O “REI DE ISRAEL” PREPARA A ANEXAÇÃO

 

Jayme Brener

(Jornalista, diretor do Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil “Henry Sobel”)
25 de maio de 2020

 

O programa do novo governo de Israel é a anexação de terras palestinas, um projeto digno de um rei sem escrúpulos. A pandemia do coronavírus forma a paisagem perfeita para a anexação.

De acordo com a Bíblia, Israel teve três grandes reis: Saul, David e Salomão, além de uma multidão de soberanos menos cotados. Todos os três na Antiguidade.  Acrescente-se à lista um rei contemporâneo, Benjamin “Bibi” Netanyahu, figura dominante do cenário político israelense há 25 anos. E que, no momento, aos 70 anos e às vésperas de um julgamento por corrupção, não encontra rival. Credencia-se a ampliar seu reinado.

Explica-se: depois de um ano de uma queda de braço sem vencedores entre Netanyahu e seus adversários da coalizão Kahol Lavan (azul e branco, as cores da bandeira israelense, em hebraico), tendo à frente um vitorioso ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Benny Gantz, com direito a três eleições e a um surto de coronavírus, o quarto rei de Israel conquistou um completo strike.

O “rei de Israel” prepara a anexação

Benjamin Netanyahu, à esquerda, e Benny Gantz, com a imagem de Donald Trump ao fundo. O projeto de anexação parcial da Cisjordânia inscreve-se na moldura do “plano de paz” formulado pelo presidente dos EUA

 

Bibi destruiu a oposição, agora fragmentada entre grupos de ultradireita, os remanescentes da esquerda sionista e à Lista Unificada, coalizão majoritariamente árabe. A ultradireita denuncia suas “concessões” à centro-esquerda. A esquerda sionista foi reduzida a três deputados do partido Meretz e a uma dissidente do Partido Trabalhista, legenda que aderiu ao governo de “união nacional”. Já a Lista Unificada tornou-se a terceira força política do país, com 15 deputados entre os 120 do parlamento (Knesset).

Na terceira eleição sucessiva, a coalizão liderada pelo Likud, o partido de Netanyahu, obteve 36 cadeiras, três a mais do que o Kahol Lavan. No entanto, a oposição teve a chance histórica de montar um governo com a participação – ou, pelo menos, o apoio – dos deputados da Lista Unificada e dos sete representantes do Israel Beiteinu (“Israel, nossa casa”), do ex-chanceler de ultradireita Avigdor Liberman.

O preço a pagar pelo Kahol Lavan: reconhecer a minoria árabe – 20% da população – como cidadãos plenos de Israel, com direito, por exemplo, a maior equanimidade na atribuição de recursos públicos para suas comunidades. De quebra, o Israel Beiteinu exigia acelerar o fim da isenção do serviço militar obrigatório (três anos para os homens, dois anos para as mulheres) para os judeus ultraortodoxos, que são pouco mais de 15% da população.

Netanyahu, raposa das mais felpudas, percebeu que Gantz hesitava em pagar o preço de ser visto como pró-árabe, um verdadeiro palavrão diante da maioria judaica. Ou de comprar uma briga para todo o sempre com os ultraortodoxos. E, aproveitando-se da crise do coronavírus, abraçou a tese de um governo de “união nacional”, avançando a promessa de anexação de partes da Cisjordânia ocupada.

Trocando em miúdos, Bibi permanecerá na chefia de governo por 18 meses, com o acordo de que Gantz, alojado no poderoso Ministério da Defesa, o sucederá na chefia de governo. Gaby Ashkenazy, outro militar de destaque do chamado cockpit, a direção do Kahol Lavan, será o chanceler.  

Com esse movimento, o primeiro-ministro rachou irremediavelmente o Kahol Lavan, com boa parte da coalizão rejeitando a aliança, já que sua campanha foi calcada no “fora Bibi”. Também incorporou parte da esquerda sionista, com destaque para Amir Peretz, o chefão do Partido Trabalhista, hegemônico em Israel por três décadas e que, com apenas dois deputados, ganhou dois ministérios. Peretz será o ministro da Economia.

O assentamento israelense de Maale Adumim, na Cisjordânia, está entre as áreas contempladas pelo plano de anexação

Ao formar o gabinete de grande coalizão, Netanyahu ganhou a concordância da maior força de oposição para a anexação de partes da Cisjordânia, onde vivem 2,75 milhões de palestinos e 400 mil colonos judeus. Conclui-se, assim, o processo de implosão do chamado “campo da paz”. O plano do governo, que torpedeia por tempo indeterminado qualquer possibilidade de acordo de paz na região, é anexar os principais blocos de assentamentos israelenses.

