Vivemos em um tempo de colapso do futuro. A mudança climática, os câmbios geopolíticos que tensionam o mundo e as transformações tecnológicas que produzem efeitos ameaçadores levam ao saudosismo em torno do passado, em vez de apostas em um futuro melhor.
A extrema direita soube captar os novos ventos da história, catalisando diversos mal-estares sociais em torno de uma narrativa nacionalista reacionária, em que cada um idealiza um passado no qual os problemas de hoje não teriam existido.
Essa tendência vai ao encontro da falta de rumo da esquerda tradicional, que foi perdendo, literalmente, sua base de apoio entre os trabalhadores industriais e, sobretudo, a capacidade de elaborar e avançar propostas que atualizem seu projeto de sociedade, no qual o capitalismo é domesticado pelos valores democráticos de inclusão e justiça social. E a consequência foi a fragmentação das demandas progressistas em torno de grupos identitários, em que cada um se fecha em reivindicações específicas, muitas vezes associadas a injustiças sofridas no passado.
A esquerda progressista dividiu-se em muitas pautas e perdeu a capacidade de pensar um futuro comum, pois há uma permanente disputa pela hierarquia das “dores”
O passado e o conhecimento histórico são incontornáveis. O passado é formativo de nossa individualidade, e o conhecimento histórico amplia nossa compreensão do mundo. Mas eles não nos dizem quem somos e quais são nossos valores e interesses. Pelo contrário, é a partir de nossos valores e interesses que nos apropriamos de uma versão de nosso passado e da história. Supor o contrário é transformar o passado e a história em um álibi para evitar exercer nossa liberdade de escolher o futuro que desejamos.
Os trabalhos dos historiadores — todos eles, quando realizados com rigor — constituem uma contribuição relevante para o conhecimento. Eles permitem ampliar nosso horizonte sobre quem somos e como chegamos ao momento atual, ensinando-nos sobre os dramas e realizações da humanidade e de suas diversas culturas e sociedades.
Sendo o passado um componente central na vida dos diversos grupos sociais, os historiadores contribuem com material para reflexão — por vezes alimentando narrativas políticas, mas também oferecendo um olhar crítico, mostrando como a história está permeada por acontecimentos inesperados, mas também que podemos ser agentes ativos na construção do futuro.
Primeira pergunta: a História nos indica o que é certo ou errado?
Clio, a musa da História
A resposta é: não. Na pesquisa histórica, qualquer posição ideológica — e enfatizo: qualquer uma — poderá encontrar argumentos a favor de suas crenças e contra as de seu opositor.
O ponto de partida de toda visão do passado são as escolhas de valores que fazemos a partir de nosso presente. Muitas dessas escolhas estão influenciadas por ideologias que usam o passado para se autocompreender e justificar, mas essas ideologias nos influenciam porque são parte e produto do repertório cultural do tempo presente, do qual fazemos parte. Afirmação que inclui tanto as identidades coletivas que remontam suas crenças a um passado remoto quanto os movimentos sociais mais recentes.
O sentido e a prática de crenças tradicionais não deixam de ser atualizados pelos valores e contextos sociais do presente. Por maior que seja o esforço de religiões e ideologias integralistas para evitar as realidades do mundo atual, elas têm como referência o mundo que condenam e desejam destruir.
Igualmente os movimentos que têm como ponto de partida reivindicações fundadas no passado emergem diretamente dos valores e possibilidades do presente. A escravidão existiu durante milênios, mas sua crítica só se tornou possível quando ideais de liberdade e igualdade universal passaram a ser mobilizados na luta pela abolição. Isso vale igualmente para as lutas contra a opressão das mulheres, o racismo, a homofobia ou qualquer outra forma de dominação e injustiça.
Primeira conclusão: nunca devemos perder de vista os valores atuais a partir dos quais construímos nossas visões do passado. Não é o passado que orienta nossas opções, mas nossas vidas no presente e os futuros desejáveis.
Segunda pergunta: isso significa que o passado e o trabalho do historiador são irrelevantes?
Obviamente que não. A memória, seja individual ou coletiva nos faz humanos. Elas não podem ser eliminadas. O desafio, individual e coletivo, é não transformá-las em prisões que não nos permitem enxergar os desafios do presente.
As identidades coletivas se constituem, em sua grande maioria, em referência a um passado comum em torno do qual se elabora uma memória e identidade coletiva. A referência a esse passado fortalece nos membros do grupo o sentimento de ser parte de uma comunidade enraizada no tempo, reforçando os elos entre os membros em torno de uma trajetória que os transcende como indivíduos.
Contudo, a narrativa construída pelas identidades coletivas é sempre uma versão simplificada — e mais ou menos mitificada — do passado, e não deve ser confundida com a versão dos historiadores, que é múltipla, pois fundada nas exigências do método científico. A relação que se estabelece entre memoria coletiva e História é tensa, pois constituem diferentes esferas de produção de saberes, o que exige o respeito ao espaço de cada uma.
Diferenças que não negam os laços que ligam o trabalho do historiador com as identidades coletivas. O historiador não deixa de ser influenciado pelas perguntas que a sociedade, em sua diversidade, se coloca, podendo alimentar as diversas narrativas, oferecer experiências de erros e acertos cometidos, assim como fornecer argumentos persuasivos que podem ser úteis no debate público.
