INDONÉSIA, UMA DEMOCRACIA EM DECLÍNIO

 

Demétrio Magnoli

22 de abril de 2019

 

A democracia declina na Indonésia, sob os golpes do fundamentalismo religioso e o cerco da velha guarda militar.

Haris Azhar, coordenador da Comissão de desaparecidos e Vítimas da Violência (KontraS), decidiu não votar nas eleições presidenciais da Indonésia, em 17 de abril. Depois de anos conclamando o presidente Joko Widodo a cumprir sua promessa de elucidar as atrocidades cometidas durante a “era Suharto” (1967-1998), Azhar chegou à triste conclusão de que “nossa democracia já não tem significado ou substância”.

Widodo obteve a reeleição, segundo os resultados preliminares, mas o retirado general Prabowo Subianto, seu principal desafiante, contestou a apuração. Os resultados oficiais só serão anunciados em maio. Do ponto de vista de Azhar e de tantos outros, tanto faz. No país muçulmano mais populoso do mundo, a jovem democracia muitas vezes apontada como exemplo de reconciliação entre o Islã e as liberdades públicas experimenta doloroso declínio. E não se trata unicamente da renúncia a lançar luz sobre as violações de direitos humanos do passado.    

Numa cova coletiva, vítimas dos massacres de 1965 aguardam o fuzilamento. Na opinião de inúmeros especialistas, os crimes contra a humanidade cometidos por Suharto enquadram-se no conceito de genocídio

Numa cova coletiva, vítimas dos massacres de 1965 aguardam o fuzilamento. Na opinião de inúmeros especialistas, os crimes contra a humanidade cometidos por Suharto enquadram-se no conceito de genocídio

A antiga colônia holandesa da Indonésia alcançou a independência em 1949. Sukarno, o “pai fundador” da nação independente, governou como “presidente vitalício” por quase duas décadas, cunhando o termo “democracia dirigida” para legitimar um regime terceiro-mundista cada vez mais autoritário. Uma fracassada conspiração golpista, em 1965, até hoje envolta em pesados mantos de mistério, propiciou a ascensão do poder militar, que se consolidou com o golpe de Estado do general Suharto e a implantação da “Nova Ordem”, em 1967.

A “Nova Ordem” nasceu no solo encharcado de sangue. Entre 1965 e 1966, a pretexto de eliminar as sementes da “conspiração comunista”, Suharto comandou massacres e expurgos que se disseminaram a partir de Jakarta para todo o país. A onda repressiva, por vezes considerada um genocídio, deixou no seu rastro centenas de milhares de mortos. Ao longo do processo, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram encarceradas. As vítimas eram militantes ou simpatizantes do Partido Comunista da Indonésia (PKI), chineses étnicos, javaneses da etnia Abangan, esquerdistas e sindicalistas.

 

“Nova Ordem”

O regime ditatorial da “Nova Ordem” impôs uma filosofia oficial apropriando-se da Pancasila, a doutrina social de Sukarno, inspirada no budismo, e convertendo-a em algo parecido com uma religião de Estado. Sob a Pancasila, a unidade nacional dependeria da fidelidade ao governo e da organização social em moldes corporativos. A doutrinação do culto secular tornou-se objetivo principal do sistema de ensino e, em 1983, um ato parlamentar obrigou todas as entidades da sociedade civil a adotarem a filosofia oficial. Por essa via, Suharto esvaziou a autonomia da mesquita, obrigando os líderes religiosos a se inclinarem diante do poder militar.

A ditadura não eliminou os partidos, escolhendo recompor e disciplinar o quadro partidário. Os partidos não-religiosos foram unificados no Partido Democrático Nacional (PDI), enquanto os partidos islâmicos eram agrupados no Partido Unido do Desenvolvimento (PDD). As cúpulas dos dois partidos deviam manter-se fieis ao regime, operando como tentáculos políticos concorrentes da “Nova Ordem”.

O regime entrou em colapso quando a economia parou de crescer. A crise financeira asiática de 1997 assestou o golpe de morte no regime. Em maio do ano seguinte, após meses de imensas manifestações de protesto, Suharto renunciou à presidência, transferindo-a para seu vice, que conduziu a transição para a democracia.

