HÁ 50 ANOS, UMA FOTO DEFINIU A GUERRA DO VIETNÃ

 

Demétrio Magnoli

13 de junho de 2022

 

8 de junho de 1972. Há meio século, aviões sul-vietnamitas lançaram uma bomba de napalm sobre o vilarejo de Trang Bang, distante menos de 40 quilômetros de Saigon (atual Ho Chi Minh), que havia sido ocupado por forças do Vietnã do Norte. Uma foto capturou os efeitos do ataque e definiu a desumanidade da guerra travada nas selvas da Indochina.

Napalm é uma combinação incendiária de um agente gelificante com gasolina ou diesel largamente utilizado em bombardeios aéreos americanos contra cidades japonesas na Segunda Guerra Mundial. O episódio de Trang Bang passaria em branco não fosse a presença do fotojornalista vietnamita-americano Nick Ut, pseudônimo profissional de Huynh Cong Ut. Naquele dia, Ut fotografou crianças do vilarejo que, aterrorizadas, fugiam por uma estrada. Entre elas, estava Phan Thi Kim Phuc, uma garota de 9 anos, correndo nua com a pele ardendo em queimaduras.

Ut tinha 21 anos e começara a trabalhar para a agência Associated Press (AP) aos 16, após a morte na guerra de seu irmão mais velho, também fotógrafo da AP. Ele tomou a menina queimada nos braços, colocou-a em seu carro e a levou ao hospital Barsky, em Saigon. Lá, diagnosticou-se queimaduras de terceiro grau em trinta por cento do corpo e prognosticou-se que ela não sobreviveria. Porém, após 14 meses de internação e 17 cirurgias, sua vida foi salva.

Kim Phuc estabeleceu-se no Canadá, criou uma fundação de assistência a crianças vítimas de guerra e, em 2019, recebeu o Prêmio de Paz de Dresden, em reconhecimento a seu trabalho junto à Unesco como ativista pela paz. Ut foi agraciado com o Prêmio Pulitzer de fotografia pela imagem batizada como “O horror da guerra”.

 

Uma foto, três controvérsias

“O horror da guerra” foi tomada com uma câmera Leica M2, em filme Kodak 400 tri x. A câmera, atualmente, encontra-se exposta num museu em Washington.

A foto quase foi rejeitada pelos editores da AP, por violar as regras da agência sobre nudez frontal. Por sorte, o fotojornalista alemão Horst Faas solicitou uma exceção à chefia da agência, em Nova York, que concluiu pelo valor singular da imagem.

A censura caiu sobre a foto icônica em setembro de 2016, pela tesoura de Mark Zuckerberg, proprietário do Facebook. O veto foi aplicado a uma página de um jornal norueguês que a reproduzia e, ainda, à da primeira-ministra da Noruega, Erna Solberg, que replicava o post do jornal. Confrontado com uma enxurrada de críticas de veículos de imprensa, Zuckerberg acabou recuando.

Richard Nixon com Henry Kissinger (em pé) e Haldeman (ao fundo)

Soube-se, em 2002, quando os Arquivos Nacionais dos EUA levantaram o sigilo sobre mais de 500 horas de gravações de conversas entre autoridades do governo de Richard Nixon, que o então presidente duvidou da autenticidade da imagem. Foi em 12 de junho de 1972, três dias após a publicação, num diálogo com o chefe de gabinete H. R. Haldeman. “Fico imaginando se ela não foi manipulada”, ouvindo do interlocutor uma resposta condicionalmente afirmativa: “Pode ter sido”.

As gravações incluem um diálogo com o então assessor de Segurança Nacional Henry Kissinger, que revelava preocupação com as mortes de civis no Vietnã. “Não dou a mínima”, disse-lhe o presidente.

Ut comentou o seguinte, sobre as dúvidas de Nixon: “Para mim, assim como, inquestionavelmente, para muitos outros, não poderia ser mais realista. Ela era tão autêntica quanto a própria Guerra do Vietnã”. A posteridade deu-lhe razão. Sua imagem permanece como a mais pungente definição dos incontáveis crimes cometidos pela superpotência numa guerra fracassada.

 

Uma foto, duas fotos

“O horror da guerra” foi inicialmente publicada como um recorte da imagem original, sem o soldado do seu lado direito. Ut explicou, numa entrevista, que o “soldado” era, de fato, um fotojornalista americano, que também trabalhava para a AP:

Nick Ut fotografando a Guerra do Vietnã

“Enquanto eu tomava fotos, notei um fotógrafo tentando rebobinar seu filme. Era David Burnett, com uma velha Leica, um modelo bem antigo, 1945 ou algo assim. Era muito difícil colocar filme nela. Depois que conseguiu, tirou uma foto de Kim sozinha, e uma de suas costas, mas não uma de todas as pessoas correndo. Então, David contatou imediatamente o New York Times e a Time Magazine, dizendo ‘Nick Ut tem uma foto melhor, precisamos avisar sem demora a AP’. Eles viram a foto por meio da AP Saigon.”

Ut era muito jovem, mas conhecia o poder das imagens. “Eu queria parar a guerra, odiava a guerra. Meu irmão disse-me que esperava que um dia eu tivesse uma foto capaz de parar a guerra.”

Os EUA não perderam a Guerra do Vietnã nas batalhas travadas na Indochina, mas no front interno, pela ação de centenas de milhares de manifestantes que protestaram nas ruas e mudaram o curso da política da Casa Branca. A foto de Ut foi uma das últimas de uma longa sequência de imagens que pararam a guerra. Em 2012, o fotógrafo ganhou um lugar no Leica Hall of Fame pelas suas contribuições ao fotojornalismo.

 

Parceiros

Receba informativos por e-mail