REFUGIADOS NA ALEMANHA: ENTRE A ECONOMIA E A POLÍTICA

 

Thomas Milz

(Jornalista e fotógrafo alemão, trabalha no Brasil desde 2002 para mídias de língua alemã. Coordenou o livro O Brasil dos correspondentes e é autor fotográfico de Jóias de crioula)  
11 de novembro de 2019

As últimas semanas abalaram as bases da normalmente pacata Alemanha, por muito tempo um exemplo de tranquilidade e estabilidade no mundo. Nas eleições regionais de setembro e outubro de 2019 no leste do país – a parte que corresponde à antiga Alemanha Oriental, comunista – o Alternative fur Deutschland (Alternativa para a Alemanha) ou AfD, partido da extrema-direita xenófoba, registrou êxito notável nas urnas. Obteve mais de 23% dos votos nos estados da Turíngia e Brandenburgo e 27,5%, na Saxônia. Desde os anos 1930 não se via números tão expressivos para partidos da extrema-direita no país. Ou, em outras palavras, desde o surgimento de Adolf Hitler.

O sucesso da AfD é fruto das profundas transformações pelas quais a Alemanha passou nos últimos anos. Fundada no oeste da Alemanha, em 2013, por economistas e políticos conservadores, a AfD era nada mais que um partido contra a moeda comum da União Europeia (UE), o euro. Seus integrantes receavam que os alemães tivessem que bancar os “países preguiçosos“ do sul da Europa devido à moeda comum. Em sua lógica, enquanto a Alemanha praticava políticas de austeridade, os países do sul gastariam sem se preocupar, pois sabiam que, entrando em apuros, o Banco Central Europeu (BCE) iria salvá-los para defender a moeda comum.

Banco Central Europeu

A sede do Banco Central Europeu, em Frankfurt, alvo primeiro das críticas da AfD

De certa forma, a atuação de Mario Draghi na presidência do BCE deu muita munição para esta crença. Draghi reduziu os juros a zero, implodindo, desta maneira, os sistemas de previdência de milhões de alemães, que apostaram em juros altos no futuro para financiar suas aposentadorias. E as Outright Monetary Transactions de Draghi, o programa de compra de papeis duvidosos nos países combalidos, aumentou a percepção de que o BCE estava mantendo vivos, de forma artificial, os cadáveres dos países afundados em dívidas impagáveis, como a Itália e a Grécia. Foi então que a AfD começou sua caminhada para a extrema-direita, separando a UE em bons e maus europeus. 

Mas um passo ainda mais importante foi o aparecimentos de grupos ultranacionalistas e abertamente racistas, como o Pegida (Patriotische Europaer gegen die Islamisierung des Abendlandes ou Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente), fundado em Dresden, na Saxônia em 2014. Movimentos como esse desabrocharam como resposta à onda de refugiados que chegava à Alemanha.

 

A recepção aos refugiados reacendeu as divisões na sociedade alemã

A Alemanha está entre os países que mais receberam refugiados nos últimos anos. Só em 2015 foram cerca de 900 mil, a maioria proveniente da Síria (35%). No ano seguinte o número caiu para cerca de 750 mil, com uma tendência de queda derivada do acordo entre a UE e a Turquia para manter três a quatro milhões de refugiados sírios em território turco. Assim, apenas cerca de 100 mil refugiados chegaram à Alemanha em 2019.

O impacto causado pela chegada dos refugiados, majoritariamente muçulmanos, resultou em diferentes reações nas diversas regiões do país. O Oeste, desde os anos 1950, convivia bem com um grande número de estrangeiros, os Gastarbeiter, os “trabalhadores convidados”. Entre 1955 e 1973, durante a reconstrução econômica do pós-guerra, cerca de 14 milhões deles chegaram à Alemanha a convite do governo. Desses, 11 milhões voltaram aos seus países de origem. Mas muitos italianos, gregos, turcos e espanhóis escolheram a Alemanha como nova pátria.

Mesmo assim, os problemas de integração desses “trabalhadores convidados” na Alemanha, principalmente das famílias turcas, permanecem até hoje, como demonstra o caso dos jogadores de futebol de ascendência turca, Mesut Özil e İlkay Gündoğan. Em 2018, eles posaram para fotos com o líder autoritário turco Recep Erdogan, causando uma onda de reações negativas na Alemanha. 

