“PAZ” NO AFEGANISTÃO É GUERRA ÀS MULHERES

 

Elaine Senise Barbosa

18 de maio de 2020

  

O nível da barbárie desceu mais alguns degraus após o ataque realizado na terça-feira, 12 de maio, a uma maternidade em Cabul, capital do Afeganistão. Três homens vestidos com uniformes policiais entraram e buscaram nas salas de atendimento pelas mães, seus bebês e enfermeiras, alvejando-os sem dó e deixando 24 mortos.

Uma enfermeira conseguiu esconder um grupo de quase 30 mulheres em uma das salas e uma delas entrou em trabalho de parto; graças aos céus conseguiram conter os gritos de mãe e filho. Em resposta um tanto lenta, as forças do governo afegão chegaram cerca de meia hora depois e mataram os três assassinos. Os Estados Unidos responsabilizaram o Estado Islâmico pelo ataque.

A maternidade localiza-se em um bairro habitado por gente da etnia xiita hazara. Uma semana antes, uma multidão de mil pessoas reunida para celebrar a memória de um líder político hazara, Abdula Ali Mazari, foi alvejada a esmo. Varias crianças contadas entre os mortos. O ex-presidente Hamid Karzai participava do evento junto com outros políticos. Eles não foram atingidos.

 

Sob o signo da burca

As mulheres foram as maiores vítimas do fundamentalismo islâmico do Talebã. Esse movimento, um dos pioneiros no gênero “midiático pós-moderno”, chegou ao poder dinamitando os Budas gigantes de Bamiyan, em março de 2001, uma obra de séculos do trabalho humano. Ultra-radical, o Talebã pregava um Islã absolutamente masculino e patriarcal, que não reconhece às mulheres nem aquilo que está previsto na tradição corânica, como ter acesso a tratamento médico, por exemplo.

Militante agride mulher

Militante talebã agride mulher, em 2001

Para seus militantes fanáticos, não bastava uma mulher sujeita ao pátrio-poder, era necessário transformá-la em um “nada” civil. E, apesar do choque com as notícias, não houve muito mais do que indignação contra aquele regime, que proibiu meninas e mulheres de frequentarem escolas, de ter acesso a hospitais ou de se mostrar em público, devendo se esconder completamente atrás da burca para que ninguém tivesse ideia de quem estava ali embaixo.

As mulheres do Afeganistão governado pelo Talebã conheceram um completo recuo em relação ao padrão de vida e liberdade de que dispunham nas décadas de 1950 a 1970, quando desfrutavam de acesso à educação, saúde e trabalho, como se observa na série de fotos publicada em reportagem da Deutsche Welle.

Em 2020, a mulher de burca se tornou mais um personagem na paisagem e já não desperta a mesma indignação que causava no final dos anos 1990, quando surgiu no cenário político internacional como ícone da misoginia e retrocesso trazido por aquele movimento que parecia apenas bizarro e fora do lugar.

 

“Paz” para os homens

Quando os Estados Unidos iniciaram a “guerra ao terror” em retaliação ao ataque da Al-Qaeda às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, qual governo do mundo escondia Osama bin Laden e sua turma?

Mapa - Afeganistão

Por isso, a queda do regime do Talebã foi comemorada com muito entusiasmo em todo o mundo. Além da resposta aos bárbaros ataques terroristas aos EUA, havia outra questão, de grande poder de mobilização, ligada à liberdade e aos direitos das mulheres.

ONGs perfilaram-se a entidades como a ONU para ajudar a recuperar essa parte da vida não só das afegãs, mas da sociedade como um todo. Não fazia sentido privar um país tão afetado pelos anos de guerra de uma parcela importante de mão de obra representada pelas mulheres que podia ajudar na obra da reconstrução.

Abriram-se escolas e cursos acadêmicos. Atualmente, há mulheres ocupando postos políticos, são médicas e professoras e técnicas. Trazer as mulheres de volta para a vida civil demandou trabalho e investimento, para redescobrir profissionais afastadas de suas posições, para formar jovens e alfabetizar meninas. Tudo isso pode ser subitamente cancelado, caso se admita ser possível negociar a paz ignorando-se os direitos das mulheres.

Se o machismo prevalecia nas regiões menos urbanizadas e entre grupos mais religiosos desde antes do Talebã, nas cidades essa gramática de submissão das mulheres foi imposta de forma brutal. Era de se esperar resistência à mudança, sobretudo porque ela implica, para todos os homens, em perda imediata de poder, ainda que parcial, sobre as mulheres de seus círculos. Mas isso é diferente de aceitar e, muito menos, de se submeter a uma quebra de princípio tão básica em nome de qualquer acordo.  

Após duas décadas de envolvimento militar no Afeganistão, os EUA aceitaram discutir um acordo com o Talebã sem fazer nenhuma exigência quanto a garantir direitos fundamentais, como o respeito à Constituição em vigor ou a garantia dos direitos das mulheres. O governo de Donald Trump prefere sair de fininho, brandindo um acordo de paz vergonhoso e dando as costas aos grupos e organizações de mulheres que seu país apoiou nos anos anteriores.

Nenhum dos negociadores e patrocinadores desse acordo de paz, assinado no final de fevereiro, quis se comprometer com as ativistas afegãs. Zalmay Khalilzad, principal enviado dos EUA às negociações, disse repetidamente que os direitos das mulheres – bem como outras questões relacionadas aos direitos humanos, estruturas políticas e compartilhamento de poder – devem ser resolvidos nas subsequentes negociações intra-afegãs. Essas futuras negociações internas, que permanecem no campo da miragem, não têm parâmetros definidos.

O vice-líder do Talebã, Sirajuddin Haqqani, não esconde seu desejo de restauração. Num artigo para o The New York Times, ele explicou que os direitos das mulheres permanecerão “como o Islã estabelece”… O risco do retrocesso não é uma fantasia e as mulheres estão com medo.                   

Gente que ataca maternidade para matar parturientes e seus filhos não tem limites. 

 

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