UMA NAÇÃO DIVIDIDA PELOS DIREITOS CIVIS

 

10 de agosto de 2020

Direitos civis incompletos são a maior causa dos conflitos sociais nos Estados Unidos. O federalismo adotado pela Constituição de 1787, ao garantir ampla autonomia legislativa aos estados, fornecia cobertura legal aos sulistas para resistir à integração da população negra, um século depois da guerra civil por fim à escravidão. A invocação de “costumes locais”, “nosso modo de vida”, “nossos valores” e afins servia para contornar as leis federais que afirmavam a igualdade entre os cidadãos, independente de raça ou credo. Mas isso só foi possível porque, por muito tempo, houve apoio da Suprema Corte às leis Jim Crow.

Depois, com o advento da Guerra Fria e a nova posição de liderança internacional assumida pelos Estados Unidos, o ambiente político e mental no país começou a mudar, em parte graças ao incansável esforço das organizações como a NAACP e a ACLU para cobrar o respeito aos direitos civis e denunciar a segregação racial. Uma nova Lei de Direitos Civis foi aprovada em 1964, revogando oficialmente as leis Jim Crow. E, mais uma vez, a descentralização legislativa foi usadas para resistir às mudanças. A diferença é que dessa vez o governo federal assumiu uma nova postura, entendendo que a questão racial era a mais explosiva do país.

Vieram as lutas pelos direitos civis, os jovens contestadores do Black Power, os atuais militantes do Black Lives Matter. Ainda assim, todos puderam assistir, em maio de 2020, aos longos minutos durante os quais um policial manteve seu joelho sobre o pescoço de George Floyd, um homem negro e desarmado, até matá-lo. A reação de indignação que tomou conta do país e tornou-se tema importante na campanha eleitoral não aconteceu pelo fato do caso ser atípico. Pelo contrário, o que chocou foi a banalidade: durante quase 8 minutos nenhum dos colegas do policial pensou em detê-lo. O racismo é uma ideologia tão entranhada no ethos dos Estados Unidos quanto a crença no Destino Manifesto.

1948 conclui a série sobre a história da escravidão e do racismo nos Estados Unidos, publicada em três partes: o tempo da escravidão; a era da segregação racial; a luta contra o racismo.

 

A ESTREIA COMO SUPERPOTÊNCIA INTERNACIONAL

A entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial, em 1917, foi decisiva para vencer o Império Alemão. A capacidade industrial e agrícola da jovem nação foi comprovada. Contudo, na hora da paz, o Congresso escolheu o caminho do isolacionismo ao invés de assumir um papel mais destacado no cenário internacional, postura que só mudaria com a Segunda Guerra Mundial. Fechados em si mesmos, os EUA renunciaram à liderança internacional, preservando-se de qualquer tipo de crítica.

Não que elas fossem muito comuns, porque ainda prevalecia o pensamento racial, supostamente científico, baseado no conceito da superioridade do homem branco e na legitimidade moral de seus atos em nome de uma “missão civilizadora”. Mas nos Estados Unidos, onde a segregação racial era sustentada pelas leis, as “ciências” operavam com especial afinco para fornecer justificativas ao racismo: testes, medições de crânios, descrições de comportamentos e hábitos, etc.

O empreendimento “científico” foi tão eficaz que acabou se tornando referência para os projetos nazista de eugenia e extermínio de “raças inferiores”. E, depois da Segunda Guerra, também para o sistema do apartheid criado na África do Sul.

 

Forças Armadas: símbolo da nação

Homens e mulheres negros se alistaram nas Forças Armadas dos EUA nas duas guerras mundiais. Seus batalhões eram segregados e os comandantes eram brancos. A eles eram atribuídas ações de transportes e serviços gerais, visto que a lógica militar também estava impregnada pelo racismo: negros não eram treinados para combate porque o estereótipo é de que não seriam aptos. Admitir equivalente bravura e patriotismo deles implicaria negar o alicerce racial do conceito da “nação de colonos brancos”. 