INDONÉSIA, UMA DEMOCRACIA EM DECLÍNIO

Suharto lê sua carta de renúncia, em 21 de maio de 1998. Fonte: Wikimedia Commons

 

Das primeiras eleições democráticas, em 1999, até a ascenção de Widodo, em 2014, a antiga elite política formada à sombra da ditadura de Suharto governou o país. O presidente Abdurrahman Wahid (1999-2001) representou o PKB, partido islâmico oriundo do antigo PDD. Sua vice e sucessora na presidência, Megawati Sukarnoputri (2001-2004), filha de Sukarno, representou o PDI-P, uma derivação do antigo PDI. O sucessor, Susilo Bambang Yudhoyono (2004-2014), um general retirado, representou o Partido Democrático (PD), cujas raízes também se encontram no PDI.

A meteórica ascenção de Widodo refletiu o esgotamento das lideranças cultivadas na estufa da “Nova Ordem”. Tal como Sukarnoputri, Widodo pertence ao PDI-P. Contudo, aos contrário de todos os antecessores, ele não surgiu no interior dos tradicionais clãs familiares de políticos ou militares. De empresário no ramo de mobiliário, Widodo elegeu-se à prefeitura de Surakarta, em 2005, e ao governo de Jakarta, em 2012. Seu triunfo na eleição presidencial de 2014, obtido por meio de uma campanha de fortes tons reformistas, acendeu uma forte chama de esperança e valeu-lhe a alcunha de “Obama indonésio”. Mas, de lá para cá, a desilusão espalhou-se entre seus aderentes da primeira hora.

 

A maldição do passado

Há cinco anos, Widodo também enfrentou Subianto, um dos comandantes militares envolvidos na repressão às manifestações de 1998 contra Suharto. Era o futuro contra o passado. A história eleitoral repetiu-se, mas a disputa esvaziou-se de boa parte de seus significados simbólicos.

Antes do terceiro mês de seu primeiro mandato, Widodo anunciou que a Indonésia experimentava uma emergência nacional derivada do tráfico de drogas e assinou as ordens para uma série de fuzilamentos de traficantes. Apesar de protestos internacionais generalizados, oito condenados foram executados, entre os quais um brasileiro. Com isso, o presidente desviava as atenções das verdadeiras urgências nacionais e, também, de suas próprias promessas eleitorais de revisão dos crimes contra a humanidade da “era Suharto”.

Na sequência, Widodo cercou-se de militares da velha guarda e nomeou o retirado general Wiranto, antigo auxiliar direto de Suharto, para o posto estratégico de ministro da Segurança. Sob o comando de Wiranto, o Kopassus, um grupo de forças especiais realizou diversos sequestros de ativistas atuantes nos protestos contra a ditadura de Suharto.

O passado contamina o presente. Nos dois últimos anos, prisões de ativistas de oposição, sob diversos pretextos, mancharam as credenciais democráticas do presidente. Em março, um professor de sociologia foi preso por entoar uma canção célebre de protesto contra as forças armadas, como reação a um plano de instalação de escritórios militares em instituições civis. O sistema legal indonésio vai perdendo sua neutralidade, passando a obedecer a imperativos políticos.

A marcha autoritária não parte sempre do presidente, mas beneficia-se de seu silêncio. O ministro da Defesa definiu os LGBT como uma ameaça “mais mortífera que a guerra nuclear”, enquanto a associação psiquiátrica nacional classificava a homossexualidade como uma doença mental. Sob uma nuvem cada vez mais pesada de intolerância religiosa, os parlamentares engajaram-se num debate sobre projetos de lei de proibição do sexo gay. Os ventos do quase vizinho Brunei parecem soprar na direção da Indonésia.

Mesquita Istiqlal, em Jakarta

Mesquita Istiqlal, em Jakarta

Widodo não flerta apenas com a velha guarda militar, mas também com líderes religiosos que se inclinam ao fundamentalismo. O vice de sua chapa é Ma’ruf Amin, um clérigo conservador que fez campanha pelo encarceramento de Ahok, um ex-governador de Jakarta falsamente acusado de blasfêmia contra o Islã, e lamentou a decisão da Corte Suprema de vetar a proibição do sexo gay. A Indonésia não faz parte da lista de Estados que patrocinam a homofobia. Mas, por quanto tempo a liberdade resistirá à crescente pressão do establishment religioso? 

Nos debates eleitorais, esperava-se que Widodo trouxesse à luz o passado de violações de direitos humanos de seu concorrente. O presidente, porém, manteve pesado silêncio sobre o tema. Tudo indica que, definitivamente, ele fez as pazes com a elite política tradicional e almeja governar ao lado dos militares e dos clérigos islâmicos. “Democracia dirigida”?

 

 

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