Já na antiga Alemanha Oriental praticamente não havia estrangeiros, com exceção dos soldados soviéticos ali baseados. Por isso, nessa região já desestabilizada pela crise econômica provocada pela queda do muro de Berlim, a chegada dos refugiados resultou em violência e protestos. A chanceler Angela Merkel, filha de um pastor luterano e criada na Alemanha Oriental, logo foi vista como traidora da própria pátria. A decisão de Merkel, em setembro de 2015, de não fechar a fronteira com a Áustria facilitando assim a chegada de milhares de pessoas gerou esse sentimento de traição, principalmente no Leste.

Lá, os “novos alemães” da velha Alemanha Oriental se sentiram abandonados pelo governo e massacrados pelos moinhos do capitalismo ocidental. Logo, espalhou-se o boato de um plano sombrio de Merkel: substituir o povo alemão por muçulmanos.

 

Por que receber refugiados?

Merkel em escola com refugiados

Angela Merkel visita alunos imigrantes na escola Erika-Mann, em Berlim, em outubro de 2011, antes da grande onda de refugiados

Enquanto as ondas de refugiados chegavam, Merkel disse a famosa frase Wir schaffen das! (“Nós podemos fazer isso!”). Ela quis dizer que a poderosa Alemanha, com falta de mão de obra, conseguiria tomar conta dos refugiados e, mais ainda, incluí-los no mercado de trabalho.

Na época, as grandes empresas alemãs se comprometeram a ajudar a chanceler nesse empreendimento. No começo, os alemães, principalmente no oeste, receberam os refugiados de braços abertos. 

Especulava-se muito, à época, sobre os motivos dessa hospitalidade. Seria uma tentativa de se livrar do passado sombrio?

Desde a reunificação, em 1990, observou-se a tendência da sociedade alemã em querer se mostrar inofensiva. De um lado, pela história do Holocausto cometido pelos alemães; de outro, devido ao temor dos vizinhos de que, com a reunificação, surgisse um “Quarto Reich”. Contudo, um patriotismo light já podia ser observado durante a Copa do Mundo de 2006, quando os alemães, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, puderam torcer sem sentimento de culpa pela própria seleção. Agora os alemães não só recebiam os refugiados com flores como, além disso, gastavam bilhões de euros para integrá-los à sociedade nacional.

Mas foi aí que as coisas começaram a se misturar, a ficar confusas. Por que integrar refugiados de guerra que depois do término do conflito voltariam para suas pátrias? Argumentava-se que os refugiados, na maioria jovens, poderiam ajudar o combalido sistema de proteção social, que sofre com as tendências demográficas negativas da sociedade alemã: cada vez menos filhos para financiar cada vez mais idosos. Confundiu-se o refugiado com o imigrante, que não vem em busca de abrigo, mas de um futuro melhor.

 

A integração resistirá ao discurso xenófobo?

Nesse processo, a Alemanha finalmente percebeu que havia tempo o país se transformara, ao menos parcialmente, em uma sociedade de imigrantes. Falta apenas uma moderna legislação que estabeleça as regras de imigração, um projeto ainda não realizado. Calcula-se que, para manter os sistemas de proteção social funcionando, a Alemanha precisa de 400 mil imigrantes. Por ano.

Por enquanto, o que está se anunciando é uma tempestade perfeita. Com a chegada de uma recessão econômica, os bilhões investidos na integração dos refugiados serão questionados por muitos alemães. Ao mesmo tempo, o sucesso da AfD nas urnas tende a dominar as pautas dos outros partidos, principalmente de centro-direita, que começam a copiar partes da agenda da AfD. Assim, todo o cenário político alemão se move para a direita. Quais as consequências concretas para centenas de milhares de refugiados que permanecem na Alemanha? Ainda não se sabe. 

Cresce também a ameaça turca de cancelar o acordo com a UE. Nessa hipótese, milhões de novos refugiados chegariam à Europa num futuro próximo. Numa tentativa de se mostrar proativo e aliviar as tensões na região, o governo alemão sugeriu a criação de uma zona pacificada no norte da Síria sob controle internacional. Restou a dúvida se (e como) a própria Alemanha participaria desse projeto, devido à precária situação de seu próprio exército.

Enquanto isso, despontam na imprensa sinais que, cada vez mais, comprovam o sucesso da integração dos refugiados. São pequenas histórias de sucesso: os filhos que, depois de pouco tempo, já falam um alemão perfeito; o sírio que conseguiu abrir uma loja com produtos típicos do seu país; o médico que fugiu da Síria e hoje tem o próprio consultório na Alemanha. Aparentemente, por terem níveis educacionais melhores que muitos outros grupos de refugiados, os sírios parecem liderar essas histórias de adaptação e começo de uma nova vida na Alemanha.

 

Gráfico sobre inserção dos refugiados no mercado de trabalho

Fonte: Der Spiegel

 

 

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