Rodrigo Londoño, o Timochenko, ex-comandante supremo das Farc, atual líder do partido Comuns
As Farc encaram a justiça, finalmente. Não um tribunal comum, mas a Jurisdição Especial para a Paz (JEP), uma instituição estabelecida em 2016, pelo acordo que encerrou a guerra entre as forças do governo e a organização guerrilheira. Em 26 de janeiro, a JEP pronunciou seu primeiro veredito, responsabilizando antigos integrantes do Secretariado da guerrilha por crimes de guerra e crimes contra a humanidade.
O mais célebre é Rodrigo Londoño Echeverry, comandante supremo das Farc, nome de guerra Timoleón Jiménez, apelido Timochenko, atual presidente do partido Comuns, oriundo do desarmamento da guerrilha. Junto com sete outros altos líderes, um deles já falecido, Timochenko foi condenado pela prática da tomada de reféns e pela cobrança de resgate para financiamento da organização.
Foram investigados 21.396 sequestros, entre 1990 e 2016. Nas 322 páginas da sentença, o tribunal especial descreve as condições desumanas impostas aos cativos por uma guerrilha que jurava combater por uma sociedade justa e igualitária. Os prisioneiros sofreram constantes espancamentos, passaram fome, foram obrigados a urinar nas próprias roupas e proibidos de tomar banho durante meses.
Às torturas físicas, adicionaram-se torturas psicológicas. Muitos permaneceram acorrentados pelo pescoço ou trancados em apertadas caixas de madeira. Alguns deles tiveram que cavar suas próprias covas. As revelações surgiram de entrevistas com mais de 2,5 mil vítimas e tomaram extensos depoimentos de soldados da guerrilha que operaram como carcereiros. A documentação obtida forma um robusto corpo de prova e uma narrativa histórica devastadora.
A vítima mais conhecida dos sequestros das Farc é a ex-senadora Íngrid Betancourt, capturada em fevereiro de 2002, quando fazia campanha pela presidência colombiana, e resgatada pelas forças de segurança em julho de 2008, junto com outros 14 cativos. Mas a guerrilha sequestrava ricos e pobres, políticos, militares, empresários ou camponeses. A prática destinava-se à obtenção de resgates em dinheiro mas, também, a submeter as populações dos povoados. Frequentemente, em troca da libertação de pais de família, seus filhos eram obrigados a aderir aos batalhões guerrilheiros. Não é casual que, no seu primeiro teste eleitoral, em 2018, o partido Comuns só tenha conseguido insignificantes 0,38% dos votos.
A cativa Íngrid Betancourt, em vídeo exibido na TV colombiana em 31 de agosto de 2003
“Não queremos romper os vínculos com nosso passado. Fomos e seguiremos sendo uma organização revolucionária.” A declaração de Iván Marquez, uma das antigas lideranças da guerrilha, marcou a abertura do Congresso Constitutivo do Comuns, em agosto de 2017. Meses depois, Márquez abandonou o processo de paz, passou à clandestinidade e anunciou que sua facção retomaria a guerra de guerrilha.
O acordo de paz é assombrado, desde o início, pelos fantasmas do passado. O nome original do partido anunciado por Márquez era Força Alternativa Revolucionária dos Comuns, que conservava o acrônimo Farc, da organização guerrilheira. Foi apenas no final de 2020 que o partido passou a utilizar somente o nome Comuns, a fim de tentar apagar, do quadro-negro da memória eleitoral, sua história de crimes.
A contestação do acordo de paz manifestou-se, simetricamente, pela voz do ex-presidente colombiano Álvaro Uribe, que conduziu uma vitoriosa campanha pelo “Não” no referendo popular de outubro de 2016. Na ocasião, o acordo foi rejeitado por 50,2% dos eleitores, o que provocou alterações nos textos e a ratificação do tratado revisado pelo Congresso, no final de novembro do mesmo ano.
Magistrados da JEP, em julho de 2018
A JEP é o alvo principal do bombardeio dos seguidores de Uribe. O Centro Democrático, partido de Uribe e do atual presidente, Iván Duque, alega que o sistema judicial de transição foi criado para perseguir as forças militares governamentais e assegurar a impunidade dos ex-guerrilheiros. O primeiro veredito comprova que a acusação carece de fundamento.
De acordo com as regras da JEP, os sentenciados têm um mês para acatar o veredito ou para rejeitá-lo. Na primeira hipótese, o tribunal restringiria suas liberdades, formulando penas alternativas de trabalho social, como a remoção de minas ou a reconstrução de escolas destruídas pelo conflito. Na segunda, abriria processos formais que podem resultar em penas de prisão de até 20 anos.
“Nosso compromisso com a verdade e as vítimas é completo!”, prometeu um dos réus, Pablo Catatumbo, em 2018, no início dos depoimentos. Neles, os ex-líderes guerrilheiros declararam-se chocados ao conhecerem as narrativas das vítimas e Timochenko disse que suas ordens determinavam um tratamento digno para os cativos. Sob as leis do direito humanitário, comandantes têm a responsabilidade de impedir subordinados de cometer crimes de guerra. Na sentença, a JEP concluiu que as ordens de Timochenko limitavam-se a evitar o assassinato dos reféns e decidiu condená-los pessoalmente pelas violações dos direitos humanos das vítimas.
O que, agora, será feito da promessa de Catatumbo? Se os condenados acatarem a sentença, o Comuns estará provando seu compromisso com a paz e com a via da política. Se, pelo contrário, a rejeitarem, provocariam o desencanto da opinião pública com a ideia de reconciliação nacional e dariam novo fôlego aos detratores do acordo de paz.
O Comuns joga sua sorte na decisão dos condenados. O acordo de paz garantiu, até 2026, dez assentos parlamentares ao partido dos ex-guerrilheiros, independentemente dos resultados eleitorais, a fim de inseri-lo no processo político. Graças a essa cláusula, e não ao voto dos eleitores, Catatumbo tornou-se senador, assim como Julián Cubillos, outro dos condenados. Duque e Uribe contestam a cláusula, argumentando que ela fere a soberania popular. Se confrontarem a justiça de transição, os antigos líderes das Farc conferirão substância ao argumento.
A encruzilhada também não é simples para a JEP. Os magistrados devem decidir se, depois do veredito, Catatumbo e Cubillos têm o direito de manter suas cadeiras no Senado. “A continuidade no Congresso dos responsáveis por sequestros nos ofende a todos”, opina Jorge Restrepo, um respeitado analista político. Mas a eventual remoção dos dois senadores reforçaria, entre os ex-guerrilheiros, a facção que defende o retorno à clandestinidade.
Chegada dos últimos guerrilheiros das Farc a uma das zonas designadas de desarmamento, 20 de fevereiro de 2017
A longa guerra civil colombiana começou em 1964 e, mais tarde, entrelaçou-se com a “guerra às drogas” financiada pelos EUA. Seus traumas imensos marcam a memória nacional e se expressam, tragicamente, pelas estatísticas macabras de deslocados internos. A paz é uma planta frágil.
O trabalho da JEP prossegue. Nos próximos meses, deve sair o veredito sobre as responsabilidades de comandantes guerrilheiros de escalão intermediário nos sequestros e no recrutamento de crianças. Depois, será a vez do julgamento de chefes militares acusados pelo assassinato de milhares de civis, que poderá sentenciar ex-generais por crimes de guerra e crimes contra a humanidade tão graves quanto os cometidos pelas Farc.
A justiça transicional vale para todos. É contra esse conceito, precisamente, que Uribe e Duque mobilizam sua base de apoio.
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