30 de novembro de 2020
Joe Biden retomará a abertura para Cuba iniciada por Barack Obama, comenta-se em círculos ligados à equipe de política externa do presidente eleito dos EUA. A estratégia de “máxima pressão” de Donald Trump fracassou claramente, tanto no caso cubano quanto no venezuelano. O problema é que, do ponto de vista da política americana, Cuba é, essencialmente, um tema de política interna.
Edifício da embaixada dos EUA em Cuba, situado na Baía de Havana, de arquitetura modernista, erguido nos anos 1950
O papa Francisco e o Canadá mediaram negociações sigilosas de 18 meses entre o governo Obama e o regime de Raúl Castro até que, em dezembro de 2014, Washington e Havana anunciaram a deflagração de um processo de normalização de relações diplomáticas. Era o começo do degelo.
Cuba foi removida da lista de “países patrocinadores de terrorismo” publicada regularmente pelos EUA em maio do ano seguinte e, em julho, os escritórios diplomáticos de ambos os países na capital do outro foram elevados ao estatuto de embaixadas. Finalmente, em março de 2016, Obama tornou-se o primeiro presidente americano a visitar Cuba desde a revolução castrista de 1959, reunindo-se com Castro mas também com dissidentes.
A abertura propiciou viagens turísticas de americanos à ilha caribenha, investimentos de empresas dos EUA na economia cubana e, crucialmente, a remessa de dinheiro de cubanos-americanos para seus familiares no país comunista. Donald Trump, eleito no final de 2016, reverteu a maior parte dessas iniciativas, impondo restrições parciais de viagens e de remessas monetárias – sem, contudo, romper relações diplomáticas.
Trump obviamente revestiu suas medidas restritivas com argumentos ligados à democracia, às liberdades e aos direitos humanos. Os argumentos eram verdadeiros. Mas sua lógica baseava-se num frio cálculo eleitoral: mais de 1,5 milhão de cubano-americanos residem na Flórida, um dos estados-pêndulo no Colégio Eleitoral dos EUA.
A aposta de endurecer com o regime castrista pagou dividendos. Cerca de 55% dos cubano-americanos do estado sufragaram seu nome em 2020, contra 30% dos porto-riquenhos e 48% de “outros latinos”, uma categoria que inclui brasileiros. No decisivo condado de Miami-Dade, Trump saltou de 334 mil votos em 2016 para 533 mil em 2020. Já Biden obteve 618 mil votos no condado, menos que os 624 mil conquistados pela democrata Hillary Clinton em 2016. No fim, graças à essa redução marcante da diferença na área de Miami, Trump ficou com os 29 delegados da Flórida no Colégio Eleitoral.
A aposta cubana de Biden segue lógica diferente, ancorada em estratégias mais amplas de política externa. Para decifrá-la, o melhor é revisitar a Ostpolitik de Willy Brandt.
A Alemanha foi dividida em dois Estados, a Alemanha Ocidental (RFA) e a Alemanha Oriental (RDA), na aurora da Guerra Fria, em 1949. Os dois Estados alemães não se reconheciam mutuamente e permaneceram, por isso, fora da ONU até 1972. A Ostpolitik (Política do Leste) propiciou o estabelecimento de relações diplomáticas.
Willy Brandt (à direita), então prefeito de Berlim, com o presidente americano John Kennedy, na Casa Branca, em 1961
Willy Brandt, chanceler (primeiro-ministro) social-democrata da RFA entre 1969 e 1974, foi o arquiteto da Ostpolitik. A aproximação com a RDA provocou forte controvérsia na Alemanha Ocidental, com acusações de que Brandt renunciava à defesa das liberdades e dos direitos humanos na Alemanha Oriental. O chanceler retrucava que os intercâmbios entre as duas Alemanhas serviriam para expor mais claramente o contraste entre democracia e tirania – e, ainda, o contraste entre a prosperidade crescente na parte ocidental e a estagnação econômica da parte oriental.
No fim, Brandt tinha razão. A Ostpolitik não se revelou como fator exclusivo, mas desempenhou um peso evidente no surgimento de grupos cívicos dissidentes na RDA. Esses dissidentes que começaram a se reunir secretamente na década de 1970 desempenhariam papeis decisivos no movimento de contestação que, em 1989, conduziria à quedado Muro de Berlim.
Sanções e embargos econômicos têm, geralmente, efeitos contrários aos pretendidos, real ou alegadamente, por seus promotores. No caso cubano, o embargo econômico dos EUA contra o regime castrista, imposto inicialmente em 1960, fracassou inteiramente. Se, de um lado, aprofundou as dificuldades econômicas cubanas, de outro funcionou como pretexto perene para a manutenção do sistema ditatorial.
Fidel Castro sempre manipulou habilmente o embargo americano como peça de propaganda de um regime que se apresenta como fortaleza socialista sitiada pela maior potência militar e econômica do mundo. Durante muito tempo, a ajuda soviética aliviou a pressão do embargo. Depois, nos anos de terríveis privações subsequentes ao fim da URSS, quando a população cubana viveu no limiar da fome, o cerco econômico dos EUA foi utilizado para justificar o aperto da repressão estatal em Cuba. A política de Obama destinava-se a iluminar a hipocrisia do governo castrista, removendo um pilar crucial de seu discurso.
As justificativas americanas para o embargo a Cuba sempre iluminaram uma duplicidade moral, mas o cinismo chegou a um extremo no governo Trump. A Casa Branca falava, em tons de santa indignação, sobre liberdades e direitos humanos em Cuba enquanto estreitava a parceria com uma monarquia saudita engajada na repressão às mulheres e separava crianças de seus pais na fronteira mexicano-americana.
A “máxima pressão” de Trump serviu, exclusivamente, para oferecer novos pretextos à perseguição aos dissidentes em Cuba. Mais ao sul, na Venezuela, não abalou a ditadura de Nicolás Maduro, mas agravou a crise humanitária num país devastado pela ruína econômica.
Biden promete retomar o o fio da diplomacia desenrolado por Obama. Um novo ciclo de expansão dos intercâmbios com Cuba tende a reduzir os sofrimentos na ilha caribenha, que se beneficiará do turismo, das remessas de cubanos-americanos e de investimentos externos. Nessa moldura, legitimar a repressão à dissidência interna se tornará mais difícil e politicamente custoso.
Barack Obama com Raúl Castro, em Havana, em 2016
O regime cubano funcionou como mediador eficiente das negociações de paz na Colômbia que conduziram ao cessar-fogo entre o governo e a guerrilha das Farc, em junho de 2016, e ao desarmamento dos guerrilheiros no ano seguinte. No horizonte de Biden está a possibilidade de uma negociação similar entre o falido regime ditatorial venezuelano e as oposições, única via capaz de encerrar a crise humanitária no país. Cuba pode desempenhar o papel crucial nesse processo. Só isso já seria motivo suficiente para a remoção das restrições impostas por Trump.
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