OS GOVERNOS NO ESPELHO DA COVID-19

 

Demétrio Magnoli

22 de março de 2021

 

Postagem de Navalny na sua conta do Instagram, a partir da Colônia Penal 2, em 15 de março de 2021

A Covid-19 revela, desvenda, elucida, ilustra. No espelho da pandemia, refletem-se as imagens de governos autoritários que manipulam a emergência sanitária para reprimir e de governos populistas que negam direitos enquanto distribuem privilégios.

O opositor russo Alexei Navalny retornou a seu país em janeiro, após se recuperar de um envenenamento quase letal conduzido por agentes de inteligência a serviço do Kremlin. Foi preso no aeroporto, sentenciado a dois anos e meio de prisão e, há pouco, enviado à Colônia Penal 2, na região de Vladimir, a 100 quilômetros de Moscou.

Dias depois, um tribunal obediente às vontades de Vladimir Putin concluiu o chamado “caso sanitário” impondo penas de detenção domiciliar a dez líderes oposicionistas, inclusive os dirigentes da organização de Navalny. A acusação: violação das regras de contenção da Covid-19.

Sem corar de vergonha, os promotores apontaram para postagens nas mídias sociais convocando a um protesto contra a prisão de Navalny que teriam mobilizado 19 indivíduos legalmente obrigados a permanecer em quarentena. Os advogados de defesa retrucaram dizendo que as autoridades distorcem os regulamentos sanitários para isolar dissidentes.

Os lockdowns em Moscou e São Petersburgo foram encerrados meses antes dos protestos de janeiro. As postagens convocando protestos não encorajavam pessoas doentes a sair às ruas. Manifestações pró-governo ocorrem regularmente, a salvo de restrições sanitárias. “O objetivo ideológico é rotular figuras da oposição como vetores infecciosos, agentes tóxicos, contaminadores da população”, nas palavras precisas de Danil Berman, defensor de Maria Alyokhina, integrante da banda Pussy Riot e uma das sentenciadas.

Manifestação de protesto contra a prisão de Alexei Navalny em São Petersburgo, na Rússia, 23 de janeiro de 2021

 

A vacina como arma

As regras sanitárias foram, e ainda são, instrumentos preferenciais para o exercício das políticas de repressão. Mas, em 2021, Ano 2 da pandemia de Covid-19, a imunização tornou-se ferramenta de políticas de discriminação e privilégio.

Israel já aplicou a primeira dose da vacina em mais de 60% de sua população, mais de metade foi imunizada com as duas doses e a vacinação está aberta a jovens de 16 anos. Mas os árabes palestinos dos territórios ocupados não fazem parte do programa de imunização israelense. Há uma exceção: palestinos com licença de trabalho em Israel estão sendo vacinados. Contudo, palestinos que trabalham no território israelense sem licença não são imunizados.

Desembarque do primeiro carregamento de vacinas fornecidas pela aliança Covax, da OMS, no aeroporto internacional de Nairóbi, no Quênia, em março de 2021. As mais de um milhão de doses vão, prioritariamente, para braços de policiais

No Quênia, a primeira dose da vacina alcançou menos de 0,1% da população e idosos na faixa dos 80 anos ainda não receberam nenhuma dose. Mas um policial tem o raro privilégio de ser vacinado. O governo de Uhuru Kenyatta trata a pão de ló as forças de segurança, que funcionam como guarda pretoriana do poder. Em meados do ano passado, durante o lockdown nas principais cidades do país, o toque de recolher foi assegurado por truculências sistemáticas da polícia que incluíram espancamentos, tiros a esmo e dezenas de execuções extrajudiciais.

Uma agência de viagens britânica oferece pacotes de turismo vacinal nos Emirados Árabes Unidos. Pela bagatela de US$ 13 mil, o turista de novo tipo passa três semanas na monarquia do Golfo Pérsico e recebe duas doses de vacina. Basta ter 65 anos ou mais ou, alternativamente, comprovar alguma comorbidade. Na ponta oposta, um indiano pobre dificilmente conseguirá se vacinar no seu próprio país, independente da idade ou de seu histórico médico.

Não é que a Índia não esteja vacinando. O país, maior exportador global de vacinas, aplicou a dose inicial em cerca de 35 milhões de cidadãos, o que o coloca, em números absolutos, na terceira posição do mundo (atrás dos EUA e da China). A vacinação para Covid-19 está aberta para todos com mais de 60 anos. Mas, na maior parte dos estados, o procedimento requer agendamento prévio, via um app de celular. Ocorre que menos da metade dos quase 1,4 bilhão de indianos têm acesso à internet e uma parcela ainda menor dispõe de smartphones.

Na Índia, os mais pobres estão fora. Mas, em inúmeros países, os amigos do rei estão dentro. No Líbano, que ofereceu a primeira dose a menos de 100 mil de seus 6,9 milhões de habitantes, todos os parlamentares podem se vacinar. A família estendida do ex-vice-ministro da Saúde do Peru já foi vacinada com duas doses, num país onde apenas 1,2% da população recebeu a dose inicial. Sete dezenas de políticos, jornalistas e intelectuais aliados do governo peronista argentino receberam imunização VIP, mas a primeira dose foi aplicada a escassos 5% dos argentinos comuns.

Andrés Manuel López Obrador, presidente do México

Escândalos de pequeno porte não são com o México. O país, presidido pelo nacionalista Andrés López Obrador, um notório negacionista da pandemia, exibe uma das maiores taxas de óbitos por Covid-19 do mundo, porém vacina ainda mais lentamente que o Brasil. O populista de esquerda Obrador está longe de alcançar a imunização dos idosos, mas oferece vacinas a professores do estado de Campeche e de várias comunidades rurais pois busca o apoio político e eleitoral de sindicatos de docentes.

Há pouco, Joe Biden prometeu ceder ao México 2,5 milhões de doses da vacina Oxford/AstraZeneca estocadas sem uso nos EUA. Não é um gesto humanitário, nem uma ruptura do governo americano com o nacionalismo vacinal que herdou de Donald Trump, mas um intercâmbio diplomático tão indecente quanto silencioso. Embora nenhum dos dois governos admita oficialmente, a moeda de troca é a contenção, pelo México, de imigrantes centro-americanos que tentam rumar para os EUA.

Dias atrás, Obrador anunciou o fechamento das fronteiras mexicanas com Guatemala e Belize. Não é a primeira vez que Obrador se dobra às pressões de Washington e opera como polícia de fronteira dos EUA.

 

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