Mas, sobretudo, o trabalho do historiador pode contribuir, embora não seja sempre o caso, para limitar a transformação do passado em trauma ou totem. Em trauma, quando eventos do passado impedem a compreensão do presente e dos futuros possíveis; em totem, quando se transforma num sistema de pertencimento que nos opõe a outros, convertidos em eternos inimigos marcados a ferro e fogo pelos eventos que, tendo acontecido, não podem ser mudados.
Segunda conclusão: o passado, como componente na construção de sentido e de formação das identidades coletivas é incontornável. Ele indica como chegamos onde nos encontramos, mas não o que queremos chegar a ser. E a História pode contribuir relativizando o passado cristalizado em ideologias, sinalizando que o futuro é sempre um espaço de liberdade.
Terceira pergunta: o passado nos indica o que fazer?
O que aconteceu no passado não define o que devemos fazer na atualidade e no futuro. Como indicamos anteriormente, é possível encontrar fatos no passado que justifiquem as diversas posições políticas no mundo atual. Em todos os casos partiremos de escolhas feitas no presente e de uma visão de futuro desejável. Portanto, devemos sempre lembrar que nossa percepção do mundo é definida a partir do presente e de suas possibilidades, e que o futuro desejável nunca será um retorno ao passado — quase sempre idealizado —, inclusive por se tratar de um mundo onde os valores que hoje nos orientam ainda não existiam.
A escravização de seres humanos ocorreu durante milênios, construiu nações e forjou novas culturas. O racismo é uma herança detestável a ser combatida, mas as pessoas de hoje não podem ser responsabilizadas por aquelas práticas
Os negros foram trazidos à força e escravizados nas Américas. Isso obviamente não significa que a solução seja um retorno à África. As fronteiras da grande maioria dos Estados nacionais se constituíram como produtos de guerras ou posições de força. Sem voltar ao período da conquista, na região mais pacificada do mundo — a América Latina — temos, por exemplo, que o Chile anexou vastos territórios da Bolívia e do Peru; em 1903, o Brasil comprou o Acre da Bolívia por um valor irrisório, após o conflito causado pela entrada de seringueiros brasileiros; e os Estados Unidos anexaram extensa parte do território mexicano. Na Europa, praticamente todas as fronteiras resultaram de guerras — algumas recentes, como a Segunda Guerra Mundial. A situação na Ásia e na África é semelhante ou ainda mais complexa. O retorno a situações anteriores deflagraria uma Terceira Guerra Mundial.
Terceira conclusão: O passado não é um manual do que fazer. Seus ensinamentos devem ser tratados com as devidas precauções, pois a História também nos mostra que as sociedades se transformam, criando novas constelações e possibilidades. Pensar o futuro é sempre um ato de criatividade, a partir de nossos valores atuais e da idealização do mundo desejável. Eventos do passado podem nos inspirar e fortalecer nossas convicções, mas o futuro depende de nossos valores e criatividade.
Quarta pergunta: por que o passado ocupa um lugar expressivo nas formulações ideológicas e no debate político atual?
Enquanto a direita nacionalista reacionária sempre cultuou e idealizou o passado, essa certamente não era a perspectiva dos socialistas ou liberais, que acreditavam — cada qual à sua maneira — que o futuro traria uma vida melhor.
É difícil projetar um futuro coletivo benéfico quando a natureza e as ciências apontam para o contrário. A desesperança semeia o discurso reacionário
O atrativo atual dos discursos que valorizam o passado responde a um sentimento de colapso do progresso. A perda da crença no progresso é resultado de múltiplos fatores com peso variado em cada país: desde os que afetam diretamente a vida pessoal, como baixa mobilidade social ascendente e níveis de renda insuficientes para suprir necessidades e expectativas de consumo, até a perda de protagonismo no cenário geopolítico global e a ameaça de um futuro sombrio associado à crise climática.
A novidade política é o surgimento, no campo progressista, de movimentos sociais que se concentram no passado em função de demandas de reconhecimento por injustiças sofridas. Estas demandas são compreensíveis, mas colocam um enorme desafio para construir projetos comuns de sociedade.
Os traumas do passado são reais e são atualizados por experiências vividas no presente. Mas traumas e narrativas não podem ser dissociados. As narrativas podem ser transformadas em ideologias de vitimização. A vitimização dissocia e opõe as vítimas aos outros, isolando-as e bloqueando a possibilidade de construir um campo discursivo que olhe para um horizonte comum.
Os passados são irreconciliáveis e não negociáveis. Somente em torno do futuro é possível superar ressentimentos e construir amplos consensos em torno de projetos voltados para o bem comum e para a construção de sociedades desejáveis.
Foi a partir da afirmação dos valores do presente voltados à construção de sociedades mais justas que o movimento dos trabalhadores e o movimento feminista obtiveram avanços importantes; bem como difundiu-se a filosofia de Direitos Humanos em resposta ao nacionalismo e ao racismo que conduziram à inúmeras guerras, propondo soluções que não estavam inscritas no passado.
Quarta conclusão: Não se trata de ignorar o passado, mas o fundamento da convivência em democracia exige a afirmação de valores comuns que se projetam no futuro como horizonte desejável, não permitindo que o passado nos cegue e paralise.
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