SOB A SHARIA DAS DITADURAS

 

Demétrio Magnoli

1 de abril de 2019

 

A Sharia, lei islâmica, serve como pretexto para ditaduras exercerem controle social. Na Arábia Saudita, a repressão contra as mulheres sofre contestação crescente – e a monarquia absoluta dá um pequeno passo atrás. Em Brunei, pelo contrário, o sultão dá um passo à frente, radicalizando a repressão contra os gays.

Eman al-Nafjan, Aziza al-Yousef e Roqaya al-Mohareb foram libertadas provisoriamente, sob fiança, em 28 de março. As três ativistas sauditas, junto com outras oito, haviam sido presas em maio de 2018, pouco antes do reconhecimento do direito de mulheres dirigirem veículos. Há sinais da próxima libertação condicional das demais.

Riad, 15 de novembro de 2018. Mulheres sauditas vestem suas abayas pelo avesso, em protesto contra a lei que as obriga a usá-las em todos os lugares públicos

Riad, 15 de novembro de 2018. Mulheres sauditas vestem suas abayas pelo avesso, em protesto contra a lei que as obriga a usá-las em todos os lugares públicos

As 11 destacaram-se na vitoriosa campanha contra a proibição de dirigir. Elas enfrentam processo, sob a acusação de “atividade coordenada para minar a segurança, a estabilidade e a paz social do reino”. A prisão e o processo judicial em curso devem ser lidos como uma clara mensagem da monarquia. A Casa de Saud está dizendo que as mulheres podem dirigir, mas não criticar ou reivindicar direitos. No fundo, está dizendo que a “paz social do reino” apoia-se no silêncio de mulheres e homens. E, sobretudo, que não se deve esquecer da lição fundadora: no reino, não existem cidadãos, mas apenas súditos.

Lynn Maalouf, dirigente da Anistia Internacional para o Oriente Médio, registrou: “esse é um passo muito retardatário, pois essas mulheres não deveriam, em primeiro lugar, ter sido presas e suas libertações certamente não deveriam ocorrer em bases temporárias”. Na sequência, denunciou os maus-tratos e ameaças que as ativistas sofreram na prisão e exigiu a retirada de todas as acusações. As 11 relatam espancamentos, eletrocuções e afogamentos simulados conduzidos por agentes penitenciários mascarados.

A libertação provisória constitui nítido recuo do regime, acuado por pressões internacionais desde o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em outubro de 2018, por agentes sauditas, no consulado do reino em Istambul (Turquia). Dezenas de países, inclusive os 28 integrantes da União Europeia, solicitaram oficialmente a soltura das ativistas. O caso delas foi discutido com as autoridades sauditas pelo secretário de Estado americano, Mike Pompeo, e pelo ministro do Exterior britânico, Jeremy Hunt, em visitas recentes a Riad.

O recuo, porém, parece bastante limitado. Nas sessões do tribunal, em Riad, é proibido o ingresso de diplomatas, observadores independentes e jornalistas que trabalham para veículos estrangeiros. O tribunal emitiu um comunicado negando a exigência de retirada das acusações: “o processo continua, até que se alcance o veredicto final”.

 

Morte por apedrejamento

O sultanato de Brunei, localizado na porção norte da ilha de Bornéu, no Sudeste Asiático, faz parte da lista de países nos quais há forte perseguição contra a comunidade LGBT. O capítulo 22 de seu Código Penal prevê pena de até dez anos de prisão para os que travarem relações sexuais “contra a ordem da natureza”. Mas, no mesmo dia da libertação das três ativistas sauditas, o sultanato anunciou uma nova punição para os “crimes” de sexo gay e adultério: a morte por apedrejamento.

A sinistra novidade faz parte de uma reforma geral do código penal baseada na implementação da Sharia. Além da pena de morte para gays e adúlteras, a reforma prevê a amputação de mãos e pés de condenados pelo crime de roubo. O sultão Hassanal Bolkiah, que ocupa o trono desde 1967 e é um dos mais ricos chefes de Estado, com fortuna pessoal estimada em US$ 20 bilhões, saudou o novo código como uma “grande conquista”.

