A vacinação contra a Covid-19 no mundo começou no final do ano passado. Desde então, diversos países iniciaram suas campanhas de vacinação contra a doença, entendendo como a única saída disponível para a crise pandêmica. No entanto, as contradições sociais e conflitos históricos em algumas localidades já revelam os limites das campanhas de imunização mundo afora, excluindo direta ou indiretamente parte da população da fila das vacinas. Particularmente, existe um país que deliberadamente se recusa a vacinar parte de sua população: Israel.
Israel é o país que mais vacinou proporcionalmente à sua população no mundo. No final de janeiro, mais de um terço dos israelenses havia recebido ao menos uma dose da vacina da Pfizer/BioNTech e o total de doses aplicadas correspondia a cerca de 50% da população. A meta do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu é vacinar toda a “população relevante” até o final de março. Mas, para Netanyahu, os palestinos das regiões ocupadas não são relevantes, delegando à frágil e contestada Autoridade Palestina (AP) uma responsabilidade legal que é do governo israelense.
Fonte: Our World in Data
As autoridades israelenses afirmam não ter responsabilidade sobre a vacinação da população da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, territórios palestinos ocupados. Apenas os palestinos de Jerusalém Oriental e residentes de Israel estão sendo imunizados. A população palestina dos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que soma cerca de 4,5 milhões, não faz parte do programa israelense de imunização. Na Cisjordânia, em assentamentos considerados ilegais pela maior parte da comunidade internacional, residem ainda cerca de 400 mil colonos israelenses, que recebem vacinas.
A recusa de Israel de vacinar os palestinos coloca em risco o direito à saúde de uma população já vulnerável. Segundo a AP, a Cisjordânia contabilizou mais de 100 mil casos da Covid-19 e mais de mil mortes desde o começo da pandemia, enquanto a Faixa de Gaza, uma das regiões mais densamente povoadas do planeta, registrou cerca de 45 mil casos, com 400 mortes. Nos territórios ocupados, a incapacidade de realizar testagem em massa impede uma radiografia mais precisa do verdadeiro estágio da pandemia.
A Quarta Convenção de Genebra de 1949, tratado inscrito no campo do direito humanitário, aborda a respeito dos direitos dos civis durante a guerra, inclusive em territórios sob ocupação. A convenção prevê, nos seus artigos 55 e 56, a garantia pelas forças ocupantes do suprimento de itens médicos para a população sob ocupação, além da aplicação de medidas profiláticas de prevenção e controle de doenças contagiosas.
Israel é a força de ocupação da Cisjordânia, pois desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, mantém presença militar no território. A Faixa de Gaza foi desocupada oficialmente por Israel em 2005 e, desde 2007, é governada pelo movimento palestino Hamas, mas as forças armadas israelenses continuam a controlar a entrada de produtos e insumos na região. Durante o período em que os habitantes de Gaza ficaram em lockdown, no meio do ano passado, Israel retaliou o Hamas por ataques de foguetes contra seu território, bloqueando a entrada dos produtos médicos de combate à pandemia. Portanto, lá também, o governo israelense conserva a responsabilidade de proteger os civis palestinos.
Assentamento fortificado israelense na Cisjordânia. A população desses locais está sendo imunizada rapidamente. A população palestina majoritária permanece à míngua
Juridicamente, Israel alega que a AP é que deveria realizar os esforços de vacinação. A argumentação se vale do conteúdo dos Acordos de Oslo de 1993, que instituiu o governo autônomo palestino. Contudo, por conta da ocupação, a AP exerce um poder limitado, além de fragmentado nas facções do partido Fatah, que governa a Cisjordânia, e do Hamas, que administra a Faixa de Gaza. Contudo, de fato, inexiste um Estado Palestino. A AP não tem voto nas principais organizações internacionais e dispõe de meios extremamente limitados para adquirir vacinas.
A invocação dos Acordos de Oslo é um frágil pretexto de Israel para fugir às suas obrigações perante o direito humanitário. E, de mais a mais, aqueles acordos estabelecem que o governo de Israel e a AP devem atuar em conjunto no combate a epidemias e emergências de saúde pública.
Fonte: BBC
O governo de Netanyahu, que encarna o sionismo ultranacionalista, incentiva a expansão dos assentamentos israelenses ilegais na Cisjordânia e, na prática, sabota os Acordos de Oslo, que preconizam uma paz baseada na convivência de dois Estados. A exclusão dos palestinos dos territórios ocupados do programa de imunização ilumina, com uma clareza absoluta, a política de discriminação étnica conduzida por Israel.
Netanyahu pratica uma evidente duplicidade discursiva. Para ele, na maior parte do tempo, a Palestina simplesmente não existe e carece de qualquer legitimidade. Contudo, quando se trata de responsabilidades sanitárias emergenciais nos territórios ocupados, o primeiro-ministro gira 180 graus e alega que os palestinos possuem plena autoridade governamental. Impossível não fazer a analogia com o experimento do Gato de Schrödinger: a Palestina encontra-se em um constante estado de “sobreposição política”, em que existe e não existe ao mesmo tempo, a depender dos mutáveis interesses do observador.
A iniciativa COVAX da Organização Mundial da Saúde (OMS) é, por enquanto, a única perspectiva de vacinação para os palestinos. A iniciativa foi criada com a intenção de prover doses de vacinas de forma equitativa e justa para os países do mundo, sobretudo os mais vulneráveis. O ministério da Saúde da AP pretende começar a vacinação em fevereiro, imunizando inicialmente 3% da população de Gaza e da Cisjordânia seja vacinada. Ao longo do ano, o governo autônomo espera imunizar algo como um quinto da população palestina.
Algumas farmacêuticas, como a AstraZeneca, entraram em contato com o governo palestino oferecendo doses, mas a AP continua a marcar posição oficial exigindo que Israel cumpra suas responsabilidades de vacinação. A Rússia chegou a manter tratativas com os dirigentes palestinos para a venda da vacina Sputnik V, mas as negociações estão suspensas devido à elevada demanda do imunizante.
O cenário é sombrio. O ministério da Saúde da AP afirma que uma crise financeira recém-resolvida diminuiu ainda mais a perspectiva de levantar recursos para adquirir doses. Assim, o governo autônomo decidiu pressionar Israel pela vacinação, denunciando a negligência do governo israelense em relação às suas obrigações enquanto força ocupante. Por enquanto, a pressão não funcionou e Israel chegou a negar a entrega de doses para imunizar os agentes de saúde palestinos da linha de frente de combate à Covid-19.
Os palestinos estão numa encruzilhada política. Parte de seus dirigente avalia que o melhor seria negar a responsabilidade de Israel, afirmando a soberania nacional e a capacidade da Palestina de lidar com uma questão complexa como um Estado propriamente instituído. O raciocínio, baseado no orgulho nacional, reflete as tensões históricas com Israel e a ausência completa de diálogo com o governo de Netanyahu. Sob essa ótica, mostrar-se forte e resiliente diante da crise pandêmica traria ganhos à narrativa nacionalista palestina e deslegitimaria a ideia de “tutela” israelense sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
Neste complexo fogo cruzado que envolve o desafio israelense ao direito humanitário e as disputas internas entre os palestinos, a maior vítima é a imunização geral. Do ponto de vista epidemiológico, a combinação de uma população israelense vacinada com uma população palestina não imunizada aumenta o risco de surgimento de mutações do coronavírus capazes de reduzir a eficácia da imunização. Do ponto de vista dos direitos humanos, a pandemia reforça a convicção de que a ocupação perene dos territórios palestinos representa uma catástrofe sem fim.
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