Em 1942, a comunidade negra de Pittsburgh lançou a campanha do “Duplo V”, pelo máximo engajamento dos negros no esforço de guerra, invocando o desastre que representaria uma vitória do Eixo para os não-brancos e a oportunidade de envergonhar a opinião pública branca. A campanha foi abraçada em todo o país e quase dois milhões de pessoas negras se alistaram.

Walter Francis White, da NAACP, escreveu: “A Segunda Guerra Mundial aumentou imensuravelmente a consciência do negro sobre o ‘ser americano’ e a prática da democracia… [Veteranos negros] voltaram para casa convencidos de que qualquer que fosse a melhoria alcançada, ela viria em grande parte de seus próprios esforços. Eles voltaram determinados a empregá-los ao máximo.”

bufalo soldiers - 2a guerra

Buffalo Soldier era o nome genericamente atribuído aos batalhões negros. Aqui, na campanha na Itália, durante a Segunda Guerra.

A contradição explícita entre o que estava em jogo na guerra ao nazismo e a segregação dos soldados americanos tornou-se insustentável. O ideário nazista expôs o significado último das concepções baseadas em “raças superiores” e “inferiores”. No momento do horror provocado pela descoberta do Holocausto e do surgimento do conceito de genocídio, a gloriosa Miss Liberty viu, por um minuto, sua imagem refletida no espelho…

Em 1948, no ambiente de criação da ONU e de elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma ordem executiva do presidente Harry Truman pôs fim à segregação das tropas, em plena Guerra da Coréia. O presidente ponderou: “Se queremos inspirar os povos do mundo cuja liberdade está em risco, se desejamos restaurar a esperança para aqueles que já perderam suas liberdades civis, se queremos cumprir a promessa que é nossa, devemos corrigir as imperfeições remanescentes em nossa prática da democracia”.

A dessegregação das tropas, contudo, não bastou para eliminar o racismo da estrutura militar. A desproporção entre brancos e negros com altas patentes ou a frequência com que soldados negros são submetidos a medidas disciplinares falam por si. Na década de 1960, durante a Guerra do Vietnã, tudo isso seria cobrado do governo americano.

 

A “Segunda Migração”

Durante a Segunda Guerra Mundial, a alta demanda por produtos bélicos desencadeou a chamada “Segunda Migração”. Dessa vez, os empregadores foram aos estados sulistas arregimentar trabalhadores entre os pobres, negros e brancos. Milhares se transferiram, concluindo o processo de urbanização da parcela majoritária da população negra. Apesar de legalmente menos discriminados nos estados do norte, onde geralmente tinham direito ao voto e podiam mandar seus filhos às escolas, os negros se tornavam bodes expiatórios dos medos e frustrações provocados pela competição por moradias e empregos. Mesmo imigrantes recém-chegados participavam da discriminação.

A urbanização da população negra refletiu-se no aumento de filiados à NAACP, que alcançou meio milhão de membros em 1945, intensificando as campanhas contra a segregação e os linchamentos. Outro grupo muito ativo surgiu em 1942, o Congresso pela Igualdade Racial (CORE), cuja atuação se dava em outra frente: a dos boicotes e piquetes pelo fim da segregação no transporte público, nos teatros e restaurantes.

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Nos anos 1940 o cinema caprichava na fantasia: filmes como Stormy Weather podiam apresentar atores e atrizes negros como protagonistas, mas na vida real, eles entravam pela porta dos fundos

Um efeito importante da maior participação dos negros no mercado de trabalho e consumo foi seu aparecimento nos filmes de Hollywood como protagonistas ou coadjuvantes de histórias leves, que exploravam a música e a dança e traziam para as telas elementos fundamentais da cultura americana. O cinema era, então, o maior veículo de comunicação: criava e projetava os ícones daquela sociedade. Os musicais dos grandes estúdios apresentaram o blues e o jazz ao “homem-comum” do nordeste e oeste do país, transformando-os nos ritmo da época.   

 

A LUTA PELOS DIREITOS CIVIS

O racismo era visto com absoluta naturalidade e os negros sabiam estarem sujeitos às mais cruéis violências, para as quais jamais haveria reparação. Os linchamentos se tornaram a expressão mais monstruosa do que significava ser negro sob as leis Jim Crow.

