ISRAEL/PALESTINA, O COLAPSO DO “CAMPO DA PAZ”

 

Jayme Brener

(Jornalista, autor de Os cinco dedos de Tikal – Comunistas, judeus, putas e índios às vésperas da Segunda Guerra, Ex Libris Editora)
16 de setembro de 2019

 

A paz em Israel/Palestina nunca esteve tão distante. A paralisação das negociações e a anexação de fato da Cisjordânia inviabilizam a convivência pacífica entre dois Estados.

“As eleições em Israel estão se aproximando e eu gostaria de um artigo seu sobre o campo da paz”, pediu o editor. “Campo da paz é algo forte demais para a situação no país; que tal sítio da paz ou minifúndio da paz?”, brinquei. Rimos.

Depois me dei conta de que não há graça nenhuma porque o “campo da paz”, responsável pela maior manifestação da história de Israel – 400 mil pessoas contra a ocupação do Líbano em 1982, quando o país tinha menos de oito milhões de habitantes – praticamente desapareceu. Assim como entre os palestinos, quase não há mais ninguém que aposte na convivência pacífica entre dois Estados – Israel e a Palestina.

Mapa Israel/Palestina

Um dos últimos suspiros de esperança do “campo da paz” foi dado há um par de meses, quando o jornal israelense Haaretz, um dos mais respeitados do mundo, defendeu uma inédita aliança entre o Meretz, partido que reúne a esquerda sionista, e a Lista Única árabe, que tem à frente o Hadash, Partido Comunista. Seria um fato histórico: forças de esquerda de ambas as comunidades unidas em torno da proposta de retorno das negociações de paz. 

A proposta não produziu o menor eco. A liderança do Meretz, com medo de sucumbir à barreira eleitoral de 3,25%, optou por uma aliança com o partido recém fundado pelo ex-primeiro ministro Ehud Barak. Nos anos 1990, Barak esteve a um passo de obter o acordo de paz definitivo com os palestinos. Mas, temendo ser visto como “fraco diante dos palestinos”, pecado mortal para quem quer ganhar eleições em Israel, ordenou a repressão a protestos, com saldo de vários mortos. 

Mas não foi só a esquerda sionista que virou as costas para a aliança com a Lista Única, que representa os mais de 20% de cidadãos árabes de Israel. A própria direção da Lista vetou a aproximação histórica, temendo que fosse vista como uma traição, um beijo no rosto do inimigo sionista.

Quando um não quer, dois não fazem, afirma o velho ditado. Assim, a falta de vontade tanto do Meretz como da Lista Única árabe sepultou a tênue expectativa de construção de uma aliança inédita em torno da proposta de convivência pacífica entre dois Estados na região.

Quando este artigo era concluído, as pesquisas eleitorais apontavam um empate técnico entre o Likud, partido de direita liderado pelo atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, e o Kahol Lavan (azul e branco), força de centro que tem à frente Benny Gantz, ex-chefe do Estado Maior das Forças Armadas. Cada um deles tinha pouco mais de 30% das intenções de voto.

Netanyahu enfrenta um emaranhado de acusações de corrupção, tráfico de influência e abuso do poder econômico. Em suas últimas investidas eleitorais, o primeiro-ministro acentuava o tom do discurso contra o Irã. A ideia, que já deu certo muitas vezes, era convencer alguns milhares de eleitores de que não há segurança nacional possível sem Netanyahu.

Gantz, de sua parte, também investia no eleitorado conservador que tem reservas para com Netanyahu. Na verdade, a proposta concreta do general reformado parece ser fazer mais do mesmo – mas sem Netanyahu.

 

“União nacional” contra a paz

Ocorre que tanto Netanyahu como Gantz teriam imensas dificuldades de obter de forma confortável os 61 votos necessários no Knesset, o Parlamento unicameral israelense de 120 deputados. Ambos precisariam se meter em uma labiríntica teia de interesses para obter o apoio de partidos ultrarreligiosos que rejeitam o serviço militar obrigatório para seus jovens e de partidos de ultradireita que exigem o serviço militar para os ortodoxos, além de outras forças conservadoras de todo tipo.

