NO QUÊNIA, A POLÍCIA TAMBÉM MATA

 

Elaine Senise Barbosa

15 de junho de 2020

 

Mapa Quênia

No Quênia, a ameaça do coronavírus fez o presidente Uhuru Kenyatta decretar, desde o final de março, lockdown nas grandes cidades do país, como a capital, Nairóbi, e a costeira Mombaça. Nairóbi é uma metrópole típica de países subdesenvolvidos, nas quais pequenas ilhas de riqueza e prosperidade são cercadas por imensas favelas onde vivem milhares de pessoas em condições muito precárias. Lá, como no Rio de Janeiro, a polícia tem passaporte para matar.

Sob o lockdown, em nome de garantir respeito ao toque de recolher e impedir a circulação entre cidades ou bairros isolados, as já truculentas forças policiais quenianas tornaram-se ainda mais violentas e arbitrárias. O próprio presidente teve que ir a público reconhecer que “talvez tenham ocorrido alguns excessos” e que a polícia precisa de um pouco de tempo para se ajustar aos novos protocolos impostos pela pandemia.

Liberdade ou segurança? O dilema tem se apresentado repetidamente desde o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, e voltou com força total nesses tempos de pandemia de coronavírus. O Estado, com seu aparato de repressão e o monopólio da força legítima, tende geralmente a se inclinar para o segundo termo, em detrimento do primeiro. O cenário torna-se ainda mais sombrio quando a polícia é vista pela população como tão ou mais ameaçadora que o perigo que supostamente combate, seja ele o terrorismo ou o vírus – ambos igualmente “invisíveis”, circulando ocultos pela sociedade e transformando qualquer um em suspeito.

O Quênia convive com a ameaça permanente de atentados do grupo jihadista Al-Shaabab, originário da vizinha Somália. Daí que o aparato de segurança adquiriu vasta autonomia e latitude de ação. A violência policial contra cidadãos comuns disseminou-se nesse ambiente, adquirindo cores mais dramáticas sob o lockdown.   

Os zelosos guardiões da saúde pública não colaboram quando aglomeram trabalhadores tentando pegar a única barca disponível para voltar às suas casas e agredindo vários deles pela simples razão de que não podiam respeitar o toque de recolher. Ou quando uma mulher morre de hemorragia junto com o seu nenê porque, ao entrar em trabalho de parto em casa durante a noite, nem ela nem o marido tiveram coragem de sair para chegar ao hospital. Ou quando atiram a esmo em um bairro e atingem um menino de 13 anos que brincava em sua casa.

batida policial apos toque de recolher

O presidente Uhuru Kenyatta só se desculpou pelos excessos porque a imprensa internacional repercutiu essas imagens

Quênia, Brasil. Yasin Moyo, o garoto assassinado, é uma réplica queniana do brasileiro João Pedro, morto pelas costas, em sua casa crivada de projéteis policiais, no Rio de Janeiro.  

 

Execuções extra-judiciais

“Se os quenianos tinham alguma dúvida de que o governo ignora suas preocupações, a pandemia da Covid-19 confirmou seus piores temores: o governo queniano não apenas ignora como a maioria dos cidadãos do país vive, mas também simplesmente não se importa. O nível de insensibilidade exibido pelo presidente e seu gabinete surpreendeu até aqueles que normalmente cantam louvores ao governo”, escreveu a jornalista Rasna Warah, na plataforma de notícias africanas The Elephant.  

A jornalista também observa que apesar de o presidente Uhuru – filho do líder da independência, Jomo Kenyatta – e sua riquíssima família serem proprietários de negócios ligados à produção de leite, eles não fizeram nenhuma proposta de redução de preços, nem mesmo doações para instituições de caridade. Logo no início do bloqueio, que já foi prorrogado, o governo anunciou o pagamento de uma ajuda em dinheiro às famílias mais necessitadas – isto é, na prática, a maioria da população. No entanto, boa parte dos quenianos dizem ainda não ter recebido ajuda nenhuma. A corrupção é um problema endêmico no país e muitos suspeitam de desvio do dinheiro, uma vez que o governo afirma ter liberado os pagamentos.

Inexistem redes universais de proteção social às quais as pessoas possam recorrer. O espectro da fome, cada vez mais presente, traz com ele a ameaça de convulsão social e de situações de confronto com as forças de segurança, que contam com a cobertura dos chefes hierárquicos para puxar o gatilho sem dó. Na semana passada, um grupo de duas centenas de moradores da comunidade de Mathare saiu em passeata de protesto pedindo a redução da violência policial. Os manifestantes diziam que a polícia os está matando mais que o coronavírus.  

Não é um raio no céu claro. Um relatório da sessão queniana da Anistia Internacional, de 2017, informa que, entre 177 casos relatados de assassinatos policiais na África, 122 ocorreram no Quênia. Já a organização Missing Voices, destinada a combater os abusos da polícia e as execuções extra-judiciais, lista 707 quenianos mortos pela polícia desde 2007, incluindo 49 neste ano. Apenas 26 policiais foram formalmente acusados. A epidemia e o toque de recolher só agravam uma tragédia antiga.

De acordo com Wilfred Olal, coordenador de um centro de justiça social de favelas do Quênia que tenta acompanhar as mortes relacionadas ao toque de recolher, eles perderam a conta. “São dezenas”. O governo só reconhece 12 assassinatos provocados por agentes de segurança e 35 “choques isolados”.

Favela Kibare

De todas as mudanças que a pandemia reforça, o uso abusivo das forças de segurança para manter o controle social, sobretudo nas áreas mais pobres, tem sido a mais evidente.

 

Um país com centenas de Floyds

Registram-se, ainda, coincidências fantásticas: em meados de abril, cerca de três semanas após o início do lockdown, executou-se uma ordem de despejo dos moradores de uma ocupação chamada Ala Kariobagi North, em Nairóbi. Cerca de sete mil pessoas acordaram com policiais e tratores derrubando suas casas. Como o isolamento da cidade impedia as pessoas de sair de Nairóbi para buscar abrigo na casa de parentes nas áreas rurais, a maioria dos desabrigados permaneceu ao relento, sem ajuda. 

Procuradas, as autoridades não se pronunciaram, nem sequer ofereceram qualquer tipo de ajuda aos desabrigados. O único a falar foi Fred Matiangi, o poderoso ministro do Interior que fez fama na área de Educação e Tecnologia e desde o ano passado acumula também a função de Conselheiro de Segurança Nacional, pasta que comanda os órgãos de segurança. O cada vez mais autoritário Matiangi apenas declarou que o terreno pertencia à companhia de águas e que obras de saneamento estão previstas para aquela região. Como lamentou um colunista queniano do jornal Daily Nation: “É agora que percebemos que nossa interação com o governo, como pessoas pobres, começa e termina com as eleições. No meio, só terão importância as tragédias que afetam os ricos, e trazidas pelos ricos”.

Um detalhe importante, nesse cenário tão familiar: governantes, agentes de segurança e vítimas são, todos, igualmente negros. Apesar de parte dos protestos das últimas semanas terem sido estimulados pela onda de manifestações que tomou conta dos Estados Unidos depois do assassinato de George Floyd pela polícia de Minneapolis, no caso do Quênia a chave racial nada explica. Parece que as classes sociais ainda tem seu lugar na história.

 

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