Corpos pendurados em árvores, os “frutos estranhos” tão dolorosamente cantados por Billie Holliday, eram tão banais que existe um farto material fotográfico registrando-os. O que mais chama a atenção nessas imagens são as multidões de pessoas brancas observando a cena, com alguns espectadores sorrindo frente ao degradante espetáculo. Ninguém está encapuzado: não eram membros da Ku Klux Klan agindo clandestinos na calada da noite. E nunca alguém era punido.

linchamento público

“Frutos estranhos” como esses eram facilmente encontrados pelo sul do país

 

A batalha nos tribunais

A NAACP se espraiava pelo país e seguia a tática de buscar casos judiciais que ajudassem a contestar as leis Jim Crow. Enquanto isso, multiplicavam-se as organizações lutando pelos direitos civis. Uma nova geração de juízes federais começou a declarar inconstitucionais as ações de segregação, rompendo com o paradigma do racismo legalizado. Para os defensores dos direitos civis, tratava-se de completar as reformas previstas após a Guerra Civil e posteriormente abandonadas.

Foi uma longa batalha para vencer as leis estaduais que resistiam à nova jurisprudência. O velho federalismo dava a pequenos condados autonomia para decidir não seguir as decisões da Suprema Corte. A criação de órgãos federais de controle que avançaram sobre certas liberdades estaduais refletiu o esforço do governo federal unificar, de fato, a aplicação das leis em todo o país. Não por acaso, uma das queixas dos supremacistas brancos que se multiplicam nos EUA desde os anos 1980 é exatamente a do avanço do governo federal sobre as “liberdades individuais”.

Em 1954, a Suprema Corte julgou o caso Brown vs Board of Education, de Topeka, no estado do Kansas. A ação foi movida por Oliver Brown, pai de uma jovem cuja matrícula na escola perto da própria casa fora rejeitada pela secretaria de educação local, que exigia que a estudante se deslocasse para longe, até uma escola segregada. Por unanimidade os juízes decidiram que a segregação era inerentemente desigual e, portanto, inconstitucional, ordenando o fim da segregação nas escolas de todo o país. Foi o primeiro grande abalo na doutrina do “separados, mas iguais”.

estudantes escoltados

O fim da segregação escolar provocou reações agressivas dos racistas. A novidade era a intervenção de forças federais para proteger os estudantes negros

As resistências eram enormes. Em Farmville, na Virgínia, para evitar a integração, as escolas públicas foram fechadas em 1959, só reabrindo em 1964, por ordem da Suprema Corte. A classe média branca estudava em escolas particulares com  vouchers do governo, enquanto os pobres, pretos e brancos, não tinham escola nenhuma.

Foram necessários mais 13 anos depois do Caso Brown para que a Suprema Corte decidisse a favor do direito de Mildred e Richard Loving, ela negra, ele branco, permanecerem casados sem serem considerados criminosos, como exigiam as leis raciais da Virgínia desde 1924. A Corte considerou que o Estado não tem a prerrogativa de interferir sobre um tema íntimo. A decisão atingia outros 16 estados que proibiam a miscigenação racial.   

 

O poder da Rosa

Rosa Parks era uma militante da NAACP que vivia na cidade de Montgomery, capital do segregado Alabama. Essa mulher de meia idade entrou para a história, no primeiro dia de dezembro de 1955, ao se recusar a ceder seu lugar no ônibus para um passageiro branco. Meses antes, uma jovem teve a mesma reação e terminou presa, assim como Rosa Parks também foi. Mas, na hora de Parks, a NAACP se uniu a organizações locais dando início a uma campanha para que cidadãos negros boicotassem as empresas de ônibus da cidade enquanto os assentos fossem segregados. O boicote durou pouco mais de um ano e terminou com a Suprema Corte declarando inconstitucional a segregação no transporte público da cidade. A decisão era inédita, pois a competência legal sobre o tema era estritamente estadual.

