O MURO SEM FESTA, 30 ANOS DEPOIS

 

Demétrio Magnoli

11 de novembro de 2019

 

Do ponto de vista do governo alemão, os 30 anos da queda do Muro de Berlim, no 9 de novembro de 1989, não devem ser festejados. Matthias Platzeck, ex-chefe de governo do estado de Brandenburgo, núcleo do que foi a Alemanha Oriental, dirige uma comissão oficial encarregada de preparar as comemorações da reunificação alemã. O lema informal de sua comissão é “celebrações estatais tão restritas quanto o necessário; o máximo possível de discussão”.

Três décadas depois da queda do Muro de Berlim, uma festa que assinalou o encerramento da Guerra Fria, a Europa ingressa numa era de incertezas e angústia. A OTAN “está em morte cerebral”, alertou o presidente francês Emmanuel Macron, referindo-se ao desprezo do presidente americano Donald Trump pela aliança transatlântica e à sua explícita admiração pelo líder russo Vladimir Putin. A União Europeia, arquitetada no imediato pós-guerra como vacina contra os nacionalismos, curva-se sob o baque da conclusão do Brexit, a retirada britânica do bloco europeu. 

Estudantes da Alemanha Oriental no Muro de Berlim, diante de guardas de fronteira, em 9 de novembro de 1989

Estudantes da Alemanha Oriental no Muro de Berlim, diante de guardas de fronteira, em 9 de novembro de 1989

As crises paralelas da OTAN e da União Europeia são sintomas de um mal estar mais profundo. Os fragmentos do Muro geraram outros muros, invisíveis, nas mentes de milhões de cidadãos europeus. A direita nacionalista, que ocupava as franjas dos sistemas políticos, moveu-se para o palco iluminado da disputa pelo poder em nações como a Hungria, a Itália, a França, a Holanda e a Suíça. O populismo de direita ameaça a coesão da União Europeia e, em alguns países, como a Hungria, até mesmo a independência do Judiciário e a liberdade de imprensa.

A Alemanha é, de certa forma, um microcosmo da Europa. No leste alemão, nasceu o Pegida, um movimento neonazista marginal mas significativo, e fixaram-se as raízes da Alternativa para a Alemanha (AfD), um partido nacionalista, populista e xenófobo, que ficou em terceiro lugar nas eleições gerais de 2017, com quase 13% do voto popular. A nação, politicamente reunificada, segue dividida nos domínios cruciais da identidade e dos valores.

 

Uma história traumática

“Não sei o que há para ser celebrado”, disse Platzeck, em entrevista à revista alemã Der Spiegel. Platzeck, ex-líder do Partido Social-Democrata (SPD), um dos dois partidos tradicionais alemães, deflagrou uma amarga controvérsia ao usar a palavra “anexação” para se referir à reunificação de 1990. Anschluss (anexação) é palavra maldita na Alemanha, pois recorda a anexação da Áustria pelo regime nazista alemão, em 1938.

Matthias Platzeck nasceu em Potsdam, na antiga Alemanha Oriental, e participou dos movimentos cívicos que provocaram a queda do Muro de Berlim

Matthias Platzeck nasceu em Potsdam, na antiga Alemanha Oriental, e participou dos movimentos cívicos que provocaram a queda do Muro de Berlim

Mas será que Anschluss pode ser utilizada, apropriadamente, no caso da Alemanha Oriental?

Richard Schroder, também alemão-oriental, e também do SPD, pediu que se evite usar paralelos com o nazismo no discurso político contemporâneo. Axel Vogel, líder do Partido Verde no parlamento regional de Brandenburgo, lamentou a comparação e declarou que “espero mais sabedoria histórica de um chefe de governo”. A Alemanha Ocidental, de fato, não se parece em nada com o Reich nazista. Mas, atrás do óbvio exagero retórico, há uma trajetória traumática.

“Nós não queríamos uma incorporação; queríamos uma cooperação entre iguais com uma nova constituição e um novo hino”, explicou Platzeck. “Queríamos os símbolos de um verdadeiro, coletivo, novo começo”, concluiu. O “nós”, nesse caso, só pode ser usado precisamente para descrever os movimentos cívicos da antiga Alemanha Oriental que dirigiram as manifestações de massas de 1989. O povo alemão-oriental acabou votando, livremente, pela incorporação à Alemanha Ocidental. Mas, depois, veio a dura realidade.

