23 de novembro de 2020
Enfermeiras e enfermeiros, auxiliares de enfermagem e médicos são os heróis mundiais da pandemia: a valorosa linha de frente que arrisca a própria vida para cuidar dos demais. Mas, na República da Irlanda, o Departamento de Justiça e Igualdade não se sensibilizou com isso e, dando prosseguimento a uma política imigratória restritiva, vem determinando a expulsão de muitas dessas pessoas pelo fato de serem imigrantes indocumentados. A circunstância de que muitos deles passaram os últimos meses cuidando dos idosos e doentes nas instituições do país, ou trabalhando em setores essenciais para a economia, havia levado à suposição de um acolhimento por parte das autoridades imigratórias. Ledo engano.
No início deste mês, a senadora Eileen Flynn declarou ser “absolutamente ridículo” que profissionais da saúde estivessem sendo deportados em meio à pandemia. Até porque a taxa de contaminação dos agentes de saúde na Irlanda foi, até agora, a maior de toda a União Europeia. Em meados de junho, um terço dos contaminados no país era constituído por esses profissionais. Enquanto os “nacionais” eram afastados e crescia a demanda por pessoas com qualificações nessas áreas, o ministro da Saúde chegou a agradecer publicamente aos 160 imigrantes que trabalhavam diretamente na área, dando-lhes “cem mil boas-vindas”.
Enfermeiro de origem zimbabuana atende paciente em hospital em Dublin. A junção entre a figura do imigrante e, com frequência, uma origem africana, ajuda a ativar os mecanismos de xenofobia e racismo que contaminam as sociedades ocidentais mais que a própria pandemia
Nada disso importa. O governo irlandês prioriza a execução de uma política sustentada mais pela xenofobia do que pela racionalidade da administração pública. Expulsar imigrantes e reduzir o número dos requerentes de asilo admitidos são práticas que costumam chegar no mesmo pacote: o do populismo nacionalista. Na Europa de hoje, mesmo governos que não rezam pela cartilha da nova direita incorporam o discurso xenófobo e apertam o garrote das leis imigratórias em aceno a esses grupos radicais (não raro, supremacistas), às custas de imigrantes e refugiados. Vejam o Brexit… A própria União Europeia tem sido bastante falha e ambivalente sobre esse tema desde a crise migratória de 2015.
Nem sempre o imigrante é uma pessoa clandestina, ou seja, a maioria passou pela imigração, seguiu todos os trâmites legais de pedidos de residência e está aguardando a resposta. Por isso são “indocumentados” e não “ilegais”. E existem ainda os “refugiados”, condição definida juridicamente pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) para pessoas em situação de risco em seus países de origem e que dispõem de cotas especiais de imigração, o asilo político. Os refugiados solicitantes de asilo também aguardam resposta dos órgãos públicos responsáveis.
Com frequência cada vez maior, a resposta desses órgãos é muito demorada e sujeita a subjetividades, sendo parte desse movimento anti-imigratório mais amplo. Como não é possível esperar sem trabalhar, muitos dos solicitantes arranjam trabalhos precários como seguranças, empacotadores, faxineiros, e também cuidadores de idosos e doentes, às vezes por anos. Assim vão refazendo a vida, indocumentados.
É o caso, por exemplo, de uma enfermeira entrevistada pela CNN. Apresentada pelo apelido Lily, essa zimbabuana fugiu da perseguição aos LGBT em seu país e aguardava, há anos, a aprovação à sua permanência na Irlanda enquanto trabalhava como auxiliar de enfermagem. Mas, em outubro, chegou a carta com a informação de negativa do asilo e o alerta de que ela deve sair rapidamente do país. Segundo a justificativa apresentada, ela “não parece bissexual”. Isso significa voltar para o Zimbábue e para o risco de violência e morte.
Lily: “Eles estão dizendo que os trabalhadores da linha de frente são heróis… mas, atrás de portas fechadas, eles estão nos expulsando e chutando de volta [para os países dos quais fugimos]”. A carta do Departamento de Justiça invalidou a permissão de trabalho de Lily, mas ela engoliu o choro e continua trabalhando.
De acordo com reportagem publicada pelo Irish Examiner, nos últimos sete anos têm havido aumentos consecutivos no número de recusas aos pedidos de imigração na Irlanda, sendo o ano de 2019 especialmente restritivo. O ano passado contou o maior número de negativas para solicitações de imigração: 2.535, contra 1.385 no ano anterior. Em 2019 também aumentou significativamente o número de pessoas que tiveram seus pedidos de entrada no país recusados pelos controles de fronteira: 7.455, uma média diária de mais de 20.
Bulelani Mfaco, porta voz de uma entidade dedicada a buscar apoio para os que pedem asilo no país, o MASI, afirmou à CNN que o Departamento de Justiça irlandês é “hostil aos imigrantes”. Mesmo aqueles que trabalham em funções essenciais, desempenhando seu trabalho com afinco também como forma de expressar gratidão ao país que almejam como lar, recebem as cartas solicitando que se retirem. No governo, felizmente, ouvem-se algumas vozes que se comprometeram a defender uma análise mais criteriosa das listas de expulsões.
O MASI chegou a apelar ao Departamento de Justiça e Igualdade para que regularizasse a situação dos imigrantes indocumentados, incluindo a oferta de moradia a todos em decorrência da pandemia. Não seria um tratamento especial, mas a ampliação do já existente Direct Provision, um sistema supervisionado pelo governo e operado por empresas privadas com lucrativos contratos, segundo explica reportagem da CNN. Nesse modelo, os requerentes de asilo são alojados em acomodações de emergência enquanto esperam a resposta oficial. Mas o modelo é polêmico e objeto de inúmeras críticas, intensificadas com a pandemia.
O Departamento de Justiça e Igualdade, em Dublin (Irlanda), fonte das cartas da injustiça e da desigualdade
Eles, comumente, são agrupados em pequenos espaços compartilhados com muitas pessoas. Durante a pandemia, em nome do distanciamento social, vários foram realocados para casas em áreas rurais, muitas vezes a dezenas de quilômetros de distância de onde viviam e tinham trabalho. Essa situação produziu ainda mais insegurança e medo junto aos imigrantes, que têm visto pessoas ficarem doentes e encontrarem muitas dificuldades para obterem auxílio. Para piorar, rapidamente os habitantes dessas pequenas localidades passam a temer a presença desses “estranhos”, vistos como potenciais portadores da Covid-19. Assim a receptividade inicial que muitos encontraram acabou dando lugar ao isolamento, à hostilidade aberta e até a pedidos de expulsão.
O chamado à união para vencer à Covid-19 não cessa de saudar os trabalhadores essenciais que têm permitido às sociedades europeias manterem lockdowns e longas quarentenas. Eles são heróis na TV e no discurso. Nos órgãos de imigração da Irlanda, porém, são simplesmente imigrantes ilegais.
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