Grafite de Jonathan Kis-Lev, em Tel Aviv, invoca a amizade entre judeus e palestinos

No grafite de Jonathan Kis-Lev em Tel Aviv, uma invocação da amizade entre judeus e palestinos. À esquerda, Srulik, personagem que simboliza Israel; à direita, Handala, o garoto descalço, personagem criado pelo cartunista palestino Naji Al-Ali

Os partidos tradicionais que ainda falam em paz circulam na periferia das sondagens eleitorais. A União Democrática, da qual faz parte o Meretz, tinha cerca de 7% das intenções de voto. Já a aliança liderada pelo vetusto Partido Trabalhista, que governou Israel por 30 anos desde a criação do Estado, em 1948, não chegava nem a isso. Tomando todo o cuidado do mundo com a futurologia, ainda mais num país onde os cenários são tão voláteis, a hipótese mais plausível era a formação de um governo de “união nacional”, com Netanyahu e Gantz se digladiando pelo protagonismo.

Quem perderia com isso? O tal campo da paz, é claro. Isso porque a “união nacional” condenaria à marginalidade ainda mais marginal todos aqueles que, ainda que maneira muito diáfana, defendem algum entendimento definitivo em torno da solução de dois Estados. 

O pano de fundo da tragédia é a anexação de fato que Israel vem fazendo da Cisjordânia, onde já vivem mais de 400 mil colonos judeus, entre três milhões de palestinos. São sionistas de ultradireita e religiosos fundamentalistas, mas também casais jovens que encontram nos territórios ocupados moradias de excelente qualidade, que não teriam nas maiores cidades israelenses. E, quando se fala em colônias judaicas, não se trata de aglomerados de tendas cobertas por lonas pretas. A colônia de Maalê Adumim, por exemplo, tem 41 mil habitantes, supermercado e clube com piscina. E fica a apenas 15 minutos de carro do centro de Jerusalém. 

O Likud e a extrema direita israelense dividem-se, hoje, em três facções. Uma, representada pelo presidente Reuven Rivlin, defende a anexação da Cisjordânia com direitos de cidadania para os palestinos. A segunda defende a anexação sem direitos políticos para os palestinos, consolidando um tipo de Estado de apartheid. Já a terceira, de Netanyahu, propõe a anexação apenas das colônias, que não param de ser ampliadas. Ou seja, querem a terra, mas não os palestinos que vêm junto. O que fazer com eles? Pergunte-se a Netanyahu.

Colônia israelense na Cisjordânia ocupada

Colônia israelense na Cisjordânia ocupada

Num ato que beira o desespero, o principal líder do Partido Comunista e atual deputado, Ayman Odeh, defendeu recentemente o ingresso dos partidos árabes no futuro governo israelense – pela primeira vez desde 1948. A ideia surpreendente significa um reconhecimento de que a independência palestina está muito longe – então, tratar-se-ia de, pelo menos, tentar melhorar a vida dos árabes que vivem em Israel.

Odeh recebeu uma chuva de críticas, que começou na sua própria Lista Unida e chegou a Benny Gantz. O líder do Kahol Lavan poderia, em tese, ser uma alternativa política pacifista a Netanyahu. Mas, para firmar-se como alternativa eleitoral ao veterano primeiro-ministro, Gantz dá as costas ao pacifismo. O discurso da paz e dos direitos humanos está, hoje, restrito a corajosas iniciativas binacionais de base em escolas, clubes e grupos musicais, cujos integrantes muitas vezes são espancados em público por facções ultranacionalistas de judeus e palestinos.

Caro editor: quer mesmo falar em “campo da paz”?  

 

 

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