EDUCAÇÃO É UM DIREITO HUMANO

 

Elaine Senise Barbosa

28 de setembro de 2020

 

A pandemia de covid-19 terá efeitos significativos sobre a geração em idade escolar. Quase todos os países do mundo fecharam suas escolas durante algum período neste ano, mas a demora em providenciar a volta às aulas se tornou uma preocupação internacional. A OMS, a Unesco e a Unicef lançaram um documento pedindo o rápido retorno às atividades escolares em decorrência da escala imensa de retrocessos previstos por conta do fechamento das escolas. A representante da Unicef fala em pelo menos 24 milhões de crianças abandonando as escolas por causa da pandemia de covid-19. E as meninas serão as mais afetadas.

Milhares de meninas já sofrem a perda do estímulo do estudo (como os meninos) e são chamadas a ajudar nas atividades caseiras, cuidando de irmãos menores e assumindo responsabilidades. Mas as adolescentes engravidam precocemente e há lugares onde as famílias vendem as filhas por um dote, pois a pobreza as compele a seguir esse caminho. Para muitas famílias, preocupar-se com formação escolar é um luxo. 

O Fundo Malala, criado pela ativista paquistanesa Malala Yousafzai, estima que aproximadamente 20 milhões de meninas em idade escolar podem não voltar após a pandemia. E, apesar de reconhecer os esforços para o ensino à distância, estima que mais de 450 milhões de estudantes, meninas e meninos, são privados do direito à educação pelo fechamento das escolas. Já existem estatísticas apontando o aumento do trabalho infantil.

O tempo longe da escola, em um mundo de educação 5G, é uma boa metáfora sobre o significado das desigualdades na aquisição de conhecimento entre alunos carentes e os que dispõem de acesso de boa qualidade à web. Dada a atual experiência, o acesso à educação a distância deve começar a ser encarado como política de Estado, em nome do direito humano básico de estudar.

Quem não consegue acompanhar o ritmo das aulas se desmotiva, ao mesmo tempo em que a família, com crescente dificuldade para garantir o sustento, inclina-se a dirigir os filhos para o trabalho informal. Na realidade do matriarcado da população mais pobre e periférica do Brasil, as mães que sustentam os filhos com o seu trabalho são terrivelmente prejudicadas quando não podem contar com as escolas, que complementam a alimentação das crianças e garantem-lhes segurança durante parte do dia.

Escola de meninas na periferia

 

Lugar de criança é na escola

Multiplicam-se as evidências dos prejuízos causados por longas interrupções das aulas presenciais. Outro relatório, publicado há pouco pela Unicef a partir de levantamento em 158 países, revela que, de cada 4 países, um ainda não estabeleceu nenhuma data para o retorno às aulas presenciais. A diretora executiva da Unicef, Henrietta Fore, classificou essa informação como “alarmante”.

Escola é aprendizado, alimentação, imunização, assistência psicológica, convívio social, descobertas e aspirações. Por mais precárias que sejam as condições, ainda é um ambiente de vida. Trancar crianças e jovens em casa por meses é um tormento psicológico, ainda mais quando esses jovens percebem as pessoas à sua volta saindo do isolamento. E infelizmente, para muitas crianças, também uma violência física.

Não se trata de negar a existência da pandemia, mas de, controlada a fase mais aguda, avaliar o significado político e os custos sociais de manter as escolas fechadas, ignorando-se o direito fundamental de todas as crianças à educação. O documento da tríade Unesco-Unicef-OMS estabelece parâmetros e protocolos orientando os processos de volta às aulas para países em diferentes categorias epidemiológicas, das mais controladas às mais agudas. Os representantes das três entidades insistem nos impactos já provocados pela covid-19 e na progressão acelerada de perdas para os jovens, enfatizando a urgência do retorno.

O direito à educação está inscrito no Artigo 26° da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Audrey Azoulay, diretora-geral da Unesco, declarou: “Embora o fechamento temporário de escolas como resultado de crises de saúde e outras crises não seja uma novidade, infelizmente a escala global e a velocidade da atual ruptura educacional são incomparáveis ​​e, se prolongada, pode ameaçar o direito à educação”.