Os eventos em Montgomery foram divulgados pelos jornais e TVs de todo o país e, logo, destacou-se a figura do porta-voz do movimento, o pastor Martin Luther King. Fazendo um discurso baseado nos valores da fraternidade cristã e da doutrina da “não-violência”, inspirada em Mahatma Gandhi, King ganhou a simpatia do público nacional. Sua Conferência de Lideranças Cristãs do Sul (SCLC) atuava junto às comunidades negras fazendo intenso trabalho de alfabetização e registro de eleitores, organizando “marchas pela liberdade”, promovendo Sit-ins e apoiando os jovens do Freedom Riders.

rosa parks e martin luther king

Rosa Parks e Martin Luther King foram nomeados a “mãe” e o “pai” do movimento pelos direitos civis

 

“Eu tenho um sonho…”

Ao tomar posse como presidente pelo Partido Democrata, em janeiro de 1961, John F. Kennedy imaginava que os EUA poderiam vencer a Guerra Fria pela força da persuasão, mostrando ao mundo o que uma sociedade livre e democrática tinha a oferecer. O que o mundo via, contudo, e a União Soviética não deixava de apontar, era o país racista e violento, que discriminava em seu território o mesmo tipo de pessoas que dizia querer defender pelo resto do mundo. Kennedy tinha consciência do insustentável paradoxo e tentava resolver o problema, embora nunca assumisse um posicionamento aberto contra as leis de segregação. Ele delegou a seu irmão, Robert Kennedy, Procurador-Geral de Justiça, a autoridade para agir.

Quando Martin Luther King e o seu círculo decidiram convocar a “Marcha sobre Washington”, no início de 1963, Kennedy sentiu-se pressionado. Tentando neutralizar o evento, se não mesmo desmotivá-lo, enviou ao Congresso um projeto de lei sobre direitos civis. A iniciativa não evitou que, em 28 de agosto, mais de 250 mil pessoas vindas de todo o país ocupassem Washington para pedir liberdade, trabalho, justiça social e o fim da segregação racial.

Ficaram conhecidos como “Seis Grandes” do Movimento de Direitos Civis: Bayard Rustin, o estrategista e propositor da Marcha; o líder sindical A. Phillip Randolph; Roy Wilkins, da NAACP; Whitney Young Jr., da Liga Nacional Urbana; James Farmer, do CORE; e John Lewis, do Comitê de Coordenação de Estudantes Não-violentos (SNCC), idealizador dos Freedom Riders. Embora não listada, Dorothy Height, que dirigia o Conselho Nacional de Mulheres Negras, foi a “sétima grande”.  

marcha sobre washington

Três meses depois da Marcha sobre Washington, Kennedy foi assassinado em Dallas, Texas. Coube a seu vice, novo presidente, Lyndon B. Johnson, assinar a Lei de Direitos Civis promulgada pelo Congresso em julho de 1964.

Em outubro, King recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Na véspera, recebera uma carta anônima sugerindo suicídio se não quisesse ver a sua vida privada exposta. Hoje se sabe que uma operação de escutas telefônicas havia sido organizada pelo FBI, cujo chefe, Edgar Hoover, considerava o pastor um comunista infiltrado e perigoso. Assim, o FBI descobriu a infidelidade conjugal do líder negro.

Cientes de que a histórica lei federal precisaria ser efetivamente implementada, as organizações de direitos civis mantiveram-se em grande atividade. O novo foco eram as leis estaduais que impediam os negros de votarem. O combate a elas foi o principal objetivo das  três Marchas de Selma a Montgomery. Na primeira delas, em 7 de março de 1965, o país acompanhou, horrorizado, o espetáculo da violência policial contra manifestantes indefesos. Na terceira, 16 de março, tropas do Exército, da Guarda Nacional e agentes do FBI garantiram a segurança dos manifestantes, que finalmente cruzaram a ponte sobre o rio Selma.  Em agosto, o presidente Johnson assinava a nova Lei do Direito de Voto.

