O dicionário Merriam-Webster define antissemitismo como “hostilidade ou discriminação aos judeus como grupo religioso, étnico ou racial”. A definição genérica nasce de um longo percurso histórico no qual a aversão aos judeus assumiu diferentes formas.
Há registros de aversão aos judeus nas antigas civilizações grega e romana em tempos pré-cristãos. Mas, nesse caso, o preconceito organizava-se em torno do fator étnico. De fato, o etnocentrismo é traço característico dos mais diversos povos, ao longo da história. Por isso, nada há de singular na hostilidade ancestral aos judeus, que dificilmente poderia caber em definições mais rigorosas de antissemitismo.
O advento do cristianismo e da Igreja Católica produziu a forma mais antiga de antissemitismo, que evoluiu durante a Idade Média e persiste até nossos dias. O antissemitismo de natureza religiosa acusa os judeus de serem os assassinos de Cristo. Sob esse formato, o ódio aos judeus funcionou como poderosa ferramenta política, servindo aos propósitos de papas e governantes.
Jerusalém, século XIX
Sob o Islã, a situação dos judeus conheceu oscilações no tempo e no espaço.
Nos califados, não é difícil citar cenários de tolerância religiosa, de amena discriminação ou de aberta perseguição. A Pérsia muçulmana do século XVI praticou uma espécie de apartheid contra os judeus, que eram considerados impuros e obrigados a viver em guetos. No século XIX, em países muçulmanos, disseminou-se a prática do apedrejamento de judeus por crianças e jovens. Contudo, relatos da Jerusalém do final daquele século dão conta de uma amistosa convivência entre árabes, muçulmanos ou cristãos, e judeus sefaraditas.
O antissemitismo ganhou tração no mundo muçulmano especialmente desde a década de 1930, marcada por sangrentos conflitos entre árabes e judeus imigrantes no mandato britânico da Palestina. Depois da fundação de Israel (1948), o antissemitismo adquiriu força de política estatal em inúmeros países muçulmanos, servindo para legitimar os governantes diante do povo. Daí surgiu o discurso da negação do Holocausto, bastante difundido por governos e mesquitas em alguns países muçulmanos.
No Ocidente do século XIX, o antissemitismo adquiriu colorações raciais. O chamado “racismo científico” propiciou a classificação dos judeus como raça. O nacionalismo utilizou-se da carta racial para promover perseguições aos judeus. A identificação de um “inimigo interno”, uma quinta-coluna, servia para reforçar o controle político dos governantes e para desviar as insatisfações sociais. No Império Russo, a polícia política fabricou um relato que se tornou célebre: Os protocolos dos Sábios do Sião. A falsificação policial conta a história de uma conspiração dos judeus para dominar o mundo por meio do controle sobre as finanças, os meios de comunicação e as escolas. O nazismo conduziu o antissemitismo racial às suas mais terríveis consequências.
Edição britânica dos “Protocolos”, de 1923
Auschwitz secou a fonte da narrativa anti-judaica tradicional. A abertura dos campos de extermínio nazistas revelou a extensão do Holocausto (Shoa) e cobriu de vergonha os arautos do ódio aos judeus. A Declaração Universal dos Direitos Humanos nasceu da exposição do horror dos campos nazistas.
Naquela intersecção histórica, o antissemitismo mudou de pele. “As pessoas reprimiram-se por algum tempo”, explicou Ken Jacobson, da Liga Anti-Difamação, “mas, então, apareceu essa coisa conveniente: o Estado de Israel”. O antissemitismo do pós-guerra é um discurso que não ousa dizer seu nome. No lugar da difamação explícita dos judeus, ele opera pela negação do direito à existência do Estado judeu.
Quando Auschwitz começou a se apagar no passado, o tema da conspiração judaica mundial ressurgiu, tanto pela esquerda quanto pela direita.
Atribui-se ao social-democrata alemão August Bebel (1840-1913) o alerta: “O antissemitismo é o socialismo dos idiotas”. Contudo, um século depois da sua morte, diversas correntes de esquerda restauram antigos discursos anti-judaicos, recobrindo-os com o manto do anti-sionismo. Na Grã-Bretanha, uma crise eclodiu no Partido Trabalhista, como fruto de sistemáticas manifestações anti-judaicas de sua ala esquerda, que sustenta o líder Jeremy Corbyn. Já na América Latina, essa versão contemporânea do antissemitismo ganhou livre curso em partidos de esquerda, praticamente sem causar escândalo.
Viktor Orban com o livro A estranha morte da Europa, do jornalista britânico Douglas Murray. O livro alega que a Europa cristã agoniza, envenenada pela imigração muçulmana
A direita nacionalista europeia tenta ocultar sua pesada herança antissemita substituindo os judeus pelos muçulmanos nas suas narrativas sobre o “perigo externo”. Uma exceção notória, porém, é a Hungria, onde o xenófobo primeiro-ministro Viktor Orban clama contra a “invasão de muçulmanos” enquanto utiliza a figura do financista George Soros para evocar o “judeu sem pátria”, reavivando a lenda d’Os protocolos dos Sábios do Sião.
Nesses casos, como em tantos outros, o antissemitismo oculta-se em disfarces mais ou menos eficientes.
Como reação ao advento dos discursos anti-judaicos subterrâneos, a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (International Holocaust Remembrance Alliance, IHRA) elaborou a seguinte “definição operacional”:
“Antissemitismo é uma determinada percepção dos judeus que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas contra indivíduos judeus e não-judeus e/ou suas propriedades e contra instituições comunitárias e instalações religiosas judaicas.”
A definição da IHRA é acompanhada por 11 exemplos ilustrativos. Entre eles, contam-se:
No Partido Trabalhista britânico, círculos da esquerda associados a Corbyn tentaram evitar a adoção da definição da IHRA sob a alegação de que ela restringiria a crítica aos governos israelenses.
Imagem frequente do discurso antissemita atual: o estandarte nazista surge atrás da bandeira de Israel
Contudo, isso é patentemente falso. A crítica às políticas de Israel não constitui antissemitismo, exceto quando se solicita de Israel algo que jamais se solicitaria de outras nações democráticas. Ou quando, da crítica ao governo, se salta à negação do direito de Israel a existir como Estado judaico.
No debate sobre o antissemitismo no interior do Partido Trabalhista britânico, registrou-se importante inflexão em setembro de 2018, quando o comitê nacional adotou a definição da IHRA na sua totalidade, inclusive os 11 exemplos. A decisão rompeu as resistências da ala esquerda e exigiu a rejeição formal de uma “clarificação” proposta por Corbyn.
Um ano antes, em setembro de 2017, a Alemanha adotou oficialmente a definição da IHRA. Finalmente, em fevereiro de 2019, o presidente Emmanuel Macron reagiu à sucessão de atos antissemitas na França anunciando que também proporia a seu governo a adoção da definição. “Anti-sionismo é uma das formas modernas de antissemitismo”, declarou Macron, fechando uma passagem subterrânea pela qual ainda transitam os arautos do ódio aos judeus.
Δ
Quem Somos
Declaração Universal
Temas
Contato
Envie um e-mail para contato@declaracao1948.com.br ou através do formulário de contato.
1948 Declaração Universal dos Direitos Humanos © Todos os direitos reservados 2018
Desenvolvido por Jumps