O fechamento de escolas, mesmo que temporário, afeta muito o desempenho de aprendizagem dos jovens, pois a regularidade dedicada a essa ação também conta. E ajuda a aprofundar as desigualdades. Para muitas famílias há uma redução da renda em decorrência do tempo de trabalho que os pais passam a empregar no cuidado dos filhos. Em países como França, Espanha e Sérvia, a prioridade na volta à escola presencial foi dada aos pais que precisavam trabalhar fora de casa. Famílias economicamente favorecidas continuam tendo recursos para fornecer atividades enriquecedoras e diversas para crianças e jovens que não podem frequentar a escola.  

 

Não verás país como este

Portão fechado

O Brasil é um dos países nos quais as escolas permanecem fechadas há mais tempo. De fato, tudo indica que 2020 vai terminar sem que as atividades escolares presenciais voltem a acontecer, ao menos em grande parte do país. Crianças e jovens brasileiros tornaram-se mais um dos reféns da polarização ideológica que tomou conta da opinião pública. 

Primeiro por conveniências eleitorais, pois governadores e prefeitos, a quem compete decidir sobre as escolas, tentam agradar a todos anunciando a “possibilidade” de retorno às escolas, dentro de uma série de exceções que, na prática, evitam qualquer enfrentamento com os sindicatos de professores. Esses sindicatos decidiram que as aulas presenciais devem retornar “só depois da vacina”, como se isso não implicasse perder também, na melhor das hipóteses, boa parte do ano letivo de 2021.  

Outro elemento que vai dificultar a volta ainda em 2020, mesmo que entrando por janeiro e fevereiro, como aventaram burocratas que fingem ignorar o calendário escolar e as leis trabalhistas, são as férias de verão. Pois, apesar de todos os percalços, a maioria que se manteve ministrando e assistindo às aulas on-line merece agora o tempo de descanso. E os professores sabem o quanto trabalharam off-line com poucos recursos e muito compromisso.   

Mas ficará o lamentável registro de não termos conseguido salvar nada desse ano, em parte graças aqueles que adotaram um discurso tão fechado sobre o assunto, segundo o qual reabrir escolas parece um convite ao assassinato em massa. Como se escolas não fossem, por natureza, local de contágios de outras doenças.

Os protocolos de reabertura da OMS identificam corretamente as exceções: pessoas com comorbidades, jovens ou adultos, cujas presenças agora podem não ser indicadas e para os quais se manteria o ensino à distância. É de se esperar que em uma comunidade escolar que abrange milhões de pessoas, alguns milhares sejam “exceções”. Mas como fica a maioria em um aspecto tão crucial da vida social moderna: o consenso sobre o direito à educação e seu papel estratégico para o futuro de qualquer sociedade?

O fato é que no Brasil – onde o Ministério da Educação não disfarça seu desconhecimento e desprezo pelo assunto – não se vê preocupação em elaborar nenhum tipo de plano ou treinamento para viabilizar essa volta ao ambiente escolar real. A ausência de qualquer tipo de diretriz federal ajudou a criar um caos decisório distribuído entre Executivos e Legislativos estaduais e municipais, que definem regras ao sabor de adesões políticas ou idiossincrasias de governantes, nas quais a última das preocupações é o corpo estudantil, que não vota.

“Criança, não verás país algum como este”.

 

SAIBA MAIS

  • Estrutura para reabertura das escolas (documento Unicef-Unesco-OMS)
  • Dados estatísticos por país sobre período de fechamento e número de alunos atingidos
  • Impacto da pandemia sobre a educação na Índia
    Quase 70 anos de esforços e progressos na educação das meninas na Índia estão sendo ameaçados pela pandemia. Um relatório publicado na semana passada sobre o país estima que cerca de 10 milhões de meninas do ensino secundário podem abandonar a escola e aponta quatro fatores que dificultam os avanços
  • O que dizem os protocolos de retomada em outros países
    Os países selecionados para esse estudo são bastante heterogêneas entre si, em especial em relação ao nível de desenvolvimento e tamanho de sua população. Alguns países, mesmo sem terem retornado, já apresentaram planos e cronogramas para tal fim, como no Uruguai e nos EUA. 
  • Educação e Coronavírus
    Foram selecionados 5 países (EUA, Dinamarca, França, Nova Zelândia e China) e, à exceção dos EUA que ainda não reabriu suas escolas, o enfoque foi dado para aqueles que já retomaram as aulas presenciais e que possuíam informações de qualidade disponíveis

 

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