 

UMA NAÇÃO NA DIÁSPORA

O assassinato de Martin Luther King por um supremacista branco, em abril de 1968, fez muita gente questionar a validade da tática de “não-violência” empregada até então pelo movimento de direitos civis. Foi quando ganharam destaque a Nação do Islã, da qual Malcolm X fez parte até poucos meses antes de sua morte, e o Partido dos Panteras Negras, ambos  considerados radicais por sua atitude auto-afirmativa. Era o tempo do “orgulho negro”.

Na esteira dos movimentos de descolonização da África então em curso, disseminaram-se os conceitos “negritude” e “pan-africanismo”. Além de exaltarem a cultura e a “raça negra”, apresentavam o continente africano como o lar de todos os negros que, espalhados à força pelo mundo, viviam uma grande diáspora. Agora, uma África livre do colonizador branco estava pronta para receber seus filhos de volta: Mamma África. O “retorno” – metafórico – se daria pelo fechamento das comunidades negras em si mesmas, desenvolvendo-se paralelamente e rejeitando os elementos da sociedade branca. Mais uma vez, a nação seria a expressão de uma raça.  

Malcolm X discursa em encontro da Nação do Islã

A adoção do islamismo por negros americanos tornou-se comum nessa época, fosse por evocação dos países africanos muçulmanos, fosse pela afronta ao cristianismo puritano da elite, que pregava uma fraternidade jamais concretizada.

Malcolm X, cujo discurso seguia linha diametralmente oposta ao integracionismo de King, tornou-se uma figura central na defesa do resgate da “identidade africana”. Divergências pessoais, no entanto, o levaram a romper com a Nação do Islã, causa de seu assassinato, em fevereiro de 1965.

 

Black Power

O Partido dos Panteras Negras foi fundado em 1966, na Califórnia, teve seu ápice entre 1967 e 1971 e deixou de existir formalmente em 1982. Na origem, pregava a autodefesa das comunidades negras contra a violência policial e racista, numa atitude de enfrentamento ao “sistema”. Em resposta, em 1969, as autoridades aprovaram uma lei proibindo o porte de armas por organizações políticas. A partir daí, o partido se concentrou no trabalho de base e na organização comunitária em moldes autogestionários. Clínicas médicas, refeitórios, cursos de formação política e escolas primárias foram montados em suas sucursais, oferecendo o que o Estado não lhes oferecia.

Nesse processo, o mote inicial do “nacionalismo negro” perdeu a primazia para o ideário socialista, pois pareciam evidentes as relações entre “raça” e “classe”. A mudança dividiu o partido em confrontacionistas, favoráveis ao enfrentamento revolucionário, e moderados, que articulavam alianças com as organizações de imigrantes mexicanos e grupos pacifistas de oposição à Guerra do Vietnã (a primeira na qual as tropas do exército americano estiveram integradas).

Eram desafios que Washington, em plena guerra nas selvas vietnamitas, não podia tolerar. Com o republicano Richard Nixon na presidência desde 1969, o FBI promoveu uma campanha de contrainformação, apresentando os Panteras Negras como um partido “racista, sectário e separatista”, transformando-os em ameaça à segurança nacional. Criadas as condições junto à opinião pública, o FBI intensificou a perseguição aos líderes da organização, prendendo ou mesmo promovendo assassinatos ocultos de vários deles, enquanto outros se exilaram.

black power

O gesto de combate dos Panteras Negras

A Guerra Fria havia levado o país ao limite da paranoia anticomunista e todos aqueles que se opusessem à crescente militarização da sociedade, fortalecida pela Guerra do Vietnã, era rotulados “vermelhos”. Hippies, pacifistas, feministas, defensores dos direitos civis, movimento negro – todos sofreram algum tipo de pressão ou perseguição em nome da “segurança nacional”. O FBI se tornou particularmente conspirativo, com campanhas destinadas a desmoralizar as novas lideranças sociais , inclusive divulgando informações falsas com o objetivo de cindir os movimentos e suas bases de apoio, no que foram muito eficientes.

