Demétrio Magnoli
Joe Biden falou num “arsenal de vacinas”, traçando um paralelo histórico com o “arsenal das democracias” providenciado por Frankin Roosevelt para o combate ao nazismo. Na reunião de cúpula do G7, em 11 de junho, o “arsenal” de 500 milhões de doses prometidas pelo presidente dos EUA dobrou para um bilhão, com as contribuições dos demais integrantes do grupo (Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá).
Parece muito. É pouco: um “fracasso moral”, na expressão cunhada por Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Na cúpula do G7, os líderes das maiores economias do mundo democrático definiram o objetivo de “terminar a pandemia”. Eles reconheceram que, enquanto a humanidade não estiver imunizada, nenhuma nação estará realmente segura. Mas a conta não fecha. Para vacinar 70% da população mundial, atingindo o limiar da imunidade coletiva global, são necessárias 11 bilhões de doses. Faltam dez bilhões. O “arsenal” segue quase vazio.
Foto oficial dos líderes reunidos na cúpula do G7, em junho de 2021, em Cornwall (Reino Unido). Joe Biden aparece à frente, à esquerda, ao lado do britânico Boris Johnson
Adhanom acusou os países ricos de “fracasso moral” antes das promessas de Biden e de seus colegas do G7. Sob Donald Trump, os EUA fecharam-se na concha do nacionalismo vacinal, pondo em marcha um vasto programa de subsídios públicos para o desenvolvimento e produção de imunizantes destinados exclusivamente à população da superpotência.
Biden herdou a política do antecessor e, durante os primeiros quatro meses de seu mandato, contentou-se com ela. A ruptura, incompleta e insuficiente, é uma resposta geopolítica à diplomacia vacinal chinesa.
Xi Jinping definiu as vacinas como “bem público global”, comprometeu-se a fornecer imunizantes aos países pobres e posicionou seu país como ator principal na diplomacia sanitária. Não foram apenas palavras: a China ocupa a primeira posição no ranking dos exportadores de vacinas contra a Covid-19. Até o início de junho, a potência asiática forneceu mais de 260 milhões de doses para 95 países.
Há pouco, a OMS aprovou, para uso emergencial, as vacinas produzidas pelos laboratórios chineses Sinopharm e Sinovac. O selo da OMS confere um novo impulso à estratégia chinesa – e coloca mais pressão política sobre os EUA e seus aliados europeus.
A China exerce forte influência sobre a OMS e foi, em larga medida, responsável pela eleição de Adhanom. Mesmo assim, sua diplomacia vacinal praticamente ignora a organização multilateral.
Vacina contra a Covid-19 produzida pela farmacêutica estatal chinesa Sinopharm
Até agora, o governo chinês só contribuiu com 10 milhões de doses para a Covax, o mecanismo global de distribuição de imunizantes patrocinado pela OMS. A estratégia chinesa é estabelecer parcerias bilaterais para venda ou doação de vacinas, especialmente com países da África e da Ásia. “A China seleciona países que, potencialmente, se voltarão para ela no futuro, em busca de outras coisas”, explica Sara Davies, especialista em diplomacia de saúde da Griffith University (Austrália).
Mas, no caminho chinês, nem tudo são flores. A eficácia da vacina da estatal Sinopharm foi posta em dúvida pelas experiências das Seychelles e da Mongólia, que sofreram com fortes ondas de contágios após amplas campanhas de imunização.
Além disso, as capacidades de produção chinesas são insuficientes para a colossal demanda interna, o que provoca atrasos dramáticos no fornecimento de doses ou ingrediente farmacêutico ativo para seus parceiros. A Turquia, cujo programa de imunização depende largamente da Sinovac, reclamou publicamente dos atrasos. O ministro da Saúde justificou a lentidão da vacinação turca acusando a China de redirecionar para o mercado interno as vacinas contratadas por seu país.
A China carece de meios para se tornar um efetivo “arsenal de vacinas”. Por outro lado, os EUA e seus parceiros do G7 possuem tais meios.
Maior fábrica da farmacêutica americana Pfizer, em Kalamazoo, Michigan (EUA)
O custo estimado de fornecer as 11 bilhões de doses sonhadas pela Covax é de algo em torno de US$ 50 bilhões. Parece muito. De fato, é pouco.
O valor corresponde a 0,13% do PIB do G7 – ou, numa outra régua, cerca de um quinto do montante prometido como ajuda externa anual pelas sete nações. A capacidade fabril de produção de vacinas dos EUA e da Europa multiplicou-se várias vezes, desde o início de 2021. Os países ricos dispõem de todas as condições para imunizar a humanidade.
Biden proclama, dia sim e outro também, que “os EUA estão de volta”, a fim de contrastar seu compromisso internacionalista com o nacionalismo trumpiano do “America First”. Sob esse pano de fundo, como qualificar o escasso bilhão de doses que emanou da reunião de cúpula de outra coisa senão um fracasso moral?
A cepa original do coronavírus que surgiu em Wuhan (China), no final de 2019, tinha um R0 entre 2,4 e 2,6. Isso significa que, tipicamente, uma pessoa infectada contagiava algo entre duas e três pessoas. Meses depois, em março de 2020, o R0 da variante que causou a primeira onda epidêmica na Europa já atingira 3.
A seleção natural prosseguiu. No segundo semestre de 2020, a variante Alpha, identificada em Kent (Inglaterra) tinha R0 entre 4 e 5. Finalmente, no início de 2021, surgiu na Índia a variante Delta, com R0 entre 5 e 8. Nada indica que novas mutações não sejam capazes de originar variantes ainda mais infecciosas – e mais hábeis para circundar a imunização vacinal. “Terminar a pandemia” é, ao mesmo tempo, um dever humanitário e um interesse nacional dos países ricos.
Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, recebe o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, convidado à cúpula do G7
“Isso é sobre nossa responsabilidade, nossa obrigação moral de salvar tantas vidas quantas pudermos”, disse Biden em discurso na véspera da cúpula do G7. “Quando vemos pessoas sofrendo em qualquer lugar do mundo, tentamos ajudar de todas as formas possíveis”.
O presidente americano falou no registro do dever humanitário, mas também poderia ter se expressado na fria linguagem da geopolítica. Vacinar o mundo é, atualmente, o negócio do século: a mais efetiva política econômica e, simultaneamente, o modo mais eficaz de provar que as democracias funcionam melhor que o totalitarismo chinês. Para isso, porém, o “arsenal de vacinas” precisa ser mais que uma promessa vazia.
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