O homem que clama pelo Nobel da Paz está conduzindo seu próprio país para um autoritarismo militarista e perigoso.
Relevantes trabalhos históricos sobre o processo de conversão de sociedades abertas em ordens políticas autoritárias demostraram como esse fenômeno não ocorre da noite para o dia, num ato de golpe de força. Pelo contrário, o problema está nas ações cotidianas, nas pequenas mudanças de regras e nas suas repetições, no amortecimento dos sentidos e dos valores. A confusão sempre favorece quem deseja concentrar poder. E é pretexto para o uso da força.
E agora observamos, nos Estados Unidos, o uso dessas mesmas táticas por Donald Trump e sua entourage. A diferença é que observamos os fatos em tempo real, pelos jornais, sem saber exatamente como se desenrolarão os acontecimentos, enquanto os analistas do passado pesquisaram nos arquivos históricos e legislações consolidadas sobre uma história já concluída.
O que importa é que para que o mecanismo autoritário funcione é preciso encontrar um “inimigo público” que seja assim entendido por uma ampla parcela da sociedade, tema amplamente discutido pela filósofa Hannah Arendt em Origens do Totalitarismo. Porque é da natureza dos regimes tirânicos, de direita e de esquerda, elegerem sucessivos inimigos, numa sociedade cada vez mais vigiada.
É possível falar em democracia quando o direito ao dissenso é criminalizado?
Trump marcou o imigrante recente como “inimigo público”: assassinos, estupradores, traficantes, viciados e terroristas, a escória da humanidade que está ameaçando a vida pacífica dos cidadãos. Gente que não merece ter nenhum direito assegurado, podendo ser presos, ameaçados, humilhados, deportados. Num país constituído essencialmente por imigrantes, até o direito de cidadania está ameaçado. Esse tipo de “guerra interna” justifica a militarização do espaço urbano e o progressivo controle das liberdades individuais.
Enquanto isso, a epidemia de opioides que toma conta do país – essa sim, produzindo as imagens dos zumbis espalhados por quadras inteiras nas cidades, afetando destacadamente as pessoas brancas das classes média e baixa, base do eleitorado trumpista -, esse descalabro nunca é objeto da atenção do presidente. Trump usa o fentanil para falar mal da China mas faz vistas grossas para a indústria farmacêutica nacional.
Trump acusa imigrantes de traficantes e traficantes de terroristas a fim de embaralhar leis e direitos para obter poderes cada vez mais discricionários. E conta com largo apoio da sociedade que compartilha dessa visão belicista da vida. Tentar converter parte desse apoio em força paramilitar faz parte do roteiro autoritário. O presidente age para evitar a contestação de seu poder como ocorreu em seu primeiro governo, quando os militares se recusaram a tomar parte nas disputas político-partidárias.
O recurso às forças da Guarda Nacional para atuar nos estados, mesmo contrariando a opinião de governadores e prefeitos, é um aspecto relevante a ser observado. Ironicamente, lembra o movimento do chavismo, especialmente sob Nicolás Maduro, na Venezuela, de armar civis a título de combater outro “inimigo interno”: a “burguesia imperialista”.
Primeiro houve o fortalecimento das atribuições do ICE (Departamento de Imigração e Alfândega) para prender e deportar imigrantes indocumentados, em ações realizadas por agentes mascarados e sem identificação visível. Cenas de perseguição a trabalhadores, estudantes e mães com crianças servidas pelo noticiário do horário nobre seguidas de imensos protestos em grandes cidades do país contra “o homem laranja que deseja ser rei”.
Descendentes de mexicanos protestam contra o tratamento que vem recebendo e são chamados de baderneiros e terroristas
Dia 10 de junho quase 5 mil soldados da Guarda Nacional foram enviados para Los Angeles para ajudar a conter as massivas manifestações contra a política anti-imigrante, protegendo os agentes do ICE e agindo como força de contenção. O governador da Califórnia, Gavin Newson protestou e recorreu à justiça, contestando a necessidade de tal intervenção.
A Guarda Nacional é uma milícia civil cuja origem remonta à própria ideia do federalismo e também à organização da sociedade civil para lidar com situações excepcionais, como grandes incêndios e furacões, por exemplo. Nos EUA, cada um dos 50 estados e a capital federal têm seu contingente da Guarda Nacional, constituída geralmente por moradores locais e operadas pelos governos estaduais.