 

A política de “guerra às drogas”

O governo Nixon declarou “guerra às drogas” em 1971. A política provocou encarceramento em massa pelo país e uma crise na fronteira com o México, sem jamais conseguir impedir o acesso dos americanos às drogas. Em compensação, a criminalização da posse de drogas foi intensificada, atingindo setores de oposição ao governo e à Guerra do Vietnã: jovens, estudantes, hippies e o movimento negro. A estratégia foi desenhada por John Ehrlichman, o conselheiro para assuntos domésticos do presidente.

john ehrlichman

John Ehrlichman, o homem por trás da “guerra às drogas”

Nas suas palavras: “(…) O governo Nixon tinha dois inimigos: a esquerda antiguerra e os negros. Você entende o que estou dizendo? Nós sabíamos que não conseguiríamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao fazer com que o público associasse os hippies com a maconha e os negros com a heroína, e criminalizando os dois pesadamente, nós poderíamos “quebrar” essas comunidades. Nós poderíamos prender os seus líderes, invadir suas casas, acabar com suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários noturnos.” E ainda acrescentou: “se nós sabíamos que nós estávamos mentindo sobre as drogas? É claro que sim.”

Em nome da “guerra às drogas”, princípios constitucionais têm sido violados. Em 1989, uma pesquisa do jornal The Washington Post indicou que 62% dos americanos estavam dispostos a perder algumas liberdades em nome da “guerra às drogas”. Os EUA são a única democracia que retira o direito de voto de pessoas que tenham cumprido pena, qualquer pena.

O impacto dessa política ficou evidente na disputada eleição presidencial de 2000, entre o republicano George W. Bush e o democrata Al Gore. Estima-se que, na Flórida, 200 mil eleitores negros tenham sido impedidos de votar por essa razão, o que significava 31% da população negra do estado. Em 2001, em mais de dez estados, 20% dos eleitores negros estavam impedidos de votar por esse motivo.

 

Ações afirmativas

A resposta do governo Nixon ao clima de intensa mobilização da sociedade civil deu-se em duas frentes: a guerra às drogas, que criminalizava, e ações afirmativas, que na ótica ultra-liberal alavancaria o empreendedorismo negro, no chamado “Black capitalism”.

Desde a década de 1960, as organizações negras pleiteavam medidas para garantir que os chefes locais não usassem seu poder de decisão para continuar discriminando os trabalhadores negros. No auge do movimento pelos direitos civis, a dupla Kennedy-Johnson institui meios para verificar se empresas que prestavam serviços ao governo federal usavam critérios de qualificação para contratar, e não raça, gênero ou religião.  Mais tarde, Nixon assinou o “Plano da Filadélfia”, destinado a políticas de emprego e organizações sindicais que, historicamente, rejeitaram a presença de negros em suas fileiras. Esse plano teve bastante influência em ações similares a nível estadual e local.

Nessa época, a Fundação Ford – criada na melhor tradição calvinista da elite americana, que deixa sua fortuna para alguma instituição filantrópica – se engajou na implantação de políticas voltadas a grupos considerados “minorias” ou “vulneráveis” como caminho mais efetivo para a redução das tensões sociais. Através do financiamento de programas e bolsas nas universidades, a Fundação ajudava a criar uma elite intelectual capaz de defender as diferentes minorias agora reconhecidas, como as mulheres, os gays e os negros.  O multiculturalismo ganhava força. Sem alarde, a Fundação Ford ajudava a minar as amplas coalizões sociais da era dos direitos civis.

De acordo com a análise do historiador Wanderson Chaves, no início dos anos 1970 uma nova conjuntura internacional colaborou para enfraquecer a agitação cívica nos Estados Unidos: “Diplomaticamente, o compromisso de Nixon com a gradual retirada das tropas do Vietnã, o restabelecimento de relações com China e Argélia e a conclusão da maioria das lutas de libertação nacional na África desmobilizou as organizações estudantis antiguerra e inibiu o apoio internacional aos Panteras Negras. Dava-se fim à pauta ‘anti-imperial’ comum. Com a universalização das cotas raciais como política de Estado, bem como a ampla reforma universitária, que tornou os chamados ‘estudos afro-americanos’ item curricular obrigatório, normalmente com dotação orçamentária e suporte departamental próprios, o governo republicano capturou a atenção e conquistou a confiança da maioria dos aliados dos Panteras Negras nas universidades e entre as classes médias.”

