De acordo com David Rapoport, o ethos revolucionário criou laços significativos entre grupos nacionais separados, reafirmando o velho ideal internacionalista de esquerda. Em contrapartida, como foi feito antes com anarquistas e comunistas, os conservadores não apenas chamavam de terrorismo qualquer coisa que contestasse o status quo recorrendo à violência, como atribuíam as ações de um grupo em particular a todos os seus aliados, criminalizando internacionalmente entidades políticas distintas.
O fato é que o debate internacional não criava consensos capazes de produzir leis e acordos, e as únicas ações efetivas antiterrorismo continuavam a ser os acordos bilaterais de extradição entre Estados e a cooperação da Interpol.
Até que as ações terroristas começaram a afetar seriamente o setor privado, ao se concentrarem no sequestro de aviões durante a década de 1970. Finalmente as diferenças políticas foram removidas em favor da criação de uma legislação sobre segurança na aviação.
A partir daí, diferentes convenções internacionais criminalizaram atos associados ao repertório terrorista, como sequestro, cárcere de reféns, ataques a funcionários de governos, ataques à bomba contra instalações de governos estrangeiros e financiamento de atividades criminosas.
Um evento paralelo, que também ajudou a facilitar acordos e criminalizar atos terroristas, foi a dificuldade encontrada por muitos dos novos países independentes para se estabilizarem e criarem aparatos de Estado capazes de garantir a autogestão e a autodeterminação. Muitas das lutas pelo poder degeneraram em guerras civis e acusações mútuas de terrorismo entre oponentes. Era hora de transformar heróis em criminosos e ganhar apoio internacional.
Duas militantes do IRA, em 1978. Ou duas terroristas? Depende de quem conta a história
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