Brunei foi colônia britânica até 1984 e conserva fortes laços com o Reino Unido, que mantém 2 mil soldados estacionados no país. As leis anti-LGBT têm origem colonial, mas servem perfeitamente aos propósitos de controle social da monarquia. A introdução da Sharia, anunciada em 2013, radicaliza as punições a uma série de comportamentos classificados como criminosos. O novo código penal será aplicado exclusivamente a muçulmanos, que perfazem dois terços da população do país.

Penny Mordaunt, ministra britânica para o desenvolvimento internacional, condenou a iniciativa do sultanato: “Ninguém deve ser submetido à pena de morte devido à identidade de quem ama. A decisão de Brunei é bárbara e o Reino Unido ergue-se ao lado da comunidade LGBT e daqueles que defendem seus direitos.” E concluiu: “os direitos LGBT são direitos humanos”.

A ministra protestou, mas Paul Scully, enviado comercial britânico para Brunei, permaneceu calado. Scully visitou o sultanato, rico em petróleo, em outubro de 2018, estabelecendo negociações para um tratado de comércio. Até o momento, ele segue surdo aos defensores dos direitos LGBT, que pedem a sua interferência junto ao sultão. Ao que parece, apesar de Mordaunt, Londres está disposta a colocar o petróleo acima dos direitos humanos.

 

Sharia, democracia e islamofobia

Arábia Saudita e Brunei estão entre os exemplos frequentemente mencionados por intelectuais que sustentam a tese da incompatibilidade fundamental entre o Islã e a democracia. Figuras como o cientista político americano Samuel Huntington (1927-2018), autor d’O choque de civilizações, de 1996, e o historiador britânico Bernard Lewis (1916-2018), autor de O que deu errado?, de 2002, argumentam que a “civilização islâmica” é um conjunto ancorado irremediavelmente no passado, avesso à mudança e à modernidade. Ou seja, basicamente irreformável.

A Sharia ocupa lugar destacado na argumentação dos “guerreiros de civilizações”. A lei religiosa islâmica seria inerentemente injusta, por não ser codificada, sujeitar-se a interpretações arbitrárias e rejeitar o princípio da igualdade entre muçumanos e não-muçulmanos e entre homens e mulheres. A resposta a isso já foi oferecida por diversos especialistas no Islã, entre os quais Nader Hashemi, diretor da Escola de Estudos Internacionais da Universidade de Denver. Ele sustenta que, precisamente por estar aberta à interpretação humana e histórica, a Sharia pode ser reconciliada com a democracia.

Muhammad Abduh (1849-1905), jurista islâmico egípcio, defensor da modernização do Islã e dos direitos das mulheres

Muhammad Abduh (1849-1905), jurista islâmico egípcio, defensor da modernização do Islã e dos direitos das mulheres

Hashemi sabe que a missão não é banal. “Qualquer democracia muçulmana emergente terá que se engajar na monumental tarefa de adaptar e modificar a Sharia de modo a poder conciliá-la com os valores democráticos contemporâneos e os padrões internacionais de justiça”. Mas, além de acadêmicos e juristas que mostram caminhos nessa direção, existem ilustrações práticas de países muçulmanos democráticos, como a Indonésia e a Tunísia.

O Islã, explica Hashemi, não se distingue essencialmente das demais grandes religiões. Isso significa que, ao contrário do que assegura o pensamento islamofóbico, experimenta evolução, transformação e desenvolvimento: “o Islã não existe em abstrato, mas é constantemente interpretado por muçulmanos que vivem em circunstâncias históricas específicas”. Ou, nas palavras de Ebrahim Moosa, professor na Universidade de Notre Dame (Indiana, EUA), citadas por Hashemi: “Nunca vi o Islã andando pela calçada, mas vi muçulmanos caminhando por elas”.

Os crimes islamofóbicos, como o atentado em Christchurch, derivam precisamente da crença de que os muçulmanos seriam essa suposta entidade monolítica chamada Islã. Num paradoxo apenas aparente, ditaduras como a monarquia saudita ou o sultanato de Brunei invocam representar o Islã quando impõem uma interpretação ossificada da Sharia para exercer controle sobre as sociedades nacionais. Nesses casos, as mulheres e os LGBT são as vítimas mais evidentes da instrumentalização da religião com finalidades políticas.

 

 

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