 

VIDAS NEGRAS IMPORTAM?

Entre as crescentes mobilizações multiculturalistas nos ambientes de classe média e o encarceramento em massa dos pobres, a sociedade americana chegou ao fim do século XX aparentemente livre da discriminação legal. Até que, em março de 1991, as televisões mostraram a gravação feita por um amador, na qual a polícia de Los Angeles espancava brutalmente um motorista de táxi que não estava ameaçando ninguém. Seu nome era Rodney King.

O que havia de familiar na cena? Policiais brancos e uma vítima negra. Um ano depois, os quatro policiais foram absolvidos pelo tribunal e Los Angeles explodiu em distúrbios, saques e incêndios. O sentimento era de que os linchamentos do começo do século apenas tinham sido substituídos pela repressão aleatória e brutal de uma força policial treinada para tratar cidadãos como inimigos, especialmente aqueles cujos estereótipos ajudam a rotular como “problemáticos” ou “envolvido com drogas”.  

LA, 1992, protestos

Quando o júri declarou “inocentes” os policiais que agrediram Rodney King, em 29 de abril de 1992, Los Angeles vivenciou seis dias de protestos violentos, no maior episódio de agitação civil na história dos EUA

 

Violência policial

O abuso da força policial sobre os negros sempre foi objeto de denúncia pelas organizações de direitos civis, que cobravam a punição dos agentes públicos. Contudo, apesar de registros, provas e testemunhos, promotores e juízes raramente estavam dispostos a punir os agressores quando a vítima era negra. Como os tribunais americanos contam com a figura do júri popular, que traz a ideia da justiça baseada no senso comum, o resultado desses julgamentos expressava a opinião de pelo menos uma parcela da sociedade sobre o tema racial. Mesmo depois de derrubadas as leis Jim Crow, o racismo estava lá.

As polícias são regidas por leis estaduais, o que a princípio barra as intervenções do governo federal para punir algum agente público. Essa questão começou a ser discutida ainda na era Roosevelt, quando foram criadas as “unidades de direitos civis” do Departamento de Justiça, em 1939, para fiscalizar e processar autoridades locais por violações de direitos civis.

Com a política de “guerra às drogas”, o Estado avançou sobre os direitos civis dos cidadãos. Foi essa consideração que proporcionou às forças de segurança públicas e privadas por todo o país a liberdade de agir segundo as regras arbitrárias ditadas por seus próprios preconceitos. Foi isso o que aconteceu com Rodney King. A revolta subsequente provocou a aprovação da Lei de Controle de Crimes Violentos, primeira legislação que assegura a supervisão federal sobre as polícias estaduais.

Dhoruba Bin Wahad, um ex-Pantera Negra, observou o seguinte, quando perguntado sobre a perseguição do governo ao seu partido: “no auge do movimento pelos direitos civis e do movimento pelos direitos humanos, a polícia dos Estados Unidos tornou-se cada vez mais militarista. A Lei de Assistência forneceu à polícia local tecnologia militar: tudo, desde espingardas de assalto a veículos militares. O programa andou de mãos dadas com a militarização da polícia na comunidade negra e com a militarização da polícia no país.”

 

Um novo movimento por direitos civis

Depois dos atentados do 11 de setembro de 2001, sob a “guerra ao terror”, o discurso repressivo ganhou apoio majoritário. Desse caldeirão de medo, alguns estados aproveitaram para aprovar leis de auto-defesa (Stand Your Ground), que tornam mais provável um assassinato ser considerado homicídio justificável. Na moldura da herança racista, foram rotulados como “homicídos justificáveis”, predominantemente, os assassinatos de negros por forças de segurança públicas ou privadas.

Foi o que aconteceu em fevereiro de 2012, quando o segurança de um condomínio atirou e matou o adolescente negro Trayvon Martin, e depois foi absolvido pelo tribunal alegando autodefesa. O evento aconteceu no governo de Barack Obama, festejado como primeiro presidente negro do país. Da nova onda de indignação que tomou conta do país, surgiu o movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam). 

