SENTINELAS DA ROTA DA SEDA

 

Elaine Senise Barbosa

22 de junho de 2020

 

Os Budas gigantes de Bamyan, um marco na histórica Rota da Seda, ficam no Afeganistão, onde foram parcialmente destruídos em março de 2001 pelo Talebã. Aqueles gigantes assinalavam o encontro de civilizações na porta de entrada do Oriente. Nem toda a pressão internacional foi suficiente para demover aquele governo ultra-radical surgido por volta de 1997, da ideia de destruir as duas estátuas escavadas na rocha em nome de combater a idolatria pré-islâmica. Ninguém imaginava que aquela atitude iconoclasta apenas emaciava o pensamento para o grande evento de 11 de setembro do mesmo ano, quando outros dois gigantes, as Torres Gêmeas, foram derrubadas em Nova York no ataque terrorista da Al-Qaeda.   

Depois de retirar as mulheres das escolas e atividades profissionais, obrigar todos os homens a deixarem a barba crescer, destruir televisores e vídeos, submeter o país ao mais rigoroso controle religioso, o regime fundamentalista do Talebã anunciou que as duas estátuas gigantes de Buda (com 53 e 36 metros de altura), construídas entre os séculos III e VI, haviam sido destruídas, apesar de todos os protestos da opinião pública mundial e das tentativas da ONU de salvá-las do vandalismo oficial. Mas as ações do Talebã são exceções à tradição islâmica, marcada pela tolerância e pela assimilação das culturas com as quais estabeleceu contato: tanto é que as estátuas sobreviveram mais de um milênio após a expansão muçulmana para a Ásia Central, no início do século VIII.

Situado no coração da Ásia Central, o Afeganistão é um Estado criado pelos interesses imperialistas europeus. Suas fronteiras foram traçadas em 1893 por um oficial britânico, com o objetivo de criar um Estado-tampão destinado a separar os domínios coloniais britânicos e russos, ambos disputando o acesso e controle sobre o Golfo Pérsico, o que nunca conseguiram. Assim, o Afeganistão passou a reunir grupos etnoculturais diversos, com histórias ligadas às dos países vizinhos, como o Tadjiquistão, o Uzbequistão e o Paquistão. No Estado produzido pela caneta dos diplomatas, inexistia, contudo algo comparável a uma nação de fato.

Como não existe clero oficial no islamismo, a interpretação dos textos sagrados é livre. Do ponto de vista dos fundamentalistas afegãos, o rigor na aplicação da lei islâmica (sharia) ajudaria a criar uma identidade nacional para o povo afegão. Se o empreendimento der certo, o Talebã desponta no mundo islâmico como  alternativa de fundamentalismo sunita capaz de rivalizar com o fundamentalismo xiita dos aiatolás do Irã. E o que desejam os fundamentalistas? Promover a unidade da umma – a verdadeira comunidade dos crentes – e submeter todo o Islã a um único governo, submisso às leis de Alá.

 

Portal na Rota da Seda

A história do Afeganistão foi marcada pelas cicatrizes da geografia física. O país é cortado diagonalmente por dois conjuntos montanhosos, separados por um extenso vale fluvial onde corre o rio Cabul, tributário do rio Indo. É um corredor estratégico, pois ali está a “porta” que ligava as mais antigas civilizações. No século I a.C., o Reino Cita estabeleceu a ligação entre a China, a Índia Indo-Gangética (a atual Índia setentrional e o Paquistão), a Pérsia (atual Irã) e o Mediterrâneo. Começava a se delinear o que viria a ser a Rota da Seda.

A importância estratégica desta passagem foi reconhecida desde a Antiguidade, quando os persas anexaram a região. No século IV a.C. Alexandre, o Grande, percorreu esse caminho para conquistar o vale do  Indo. Pouco depois, a Índia Indo-Gangética foi unificada pela Dinastia Maurya (321-185 a.C.), cujo principal governante, Asoka, tornou-se grande divulgador do budismo.

A religião budista deriva da doutrina estabelecida por Shidarta Gautama (cerca de 560-438 a.C.), um abastado hindu que abandonou tudo o que tinha em busca da resposta para a libertação dos sofrimentos terrenos. Shidarta Gautama, Buda, é o Iluminado. Um de seus ensinamentos versava sobre o equívoco que havia na adoração de imagens e deuses. Ele jamais quis ser adorado e, de fato, as primeiras imagens surgiram apenas alguns séculos após a sua morte.