As estatísticas atuais evidenciam uma lenta convergência dos níveis de renda do leste alemão com os do próspero oeste do país. A renda per capita média nos estados do leste não passava de 61% da renda nos estados ocidentais em 1991; hoje, chega a 86%. Contudo, as duas fotografias não contam a história inteira.

Diferença de produtividade da Alemanha Oriental e Alemanha Ocidental

Fonte: The Economist, 2 de novembro de 2019

Depois da queda do Muro de Berlim e da reunificação, a Alemanha Oriental sofreu drástica desindustrialização, como fruto do diferencial de produtividade do trabalho com a Alemanha Ocidental. O diferencial reduziu-se bastante nos anos iniciais da transição, mas a tendência à convergência praticamente estagnou na última década.

O deslocamento econômico produziu rupturas demográficas profundas. Milhões de alemães do leste, quase sempre jovens, mudaram-se para os estados do oeste. No leste, com exceção de Berlim e de seu anel circundante, a população reduziu-se entre 10% e 20% no intervalo 1995-2017. A população oriental tornou-se significativamente mais idosa que a ocidental. O subemprego é duas ou três vezes maior nos estados do leste. As pequenas empresas modernas, competitivas e exportadoras concentram-se no lado ocidental.

Depois de 1990, “todo o software da vida mudou” para os alemães do leste, explicou Markus Kerber, alto funcionário do Ministério do Interior. Da mudança dramática emergiram ressentimentos, que fazem seu caminho até a política.

 

Muros invisíveis

“O Leste se levanta!” – com esse lema, a AfD disputa eleições nos estados da antiga Alemanha Oriental, onde tem obtido mais de um quinto dos votos, como aconteceu em outubro, na Turíngia. O muro invisível entre oeste e leste manifesta-se com muito mais nitidez na política do que na economia. Quando se compara a votação do partido da direita nacionalista nos estados alemães, a divisão geográfica torna-se patente.

Contrastes regionais de renda são traços marcantes em inúmeros países europeus. No sul da Itália (o Mezzogiorno), o PIB per capita segue estagnado em pouco mais de metade do PIB per capita do norte. Diante do caso italiano, a reunificação alemã aparece como um sucesso quase absoluto. Mas, apesar de tudo, uma “identidade oriental” não apenas se conservou na Alemanha como se fortaleceu bastante nos últimos anos.

Hoje, cerca de 47% dos alemães do leste declaram-se primeiro “orientais” e só depois, “alemães”, uma proporção muito maior que aquela registrada na hora da reunificação. O fenômeno abrange cidadãos de todas as idades – mas, num aparente paradoxo, mais os jovens que os idosos. Os jovens que permaneceram no leste não viveram pessoalmente a experiência do totalitarismo da Alemanha Oriental. Contudo, ouviram de seus pais as narrativas dramáticas do deslocamento social, do desemprego e do subemprego que vieram no rastro da reunificação.

O Muro sem festa, 30 anos depois

Fonte: The German Federal Returning Office

A identidade oriental ganhou força extraordinária a partir da crise dos refugiados de 2015. A AfD ficou abaixo de 5% dos votos nas eleições gerais de 2013, saltando para mais de 13% em 2017. Petra Kopping, ministra da Integração na Saxônia, o estado do leste que abrange as cidades de Dresden e Leipzig, confessou que, ao tentar explicar os motivos da ajuda concedida aos refugiados, ouviu uma resposta frequente: “Integrem-nos primeiro!”.

Na Alemanha, a integração dos refugiados é uma história econômica de relativo sucesso. Por outro lado, os efeitos políticos do fluxo imigratório abalam a estabilidade tradicional da cena alemã.

Dresden é o berço do Pegida, uma sigla que significa “Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente”. O movimento, que não oculta seu apego a símbolos nazistas, como as suásticas, nasceu em 2014, mas suas manifestações mais numerosas só ocorreram após as ondas de refugiados do ano seguinte. Lutz Bachmann, seu fundador, fez postagens em redes sociais posando como Hitler e difundindo comentários abertamente racistas. 

Na discreta celebração do 9 de novembro, a primeira-ministra Angela Merkel enviou uma mensagem eloquente: “Os valores em que a Europa se baseia – liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito, respeito pelos direitos humanos – são tudo menos auto-evidentes. Eles precisam ser defendidos.”

30 anos, tempo de discussão, não de celebração.

 

 

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