Fonte: Folha de S. Paulo, 25 de junho de 1993
A presidência da República pode constranger os eventuais ocupantes da cadeira presidencial a agirem de acordo com as “liturgia do cargo”?
No final de outubro de 2019, além do destempero expresso por Jair Bolsonaro contra veículos de imprensa, aos quais ataca recorrentemente quando criticado, houve também a sugestão de seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, de aplicação de “um novo AI-5” como resposta a uma hipotética “radicalização da esquerda”. O presidente e zeloso pai reagiu declarando ser um “excesso” e um “sonho” (não um pesadelo, como bem notaram alguns).
Como é amplamente sabido, Jair Bolsonaro construiu sua carreira política criticando a democracia e lamentando o serviço incompleto da ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985, por não ter torturado e eliminado gente o suficiente, incluindo o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Nos dez meses de seu governo, acumulam-se sucessões de declarações antidemocráticas (dele e de seus filhos, que agem não como representantes eleitos pelo povo, mas como Guarda Pretoriana do pai), seguidas de recuos, pedidos de desculpas que não resistem horas até que outro elemento do círculo repise o que fora negado pouco antes.
Diante da sequência de eventos similares, já não é mais possível acreditar em “despreparo” ou “falta de decoro”, pois vai se destacando um método. O de anestesiar a sociedade e as instituições, naturalizando as investidas autoritárias; o de confundir o debate político e desviar o foco dos problemas reais enquanto a sociedade civil segue polarizada. Parece loucura, mas é não é. Jair Bolsonaro pode ser criticado por muitas razões, menos por incoerência ideológica.
Hoje, é forçoso reconhecer, sua eleição foi propiciada pelo desmantelamento do sistema político criado a partir da redemocratização, um fenômeno provocado pela combinação da depressão econômica com os desvios da Operação Lava Jato e o virulento anti-petismo daí decorrente. Mas, mais do que isso, a campanha eleitoral de 2018 deu espaço para a aglutinação de um pensamento político até então difuso, autoritário e retrógrado, que está longe de ser apoiado por boa parte dos que o elegeram e que não podem, e não devem, se almejamos escapar das armadilhas da polarização ideológica que hoje encurrala o Brasil, ser confundidos com o núcleo mais fiel de seguidores do presidente.
O bolsonarismo é um novo elemento no cenário político brasileiro. O getulismo e o lulismo sugerem que a política brasileira é incapaz de produzir respostas políticas não personalistas, o que torna o país refém de cíclicos “salvadores da pátria”. Jair Bolsonaro não é um líder político, no sentido clássico do portador de um projeto que congregue a nação, mas sua inclinação a manifestar opiniões autoritárias fizeram dele o catalisador de um movimento de negação radical dos direitos humanos.
Fonte: Folha de S. Paulo, 30 de março de 2011
O modus operandi do bolsonarismo faz tábula rasa do processo democrático experimentado pelo país desde o fim da ditadura militar. Nesse sentido, um estudo publicado em meados de 2018 e focado na atuação política do então candidato Jair Bolsonaro ao longo de trinta anos (1987-2017), ajuda a entender como ganhou força e como se manifesta essa extrema-direita à brasileira.
Apresentado na revista Plural (dedicada a estudos de sociologia), a pesquisa analisou, por meio de artigos publicados na imprensa paulista, a atuação do deputado em seus diversos mandatos, identificando-o como exemplo paradigmático da “nova direita” em ascensão. O foco do estudo foi a construção da imagem pública de Jair Bolsonaro a partir da mediação feita pela imprensa, nesse intervalo de três décadas.
Dado o imenso volume de artigos publicados nos jornais cariocas, sua base eleitoral, os pesquisadores optaram trabalhar primeiro com os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, de maior projeção nacional. Não por acaso, o título do ensaio é uma frase proferida por Bolsonaro em 2016: “Eu não falo o que o povo quer; eu sou o que o povo quer”.
De um total de 536 textos levantados nessas duas publicações e devidamente tabulados, o que salta aos olhos é como Bolsonaro ganhou projeção em relação diretamente proporcional ao seu discurso explicitamente contrário aos Direitos Humanos. O deputado começou a chamar a atenção ao defender a ditadura militar e seus métodos de exceção, como a tortura; depois ganhou força a pauta anti-LGBT; a partir de 2016 ampliaram-se as críticas aos temas de direitos humanos, como direitos indígenas, violência de forças policiais contra população de baixa renda, direitos das mulheres, racismo, liberdade de imprensa, etc.
Fonte: NASCIMENTO, L.; ALECRIM, M.; OLIVEIRA, J.; OLIVEIRA, M.; COSTA S.