O Black Lives Matter, por ele mesmo: “…começou como um chamado para a ação em resposta à violência estatal e o racismo anti-negro. Nossa intenção, desde o início, era conectar por todo o mundo as pessoas negras que tenham um desejo comum de justiça para agirem juntas em suas comunidades. O ímpeto para esse compromisso foi, e ainda é, a violência desenfreada e deliberada contra nós pelo Estado. (…) Enraivecidos pela a morte de Trayvon Martin e a subsequente absolvição de seu assassino, George Zimmerman, (…) nós tomamos as ruas. Um ano depois, saímos juntos na Black Lives Matter Freedom Ride para Ferguson, em busca de justiça para Mike Brown e todos aqueles que foram dilacerados pela violência chancelada pelo Estado e pelo racismo anti-negro.”

George Floyd, 2020. Ele não estava fazendo nada grave, mas tinha a “cor errada”. Por todos as cidades do país ocorreram protestos liderados pelo Black lives Matter e compostos por uma maioria jovem e multirracial. Os direitos civis entraram na lei, mas não deitaram raízes no conjunto das instituições estatais. Os EUA são, ainda, uma nação dividida.

 

SAIBA MAIS

Há uma vasta filmografia disponível sobre a questão do racismo e dos direitos civis

  • Histórias Cruzadas  (Disponível no YouTube Filmes)
    • Nos anos 60, no Mississippi, Skeeter é uma garota da sociedade que retorna determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar nas casas da elite branca
  • Homens de Honra (Disponível no YouTube Filmes)
    • Carl Brashear, um jovem negro, entra para a Marinha nos 1950 e enfrenta o preconceito de seus colegas e de seu instrutor
  • Mississipi em Chamas    (Filme completo)
    • Quando jovens militantes pelos direitos civis desaparecem no Mississippi, agentes do FBI são enviados para investigar e acabam chegando à Ku Klux Klan. Baseado em fatos reais
  • Selma  (Disponível no YouTube Filmes (pago) e Amazon Prime Video)
    • A história da luta de Martin Luther King para garantir o direito de voto, uma campanha perigosa que culminou na marcha épica de Selma a Montgomery
  • Loving – Uma História de Amor  (Disponível no YouTube Filmes)
    • O casamento interracial é proibido no estado da Virgínia, mas Richard e Mildred decidem viver seu amor. Eles se casam, mas são presos e chegam ao Supremo Tribunal para defender o que sentem até as últimas consequências
  • Malcolm X  (Disponível no Amazon Prime Video)
    • Preso aos 20 anos de idade, Malcolm se converte ao islamismo e passa a pregar seus ideais
  • Ali  (Filme completo)
    • Cassius Clay, o campeão mundial de boxe, se converteu ao islamismo na década de 1960 e trocou o nome para Muhammad Ali
  • Os Panteras Negras: Vanguarda da Revolução  (Filme completo)
    • Documentário combina imagens de arquivo e entrevistas com Panteras e agentes do FBI para contar a história da organização
  • Libertem Angela Davis  (Disponível no YouTube Filmes)
    • O documentário retrata a vida de Angela Davis, filósofa, feminista, marxista, militante pelos direitos civis. Chegou a integrar o partido dos Panteras Negras e se tornou a mulher mais procurada dos Estados Unidos nos anos 1970
  • Infiltrado na Klan  (Disponível no YouTube Filmes)
    • Em 1978, Ron Stallworth, um policial negro do Colorado, consegue se infiltrar na Ku Klux Klan por meio de telefonemas e cartas e se aproximar do líder da seita. Baseado em fatos reais
  • A Outra História Americana  (Disponível no YouTube Filmes)
    • A história do neonazista Derek Vinyard, preso depois de matar dois jovens negros. Ao sair da prisão, Derek precisa evitar que seu irmão mais novo siga seus passos, enquanto luta contra seus próprios preconceitos

 

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