Na briga jurídica, a Casa Branca invocou o Título 10 do Código dos Estados Unidos, que permite ao presidente convocar a Guarda Nacional contra riscos de invasão territorial, rebeliões internas e imposição de leis. E quando isso acontece, as tropas obedecem ao presidente e não ao governador. Trump invoca uma fictícia guerra interna para mobilizar civis armados a seu favor, embora seu intento inicial tenha sido derrotado na Corte de São Francisco.
Forças da Guarda Nacional foram essenciais para restabelecer a ordem na cidade de Nova Orleans atingida pelo furacão Katrina em 2005
Um novo capítulo começou em Washington D.C. no início de agosto, quando a Casa Branca anunciou que estava assumindo o controle sobre o Departamento de Polícia Metropolitana do distrito federal para combater a intolerável violência urbana que dominava a cidade. E imediatamente mobilizou 800 soldados da Guarda Nacional a fim de conter o que Trump chamou de “criminosos sanguinários” e “multidões de jovens selvagens”. Contudo, dados da polícia local indicam recuo dos crimes violentos no nível mais baixo em 30 anos.
A capital dos EUA é administrada de acordo com a Lei de Autogoverno (Home Rule), de 1973, que permite ao presidente assumir temporariamente o controle da polícia em Washington. Mas a federalização completa do distrito federal dependeria de aprovação no Congresso, algo bastante improvável depois da invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2022.
Nesse momento, cerca de 2.200 soldados da Guarda Nacional permanecem em Washington D.C. Quase 900 são do próprio estado, outros 1300 vieram da Virgínia Ocidental, Carolina do Sul, Louisiana, Mississippi, Tennessee, Ohio e Dakota do Sul. A Casa Branca já declarou que pretende mantê-los na cidade até o final deste ano. E acena com o direito a programas de benefícios militares como assistência médica e pagamento de moradia aos quais passam a ter direito após um certo período em serviço.
Em 14 de setembro a intervenção atingiu Memphis, Tennessee. Novamente invocou-se o crime fora de controle. Mas, nesse caso, o governador (republicano) apoiou a ajuda, apesar da oposição de outras autoridades locais, começando pelo prefeito (democrata). Também em Memphis os dados da polícia contrastam com o discurso alarmista do presidente: as taxas estão no nível mais baixo em 25 anos.
E fechando o mês de setembro, a convocação de 200 soldados da Guarda Nacional para atuarem em Portland, no Oregon, um estado que, ao contrário dos anteriores, tem população majoritariamente branca. O pretexto são manifestações de oposição, atribuídas pelo presidente a “terroristas domésticos”. Novamente a oposição estadual foi parar nas cortes e uma juíza federal suspendeu o envio das tropas pelo menos até meados de outubro, quando será julgado o mérito da questão.
Detalhe: todas as intervenções ocorreram em cidades ou estados governados pelo Partido Democrata.
Outubro começou sob o impacto da reunião convocada pelo Secretário de Guerra (depois da mudança do nome do Departamento de Defesa), Pete Hegseth, em 30 de setembro, com centenas de generais na – sublinhe-se – Universidade do Corpo de Fuzileiros Navais. Ali, mediante uma plateia certamente pasma, Hegseth criticou “generais gordos”, políticas de diversidade e inclusão e, sobretudo, exigiu fidelidade dos militares aos mandos políticos do Executivo – e não à Constituição e às leis!
O Secretário da Guerra e ex-comentarista da Fox News, Pete Hegseth é parabenizado por Trump após cobrar fidelidade política aos generais
Os generais também ouviram de Trump que a segurança pública no país é caótica e que muitas cidades são “inabitáveis”. Mas, o mais importante, o presidente dos Estados Unidos sugeriu “usar cidades perigosas como campos de treinamento para nossas Forças Armadas”!! Há mais de uma década estudiosos apontam para o novo militarismo urbano, que não por acaso tem Estados Unidos e Israel como principais artífices.
Além da Casa Branca, não parece haver grande celeuma no restante do país sobre uma situação interna com tal gravidade que justifique dar poderes tão amplos ao presidente, ainda mais quando ele se chama Donald Trump.
Mas, diz o ditado, “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. Serão mesmo capazes de resistir, os freios e contrapesos da democracia americana?
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