A IDADE MÉDIA ESTÁ NA MODA

 

Elaine Senise Barbosa 

 

Em 2009 estive na Escócia. Não era difícil encontrar pessoas falando sobre a identidade escocesa, para geralmente acabar defendendo a ruptura com o Reino Unido. A história dos clãs ancestrais e seus kilts (aquela saia xadrez cujas diferentes padronagens representam os diferentes clãs) era onipresente. Até aí, tudo bem, estávamos no campo das mitologias nacionalistas. Surpresa mesmo eu fiquei quando notei jovens, com aquele aspecto meio punk, meio hooligan, tatuagens, piercings e coturnos, usando kilts! Ora, ora, eis que na Era da Globalização e do multiculturalismo aquilo que estava organizado na estante do folclore saltava para a vida cotidiana…

Anos depois, em Barcelona, numa Catalunha já bem agitada pelo separatismo, caminhava no Bairro Gótico, perto da catedral, e cheguei a uma praça semi-fechada, formada pelos muros altos do casario medieval e para onde uma música me levou. Não era exatamente coisa “para turista”; era um encontro a céu aberto, dedicado à preservação das músicas, instrumentos e danças catalãs. Os frequentadores não estavam vestidos “tipicamente”, o que facilitava o envolvimento dos visitantes e demonstrava que, sim, aquelas pessoas sabiam dançar, com a mesma naturalidade que você espera que um brasileiro sambe. O curioso era a faixa etária do público, entre 20 e 40 anos, gente que estava ali espontaneamente, em nome de uma suposta identidade ancestral. 

O sucesso da série Game of Thrones evidenciou o retorno do pensamento romântico no mundo da globalização

Por volta de 2012, entra no meu radar uma nova série de TV: Game of Thrones. Descubro que a trama é tipo um Senhor dos Anéis, com a pretensão de ter alguma inspiração na história da Inglaterra, pois a rivalidade entre Lannisters e Starks remeteria à disputa entre Lancasters e Yorks na Guerra das Duas Rosas (1455-1485), a guerra que unificou definitivamente a Inglaterra. Com o sucesso e a continuação da série, a trama perdeu um pouco essa conexão histórica, ao mesmo tempo em que revelava, por meio de – como direi?… atos falhos? –, conexões com a atualidade que não escaparam à crítica, como o fato de a Grande Muralha, que é permanentemente vigiada, metaforizar o temor contra o Outro, invasor e inimigo, um morto-vivo, um imigrante! Como sabemos, em junho de 2016, os ingleses escolheram o Brexit, embalados por um discurso meio saudosista, meio xenófobo, num país que ainda hoje se gaba do finado Império. 

Na esteira de G.O.T. veio Viking, trazendo a Idade Média pré-cristã dos países escandinavos. Cabe a pergunta: Estamos no campo das modas com as quais a cultura pop periodicamente nos brinda para vender DVDs, camisetas, celebridades e likes? Ou existe algo de mais significativo, perceptível na moda, que é a assimilação estética de signos quase caricaturais relacionados a um imaginário histórico e político? O que querem dizer todos esses homens barbados, rabos de cavalo, cabeças semi raspadas e tatuagens?!?

Enquanto isso, na Noruega, a pequena cidade de Gudvangen realiza, há uma década, um festival medieval do qual toma parte toda a população, e um número crescente de turistas. Os locais se mudam para cabanas, vestem-se, alimentam-se, competem como se vivessem na era viking – tem até um mercado de escravos (e, claro, os forasteiros são os preferidos para o papel). O sucesso tem levado outras cidades a fazerem seus próprios festivais. O que é esse revival medieval?

Quando os indícios são muitos e se estendem no tempo, sinal de que algum fenômeno social está ocorrendo. O que temos em comum nos exemplos acima? A produção de um imaginário agregador, baseado em supostas culturas ancestrais, que no caso europeu significa retroceder aos reinos medievais. Tal movimento – realizado tanto por partidos políticos nacionalistas, quanto por pessoas comuns que se sentem atraídas por essas imagens projetadas – remete à nossa memória o Romantismo e seus estreitos vínculos com a ideologia nacionalista.

Festival medieval de Gudvangen, na Noruega

Os românticos idealizavam a Idade Média, por ser a época de formação dos reinos e nações europeias. Esse apelo à emoção provocada pelos vínculos ancestrais – maternos – era também uma resposta ao universalismo apregoado pelas Revoluções Liberais que marcaram o Ocidente no século XIX e que se baseavam na crença em uma Humanidade comum, a ser criada pela Razão e pela Lei (tudo com maiúscula mesmo!).

O nacionalismo romântico exaltou as diferenças entre nações, raças e culturas, para afirmar particularidades, defendê-las e tratar como inimigo quem as ameaçasse. Duas grandes guerras e o horror do nazifascismo foram suas obras-primas. 

Agora, século XXI, o liberalismo está de volta na fase batizada de Globalização. Novamente o mundo convive com níveis estupendos de riqueza e potencialidades tecnológicas contrapostas a um dramático aumento das desigualdades sociais, além da questão ambiental, que reforça a utopia da vida na natureza harmônica. Hoje como ontem, contra o Liberalismo, Nacionalismo. É clara a relação entre a crise econômica desencadeada em 2008, especialmente nos EUA e Europa, e a ascensão dos partidos nacionalistas de direita, xenófobos e, às vezes, abertamente racistas. 

Há nostalgia no ar. Pessoas se queixam de não reconhecerem mais sua vizinhança, “invadida” por imigrantes. Enquanto minorias historicamente oprimidas tornam-se pró-ativas, o “homem branco ocidental” sente-se acuado e reage. Se o multiculturalismo está certo, se a política não prioriza a noção de igualdade civil e cada ação deve ser pensada em termos de grupos identitários, então esse revival da Idade Média pode ser lido como um Neo-Romantismo, um movimento escapista que se refugia no passado mítico, no qual todos reconheceriam seus vizinhos, com quem compartilhariam os mesmos valores. Esses saudosistas só não podem esquecer que naquela época, forasteiros eram “bárbaros”, a força era a fonte do “Direito” e, se necessário, os inimigos eram exterminados em batalhas sangrentas. Sem ajuda da Mãe dos Dragões.     

  

(Esse artigo foi publicado originalmente em 2018, em Mundo – Geografia e Política Internacional)

 

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