“De todas as pautas políticas analisadas, a que mais parece constituir a imagem pública do deputado Jair Bolsonaro é aquela contrária aos direitos humanos. A presença desta pauta é bastante tímida nos primeiros anos das matérias analisadas e teve uma maior ocorrência a partir de 2011. Isto parece ter ocorrido devido ao papel que tais temas adquiriram nos governos do Partido dos Trabalhadores, em especial no mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (2011-2016). Diante dos eventos, projetos de lei, planos nacionais, dentre outros, sempre sucediam declarações do deputado nos diversos canais de comunicação disponíveis. Geralmente, por conta do seu claro posicionamento contrário a tais assuntos e, em especial, aos temas vinculados aos LGBT, as declarações resultavam em polêmicas que iam parar nas páginas dos jornais.” (NASCIMENTO et alii, 156)
“As matérias analisadas indicam a existência de uma nítida retroalimentação entre as pautas críticas aos direitos humanos e o maior número de matérias com as repercussões do posicionamento político do deputado. Em outros termos, quanto maior o avanço da agenda política dos direitos humanos, mais notícias surgem com as repercussões das declarações contrárias a esta mesma agenda. Deste modo, parece haver um elo curioso e perverso entre determinadas agendas políticas, declarações polêmicas e a visibilidade midiática do deputado. Ao canalizar os anseios sociais contrários às políticas de direitos humanos (atacando LGBT’s, quilombolas, mulheres etc.) e, também, fomentando o extermínio de criminosos, o deputado vai ao encontro de uma parcela significativa da população.” (NASCIMENTO et alii, p.160)
O avanço dos movimentos de extrema-direita em todo o mundo já não constitui novidade, embora suas causas sejam objeto de intensos debates. Se existem elementos comuns a esse discurso de extrema-direita, certamente existem especificidades relacionadas à história de cada país e à maneira como se inserem na ordem global.
No Brasil, o surgimento do bolsonarismo trouxe o país para a discussão. Porém, como adoramos jabuticabas, não temos exatamente uma extrema-direita clássica. Ainda tentamos entender esse fenômeno político que tomou conta do país a partir da campanha presidencial de 2018. Isso porque o governo exibe um duplo rosto. De um lado, tem uma face econômica ultraliberal que exalta o Estado mínimo e funciona como atrativo para a elite econômica. De outro, porém, é profundamente subversivo, atacando instituições políticas como o Congresso e o STF, além de partidos políticos, a Igreja Católica e mesmo representantes da cúpula das Forças Armadas.
Alguns analistas rejeitam o termo “conservadorismo” para caracterizá-lo, à medida que o bolsonarismo não busca restaurar um passado nostalgicamente imaginado e, pelo contrário, projeta um futuro no qual se erguerão novas elites e hierarquias (religiosas, políticas e sociais). A única coisa que parece não mudar na história do Brasil é a concepção patrimonialista do Estado e as relações de compadrio (à família e aos amigos, tudo; aos inimigos, nem a lei).
Em artigo de opinião publicado no jornal Folha de S. Paulo, o cientista político Miguel Lago, analisando as relações que o governo Bolsonaro mantém com a Igreja Católica, escreveu:
“Além das razões políticas mencionadas, a cruzada empreendida por Bolsonaro contra a Igreja está motivada por um objetivo ideológico maior: destruir o conservadorismo para poder instalar o reino da força.
O conservadorismo visa conservar a tradição e a ordem. Os principais valores conservadores são a disciplina, a hierarquia, a defesa da família, o respeito ao próximo, a excelência, o rigor, a polidez, a ritualidade, a formalidade, o elitismo, o respeito aos anciãos. Se há uma instituição regida por esses valores, para o bem e para o mal, é a Igreja Católica. Por sua vez, o bolsonarismo opera de maneira contrária: desrespeita a hierarquia, erode figuras de autoridade, promove o voluntarismo sobre a ética, fortalece a mediocridade e solapa a civilidade básica como modo de convivência.
Tal movimento só pode ser considerado conservador, no sentido mais primitivo da palavra, na medida em que busca conservar o exercício de micro poderes estabelecidos dentro da sociedade. É o caso do abuso de poder do guarda da esquina ou do burocrata de cartório sobre o cidadão, do marido sobre a mulher, do garimpeiro sobre a floresta; em suma, situações sociais em que a lei do mais forte prevalece.
Quando os valores conservadores que ordenam e normatizam a sociedade se esfacelam, o caos se instala, permitindo que micro poderes se expandam e se tornem grandes poderes. É através dessa operação que pessoas sem rigor, excelência, disciplina ou respeito — mas que são mais fortes do que outros em determinados contextos— prevalecem.”
É nessa mesma direção que convergem os autores da pesquisa anteriormente citada:
“Uma análise dessa categoria parece revelar que o uso da força parece ser o único meio de colocar ordem em uma sociedade em uma suposta decadência e/ou descontrole. Dentro desse raciocínio, o retorno da ordem social advém da disciplina, e o único meio de implantar a disciplina é mediante a violência. Essa interpretação vai desde a situação doméstica, passando pelo tratamento aos que se opuseram à ditadura, até o combate à corrupção.” (NASCIMENTO et alii, p. 154)
Conclusão: a insistência com que alguns analistas, jornalistas e cidadãos, clamam por um “chamado à razão” ou zelo pela “liturgia do cargo” parecem fazer cada vez menos sentido. Bolsonaro é o que é – como 30 anos de matérias publicadas comprovam – e tem orgulho do que diz e representa. Ele não vai mudar, a não ser no sentido de avançar com esse projeto autoritário. Cabe à sociedade civil brasileira e às suas instituições a defesa dos valores democráticos e dos direitos humanos.
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