O presidente Jair Bolsonaro deu um show de etnocentrismo no último dia 23 de janeiro, ao comunicar via rede social (dessa vez o Facebook) a criação do Conselho para a Amazônia, destinado a coordenar ações governamentais “voltadas para a proteção, defesa e desenvolvimento sustentável da Amazônia”. No caminho, disse também que “o índio mudou, está evoluindo, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós. Então, [precisamos] fazer com que o índio cada vez mais se integre à sociedade, e que seja realmente dono de sua terra indígena.” O presidente só esqueceu de perguntar aos índios se eles estão de acordo com essa integração, violando assim o segundo e o trigésimo artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
É a partir dessa declaração que o antropólogo George Zarur, que desenvolveu pesquisas no Parque Nacional do Xingu no tempo dos irmãos Villas-Boas, explica o sentido do etnocentrismo.
A afirmação de que “cada vez mais o índio é um ser humano como nós” dever ser invertida, pois somos nós “cada vez menos seres humanos como os índios”.
Na verdade, o presidente Bolsonaro não foi inteiramente original, pois a política anti-indígena vem sendo implementada desde há muito tempo. A diferença é que, no passado, a contradição entre discurso e prática era aparente. Ao mesmo tempo em que declarava seu amor aos índios, o governo anterior construía a hidrelétrica de Belo Monte.
A afirmação presidencial peca pelo seu etnocentrismo. Este é um conceito antropológico que explicita a capacidade de julgar a si mesmo e à sua cultura e sociedade como superiores a outras. Nossa cultura é superior à indígena em termos militares e tecnológicos, mas muito inferior exatamente em termos de “humanidade”.
O que seria essa humanidade? Seria a capacidade de ser feliz em seu ambiente social e natural. De viver em comunidade e se sentir por ela apoiado. De dividir o que se tem em festas e sentir-se pertencendo a um mundo ordenado em que a morte é uma passagem de gerações (por isso, no Xingu, por exemplo, os nomes são transmitidos aos netos pois a rigor inexiste a morte como a concebemos).
Os irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas-Bôas
Como sempre, me lembro de meus queridos Villas-Bôas. Cláudio ao dizer que tinha uma “vontade enorme de ter nascido índio” e Orlando a afirmar que “na tribo, o velho é o dono da história, o adulto é o dono da aldeia e a criança, a dona do mundo”.
Cada um no seu lugar em um mundo ordenado. O velho controlando a memória, o adulto vivendo a “polis” e as crianças, ah as crianças!, só com uma visita a uma aldeia indígena mais isolada para se ver o que é alegria e liberdade. Sempre brincando ou ajudando os pais, em um aprendizado absolutamente sem repressão. Posso me lembrar da expressão de horror dos adultos ao saberem dos castigos físicos impostos aos filhos de pessoas ditas “civilizadas”. Uma prosaica palmada é desconhecida.
Além de conviver em um ambiente social mais “humano” do que o nosso, os índios sabem viver em integração com a natureza. Cada acidente natural pode ter um significado sagrado e não há, a rigor, um corte abrupto entre o sagrado e o profano. Como se o mundo fosse uma imensa igreja. Gostaríamos de ver nossa igreja destruída e desrespeitada?
Por fim há a questão da saúde. Grupos isolados não possuem resistência a doenças comuns como a gripe e o sarampo. Populações inteiras foram aniquiladas por doenças da nossa sociedade. Por isto, é indispensável que, juntamente com a garantia da terra, sempre exista uma eficaz assistência à saúde dos povos indígenas isolados.
Por essas razões, quando seu mundo desaba, o desespero toma conta dos índios. Aqui, vem à mente a imagem do índio bêbado na beira da estrada. As altas taxas de suicídio caracterizam várias comunidades indígenas nessa situação.
Agora, destacada a humanidade dos índios, cabe perguntar: quem somos nós? Ou, quão humanos somos? Ou melhor, o que será do índio quando for “um ser humano como nós”? Integrada à sociedade brasileira, a maior parte da população indígena estará participando, na condição de miseráveis, de uma das sociedades mais desiguais do mundo. A liberação da terra indígena para a mineração e para a agricultura representará também a destruição do ambiente natural que habitam e preservam.
Só temos a perder. Perderemos formas alternativas de convívio que enobrecem a condição humana. Perderemos áreas de florestas que poderão ser transformadas em centenas de novas “Brumadinhos”. E, o que é pior, perderá, o Brasil, o respeito por si mesmo e o de outras nações por destruir povos indefesos.
Aldeia da tribo Yawalapiti, que habita o Parque Indígena do Xingu
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