A força do budismo estava justamente em abalar os pilares da religião védica da Índia, baseada na adoração ritual de inúmeros deuses, no poder dos sacerdotes (brâmanes) e na diferença social cristalizada pelo sistema de castas. Muitos governantes da Índia apoiaram o budismo para minar o poder dos brâmanes.

O budismo espalhou-se pela Ásia entre os séculos III a.C. e VII d.C., entrando na China pela Rota da Seda. O intercâmbio era intenso entre  a China e a planície do Gânges, terra santa do budismo, onde os crentes iam peregrinar e comerciar.

A cidade de Cabul, capital do atual Afeganistão, era o centro do reino responsável por essa comunicação. O Passo Khyber, na entrada da planície do Gânges, era a porta de acesso ao Extremo Oriente e vice-versa. A fortuna dos que controlavam a região era enorme. A Rota da Seda, organizada formalmente a partir da China, seguiu esse caminho.

Foi assim que, por volta do século III, monges budistas instalaram-se em Bamyan, onde escavaram as altas encostas que circundam o vale e construíram centenas de celas e salões, cujos adornos sintetizavam as diversas influências culturais difundidas através da rota. As duas estátuas gigantes eram o ponto alto. Ricamente decoradas, com suas cabeças douradas, podiam ser vistas de longe e causavam forte impressão nos viajantes. O local rapidamente tornou-se um dos principais centros de peregrinação religiosa do budismo.

De certo modo, os Budas gigantes sinalizaram a fronteira entre dois mundos: o das estepes montanhosas ocidentais e o da Ásia indochinesa dos grandes rios. 

A expansão islâmica para a Índia Indo-Gangética e para a Ásia Central provocou o recuo do budismo. Depois, seguindo a Rota da Seda, o islamismo ganhou o oeste da China, atual província de Xinjiang, palco da perseguição aos uigures pelo governo chinês.

Em sentido contrário, Gêngis Khan, no século XIII, usou a velha rota em seu avanço sobre o Ocidente. Nos séculos XVI e XVII, a região passou a ser disputada pelo Império Mogol, da Índia, e pelo Império Persa xiita. Esses conquistadores islamizados adotaram políticas de tolerância em relação às demais religiões, sob pena de perderem o controle de vastas áreas dos seus impérios.

Povo de Bamyan -

Nessa imagem é possível perceber os dois nichos na rocha vazios, ou melhor, repletos de escombros do que outrora foram os sentinelas da Rota da Seda, em Bamyan

 

O berço do terror pós-moderno

Na Idade Contemporânea, o Afeganistão continuou a enfrentar a sina ligada à sua condição de passagem e fronteira. No século XIX, foi a disputa colonial anglo-russa.

No século XX, o conflito entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética na época da Guerra Fria. A invasão soviética de 1979 destinava-se a estabelecer um cinturão de estabilidade em torno das fronteiras do Estado comunista. Mas os modernos equipamentos de guerra de Moscou foram impotentes diante dos guerrilheiros islâmicos (mujahedins), financiados pelos Estados Unidos, a China e o Paquistão. Quando a União Soviética se retirou, em 1989, os grupos guerrilheiros islâmicos mergulharam o país em guerra civil.

O Talebã nasceu em meio à guerra civil, nas escolas islâmicas do Paquistão. Os “guerreiros da fé” do Talebã derrotaram os grupos rivais e tomaram Cabul em 1997. A partir de então, suas iniciativas surpreenderam o mundo, sobretudo pelo grau de reacionarismo e misoginia. Com a decisão de dar abrigo a Osama Bin Laden e ao quartel-general da Al-Qaeda, o Talibã atraiu contra si a fúria dos Estados Unidos e a guerra que lhes retirou do poder e lançou o Afeganistão em uma prolongada e sangrenta guerra civil.

A instável situação do Afeganistão dificulta ações destinadas à proteção e restauração dos Budas gigantes. Em 2017 houve uma reunião entre governo afegão, ONU, agências de fomento à cultura, cujo objetivo era discutir o pedido de ajuda de Cabul para reconstruir os Budas. Mas a reunião terminou sem nada definido. Em primeiro lugar, o custo para a recuperação das estátuas é totalmente proibitivo (1,2 bilhões de dólares), sobretudo para um país pobre e destruído por anos de guerra. Outros consideram que a própria explosão é um fato histórico e assim as ruínas devem ser preservadas. O fato é que, enquanto se discute, o governo afegão não tem dinheiro para manter nem os cinco seguranças do complexo, onde se entra pagando (4 dólares para estrangeiros e 0,60 para afegãos) e se leva o souvenir que quiser dos pedaços das estátuas caídas, segundo informa a Gazeta do Povo.  

 

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