TRUMP REFERENDA “LEI DA SELVA” NA CISJORDÂNIA

 

Demétrio Magnoli

25 de novembro de 2019

 

Quando renuncia a definir como ilegais os assentamentos israelenses na Cisjordânia, o governo dos EUA tenta substituir a lei internacional pela “lei da selva”. A acusação partiu de Saeb Erekat, o negociador palestino nas virtualmente inexistentes negociações de paz com Israel. Ele tem razão.

A Cisjordânia passou a controle israelense após a Guerra dos Seis Dias, em 1967, junto com a Faixa de Gaza, Jerusalém Leste e o território sírio das colinas de Golã. Desde a ocupação, os territórios palestinos tornaram-se foco do estabelecimento de assentamentos civis israelenses. Em 2005, Israel desengajou-se da Faixa de Gaza, removendo os assentamentos implantados na área. Contudo, violando o direito humanitário internacional, continua a transferir cidadãos para a Cisjordânia e Jerusalém Leste.

 

Assentamento israelense de Givat Zeev, na Cisjordânia, em dezembro de 2016

Assentamento israelense de Givat Zeev, na Cisjordânia, em dezembro de 2016

A Convenção de Genebra de 1949, no seu artigo 49, proíbe o Estado ocupante de “deportar ou transferir partes da sua própria população civil para o território que ocupa”. Israel tentou circundar a proibição legal argumentando que, antes de 1967, a Cisjordânia não pertencia a um Estado soberano, pois encontrava-se sob a “proteção” da Jordânia. A Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, decidiu em 2004 que a tentativa de restringir a aplicação do artigo 49 não tem fundamento. Erekat está amparado pela lei internacional.

A Cisjordânia é habitada por mais de 2,5 milhões de árabes palestinos. A população árabe de Jerusalém Leste gira em torno de 330 mil. Desde 1967, mais de 200 assentamentos foram implantados nessas duas áreas. Hoje, segundo o B’Tselem, uma organização civil israelense dedicada à proteção dos direitos humanos nos territórios ocupados, quase 210 mil israelenses vivem em Jerusalém Leste e mais de 400 mil vivem na Cisjordânia. É a “lei da selva”, agora referendada oficialmente pelos EUA.

Trump referenda “lei da selva” na Cisjordânia

Donald Trump com Benjamin Netanyahu, no aeroporto Ben Gurion, em Israel, em maio de 2017

O giro na posição americana deu-se em 18 de novembro. Virando as costas para a Convenção de Genebra, o secretário de Estado Mike Pompeo declarou que “o estabelecimento de assentamentos civis israelenses não é, por si, inconsistente com a lei internacional”. Completou dizendo que o estatuto político da Cisjordânia “deve ser negociado entre Israel e os palestinos”. O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, que sabota há anos as negociações de paz, saudou a mudança como “correção de um erro histórico”.

Houve consternação, mas ninguém se surpreendeu. No início de seu governo, o presidente americano Donald Trump anunciou a transferência da embaixada americana para Jerusalém, um gesto simbólico de reconhecimento diplomático da política israelense de ocupação dos territórios palestinos. A declaração de Pompeo fecha o círculo.

O governo brasileiro de Jair Bolsonaro ensaiou seguir o exemplo americano, transferindo a embaixada para Jerusalém. Contudo, até o momento, absteve-se de levar adiante a iniciativa.

 

A “lei da selva” e o futuro de Israel

Mapa da Cisjordânia ocupada

Fonte: B’Tselem

O mapa geopolítico da Cisjordânia ocupada é uma imagem da “lei da selva”. Na região, Israel ergue a sua “barreira de segurança”, uma muralha de placas de concreto que, em diversos trechos, se afasta bastante da linha de cessar-fogo anterior a 1967 para abarcar blocos de assentamentos. Dentro dos limites municipais de Jerusalém, alargados por Israel, situam-se diversos assentamentos.

As manchas de controle civil palestino, resultantes dos fracassados acordos de paz de Oslo, de 1993, aparecem rodeadas pelas áreas majoritárias de controle civil e militar israelense. As principais cidades palestinas – Hebron, Bethlehem, Ramallah e Nablus – estão encravadas nessas manchas. A circulação de palestinos é severamente limitada por nada menos que 98 checkpoints instalados pela potência ocupante.

O conceito da paz em dois Estados é solapado pela política de assentamentos. A aceleração da transferência de civis israelenses para a Cisjordânia tende a gerar um cenário geográfico e demográfico irreversível.

O chamado “campo da paz” já foi majoritário em Israel. O argumento que o soldava é impecável. Israel não pode, ao mesmo tempo, ser um Estado judeu, sustentar um sistema democrático e controlar o conjunto formado por Israel/Palestina. Só pode ter dois desses atributos.

  1. Se escolher a democracia e o controle completo de Israel/Palestina, precisará estender os direitos políticos a uma eventual maioria demográfica palestina – e, portanto, deixará de ser um Estado judeu;
  2. Se escolher o caráter judaico junto com o controle completo de Israel/Palestina, terá que negar, permanentemente, o exercício de direitos políticos aos palestinos – e, portanto, deixará de ser um Estado democrático;
  3. Se escolher a democracia e o caráter judaico, terá que aceitar a criação de um Estado palestino nos territórios hoje ocupados – e, portanto, renunciará ao controle do conjunto de Israel/Palestina.

A escolha da terceira opção produziu os Acordos de Oslo. Mas, de lá para cá, o “campo da paz” entrou em colapso. Os triunfos eleitorais de Netanyahu e a perda de densidade dos partidos de centro-esquerda e esquerda provocaram o congelamento das negociações com os palestinos. De certo modo, sem o admitir explicitamente, Israel vai abandonando a única solução que preserva sua natureza judaica e democrática.

Grafite do artista Banksy em seção da “barreira de segurança” nos arredores de Ramallah

Grafite do artista Banksy em seção da “barreira de segurança” nos arredores de Ramallah

Os radicais expansionistas israelenses, que almejam um “Grande Israel”, não se preocupam com a democracia. Eles investem na segunda opção: um Estado de apartheid, que se impõe pela força à população árabe palestina.

Os radicais palestinos que negam o direito de Israel à existência sentem-se contemplados por essa escolha. Eles investem no delírio de longo prazo de extinguir o Estado judeu – e encontram na reivindicação democrática de direitos políticos universais uma ferramenta apropriada para avançar seu objetivo.

O governo de Donald Trump alega defender os interesses de Israel, ao avalizar a política de assentamentos. De fato, defende os interesses dos radicais israelenses e palestinos que apostam na guerra eterna.

 

 

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