 

O governo da anexação

A oposição ficou, então, restrita aos 15 deputados da Lista Unificada, aos sete do Yemina, de ultradireita, liderado pelo ex-ministro da Educação, Naftali Bennett, e aos do Israel Beiteinu (ambos violentamente antiárabes), além dos três do Meretz, partido da esquerda sionista, reforçado por uma dissidente trabalhista. É fácil perceber que há poucas chances de que esse arco-íris oposicionista consiga se unir em torno de qualquer coisa.

O novo governo é composto por 36 ministros, num país de nove milhões de habitantes, um peso para o Estado que o articulista Yossi Verter, do jornal Haaretz, avaliou só poder ser estimado em “balanças de escala industrial”. 

Grande peso no gabinete para os partidos ultraortodoxos. Assim, o Shas, agremiação com forte representatividade entre os judeus religiosos de origem sefaradi, oriental, e que tem à frente Arye Deri, acusado de corrupção em vários processos, chefiará o Ministério do Interior. Responderá, portanto, pela política habitacional – o que quer dizer créditos mais amplos para os colonos na Cisjordânia, majoritariamente de ultradireita, além da ampliação dos assentamentos.

Deri fará dobradinha com o novo ministro da Habitação, Yaakov Litzman, ex-titular da pasta da Saúde, onde se notabilizou por relaxar a política de confinamento para as sinagogas e outras instituições ultraortodoxas. Por conta disso, os religiosos respondem por uma grossa fatia dos quase 300 mortos no surto de coronavírus, que Israel enfrentou com sucesso graças à política rígida de confinamento.

O mesmo Litzman, aliás, foi acusado de beneficiar a rede de lojas de utensílios domésticos Ykea, um dos principais financiadores de seu partido, o Judaísmo Unido da Torá, garantindo uma abertura precoce das lojas em pleno surto de coronavírus. A única qualificação de Litzman para ocupar tanto o Ministério da Saúde como o da Habitação é pertencer à seita de Ger, uma das mais influentes linhagens rabínicas de Israel e dos Estados Unidos.

Apesar do número recorde de ministros, o novo gabinete é recheado de nulidades. Bibi afastou cuidadosamente todos os possíveis rivais em seu partido.

Olhando mais além do cenário interno, o sucesso de Netanyahu, ao formar o novo governo, reforça sua influência na “Internacional dos nacionalistas”, que compõe com o presidente Donald Trump, dos EUA, e com outros menos cotados, como Viktor Orban, da Hungria, que o líder israelense exibe como aliado, até esquecendo sua clara inclinação antissemita. É a essa “Internacional” que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro almeja pertencer, bandeiras de Israel em punho.

“Gás sobre os árabes!”, pede a pichação escrita diante de uma residência palestina, na cidade velha de Hebron (Cisjordânia)

Mas a maior conquista de Bibi é ocupar uma posição de força diante do próximo titular da Casa Branca. Afinal, se Trump vencer as eleições americanas de novembro, encontrará um Netanyahu fortalecido. Se, porém, a vitória for do democrata Joe Biden, que já demonstrou contrariedade diante dos planos de anexação de partes da Cisjordânia, a direita israelense terá melhores condições de resistir à pressão dos EUA. 

Sem esquecer que o sinal verde para a anexação deixou no mato sem cachorro Mahmoud Abbas, o líder da Organização pela Libertação da Palestina (OLP). Com quase 85 anos e questionadíssimo, Abbas viu-se diante da necessidade de anunciar o rompimento de “todos os acordos” com Israel e com os EUA. Mas romper e fazer o que? Voltar à luta armada? Entregar-se aos braços do fundamentalismo islâmico do Hamas e destruir a OLP?

Finalmente, a construção de um novo gabinete em torno de Netanyahu dá ao primeiro-ministro israelense excelentes condições de enfrentar o processo judicial por corrupção – hoje, a maior ameaça à sua frente. Nada mau para alguém que, há alguns meses, era dado como um cadáver político.

Os partidários de Netanyahu têm, então, muitos motivos para dançar em roda aos gritos de “Bibi, melekh Israel” (Bibi, rei de Israel), como os judeus de todo o mundo fazem há milênios com os nomes dos reis David e Salomão. 

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail