A cruzada de Donald Trump contra imigrantes irregulares converteu-se, no Dia 1, em guerra contra o direito à cidadania, tal como definido pela Constituição dos EUA. Na hora da posse, o presidente que retorna assinou dezenas de decretos. Um deles prevê o cancelamento do direito a cidadania americana de filhos de não-cidadãos que nasceram em solo dos EUA. No fundo, o decreto almeja revogar a 14ª Emenda da Constituição.
A 14ª Emenda da Constituição dos EUA, de 1868, faz parte das Emendas da Reconstrução, geradas pela abolição da escravidão
“Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e daí sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do estado no qual residem”. A 14ª Emenda foi adotada em 1868, logo após a Guerra Civil (1861-65). Junto com as de número 13 e 15, figura entre as Emendas da Reconstrução, destinadas a inscrever na Constituição a abolição da escravidão e suas consequências.
A cláusula que determina o direito à cidadania de todos os nascidos nos EUA anulou a decisão da Corte Suprema no caso Dred Scott v. Sandford (1857), que negava a cidadania a descendentes de escravos africanos nascidos em solo americano. Daquele momento em diante, os antigos escravos e seus descendentes tornavam-se cidadãos do país.
A primeira grande onda imigratória para os EUA desenrolou-se entre as décadas finais do século XIX e o primeiro quarto do século XX. O longo e decisivo período foi marcado pela tensão entre dois conceitos: nação de colonos ou nação de imigrantes? Diversas tentativas de proibir ou limitar a imigração de determinadas nacionalidades evidenciaram a força do sentimento nativista. Contudo, a 14ª Emenda oferecia uma resposta constitucional: segundo a lei, os EUA são uma nação de imigrantes.
Trump não pode mudar a Constituição por mero ato de vontade. Seu decreto atinge não apenas filhos de imigrantes indocumentados como, ainda, filhos de indivíduos que se encontram legalmente nos EUA, com vistos de trabalho, de estudo ou de turismo. Mas já está sendo contestado judicialmente por diversos estados americanos. No fim do caminho, a Corte Suprema é que decidirá sobre sua validade constitucional.
Nacionalidade e cidadania são figuras jurídicas distintas. A nacionalidade indica o país de nascimento de um indivíduo e, portanto, não depende de atos oficiais. O Artigo 15 da Declaração Universal de 1948 veta a retirada arbitrária de nacionalidade. Já a cidadania indica que um indivíduo é detentor dos direitos políticos e sociais garantidos pelas leis do país. Nos EUA, como em inúmeros outros países, a nacionalidade produz cidadania. Mas essa não é uma regra universal.
Há duas fontes diferentes de cidadania: o direito do solo (jus soli) e o direito do sangue (jus sanguinis). Na hora de seu decreto, Trump afirmou que os EUA seriam o “único país” no qual o local de nascimento garante cidadania. Falso: todos os países das Américas, com a solitária exceção da Colômbia, adotam integralmente o direito do solo. O Brasil adota o direito do solo.
O direito do solo é típico das Américas, pois as nações do continente são “países novos”, largamente constituídos pela imigração – e, em vários casos, pela transferência forçada de indivíduos africanos escravizados. Por outro lado, na Europa e na maior parte da Ásia e da África, predomina o direito do sangue ou regras mistas. Na França, por exemplo, o impulso político anti-imigração limitou o tradicional direito do solo. Já na Itália e na Alemanha, cuja tradição ancora-se no direito do sangue, introduziram-se regras que facilitam a obtenção da cidadania por nascimento.
O decreto de Trump traz os sinais do nativismo. É uma tentativa de reativar o debate do passado entre os conceitos de “nação de imigrantes” e “nação de colonos”. De certo modo, ele expressa uma cisão no interior do MAGA (Make America Great Again), o movimento da direita nacionalista liderado por Trump que tomou de assalto o Partido Republicano.
O MAGA está unido sob a bandeira da deportação em massa dos imigrantes indocumentados. O projeto de expulsar algo entre 11 milhões e 14 milhões de pessoas conduziria a crueldade do primeiro mandato de Trump a níveis inéditos. Provocaria um trauma social indescritível, com vastas consequências econômicas negativas. Mas apenas a parcela mais radical do MAGA é hostil à imigração em geral.
Donald Trump, eleito mais uma vez, tomou posse em 20 de janeiro de 2025. De saída, chutou a Constituição
O ponto sensível da propaganda de Trump é o termo “ilegal”. Pesquisa recente mostra que uma maioria de eleitores americanos apoia a deportação da totalidade dos “ilegais”. Mas Trump, bem como seu novo e poderoso aliado, Elon Musk, declararam que nada tem contra imigrantes legais. Tais declarações foram recebidas como desagrado pela vertente mais nativista do MAGA, que segue a estrela racista da “pureza de sangue”. O decreto sobre o direito à cidadania para filhos de não-cidadãos é um gesto do presidente na direção dessa vertente extrema de seu movimento.
No seu discurso de posse, Trump apresentou-se como o líder “salvo por Deus” de tentativas de assassinato para resgatar a nação da corrupção e do declínio. São essas palavras, tão características de uma personalidade autoritária, que explicam a rapidez com que o presidente investe contra a Constituição.
A alegação jurídica que acompanha o decreto busca reinterpretar o trecho da 14ª Emenda que faz referência a pessoas “sujeitas à jurisdição” dos EUA. Trata-se de algo que sempre foi interpretado como uma exclusão excepcionalíssima aplicada apenas a filhos de diplomatas estrangeiros nascidos nos EUA. Faz sentido: os diplomatas são representantes oficiais de terceiros Estados.
Os advogados da Casa Branca engajam-se, agora, na aventura de convencer os tribunais a ampliar a exceção para centenas de milhares ou até milhões de pessoas. Os juízes que aceitarem curvar-se frente a isso devem ser justamente rotulados como nativistas e racistas.
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