A UE E A EXTERNALIZAÇÃO DOS IMIGRANTES

 

Elaine Senise Barbosa

30 de setembro de 2024

 

A crise dos refugiados de 2015 impactou a política externa da União Europeia em dois pontos fundamentais. Primeiro, transferiu o problema da imigração para o campo da segurança. Segundo, adotou como estratégia o que está sendo chamado de “externalização”, ou seja, a transferência do problema para países não-europeus, que assumem o papel de barrar o avanço dos imigrantes.

O fluxo migratório rumo à Europa segue três rotas principais para cruzar o Mediterrâneo: a oriental, via Turquia e Bálcãs; a ocidental, via Marrocos; e a central, via Líbia ou Tunísia em direção à Itália e Malta. A política de externalização tem conduzido à negociação com governos autocráticos e com senhores da guerra na Líbia, Tunísia, Egito e Turquia com o objetivo de impedirem imigrantes e refugiados de alcançarem a Europa. Passados alguns anos, observa-se que, após uma redução inicial dos fluxos de migrantes, houve uma reorganização ainda mais estruturada de máfias explorando o contrabando e o tráfico de imigrantes. Nos últimos dois anos os números se aproximaram daqueles registrados em 2015.

Outro efeito da mescla securitização/externalização tem sido colocar as fronteiras meridionais da Europa na dependência dos interesses voláteis de seus “aliados”, governos autoritários ou meros senhores de guerra, conferindo-lhes uma capacidade de pressão considerável. Acordos para transferências de milhões de euros têm sido negociados nas últimas décadas para garantir que tais parceiros cumpram o papel de “guardiãos da fronteira”.

A externalização pretendia, ainda, eliminar do debate público o próprio tema da imigração, um dos principais responsáveis pela polarização política da última década, especialmente porque os defensores de políticas humanitárias cobram o compromisso com os valores éticos que alicerçam as sociedades europeias desde a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Dissonância de valores perigosa, que afeta a ordem interna das sociedades e é rapidamente apontada por governos de países do Sul como cinismo. 

Manifestantes pro-imigração

Existem centenas de organizações e milhares de pessoas na Europa que defendem tratamento humanitário para os imigrantes

A “Fortaleza Europa”

Antes da década de 1990, a conversa sobre imigração na Europa concentrava-se em questões econômicas. Encerrada a Guerra Fria, os partidos de direita voltaram-se para a nova realidade imigratória com o velho olhar xenofóbico, semeando ansiedades demográficas (o genocídio do homem branco) e culturais (a “invasão do Islã” contra o mundo cristão) contra um “outro” ameaçador. Esse discurso começou a render votos pela exploração de um suposto viés econômico: o imigrante seria uma ameaça aos empregos “europeus”.

Quando estourou a Guerra da Síria, em 2011, os sistemas de imigração europeus não estavam preparados para aquela avalanche de pessoas. Entre 2014 e 2015, quase um milhão de refugiados e migrantes econômicos entraram na Europa, reforçando o sentimento popular de insegurança causado pela espúria associação entre muçulmanos e terrorismo. Foi aqui que as nascentes redes sociais e a extrema-direita encontraram-se num mesmo pátio – e multiplicaram-se as teorias da conspiração.  

O avanço dos partidos de extrema-direita e a submissão dos velhos partidos de centro-direita ao discurso anti-imigração ignoram o quanto todos os indicadores econômicos gritem que a Europa precisa dessa mão de obra.  Mas o novo ambiente político-eleitoral refletiu-se nas instituições governamentais, nacionais e europeias. Em comum, a securitização do problema imigratório, que se torna assunto de profissionais de segurança, como polícias e forças de fronteira (a Frontex).

Sob o paradigma securitário, os agentes de fronteiras são treinados para identificar e neutralizar alvos, supostamente ameaçadores. São inúmeros os episódios nos quais, no lugar de salvamento e acolhimento, as embarcações das guardas-costeiras acompanham, quase sem ação, as tragédias com barcos de imigrantes. Não poucas vezes embarcações da guarda-costeira grega aproximam-se de naufrágios mas “não conseguem” salvá-los. Idem para italianos, franceses e espanhóis.

Charge-externalização

Presente da União Europeia para o fundo de ajuda aos refugiados

Para conter os imigrantes e refugiados foi preciso atravessar o mar, barrando-os antes que pudessem alcançar o Mediterrâneo. Isso teria que ser feito pelos países vizinhos. Algo parecido com o que os Estados Unidos de Donald Trump havia conseguido junto ao governo de Lopez Obrador, no México: pagar para outro proteger sua fronteira.

“A externalização criou, assim, uma troca implícita de poder: a UE e os Estados-Membros deram aos países parceiros influência e recursos financeiros e materiais consideráveis para melhorar as suas estruturas de segurança – mas ganharam pouca ou nenhuma influência sobre eles em troca. E deu aos líderes dos países parceiros o poder de chantagear os europeus ameaçando abrir as comportas migratórias. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, chantageia regularmente a UE, ameaçando descartar o acordo. O Marrocos facilitou a passagem dos imigrantes para os territórios espanhóis, aparentemente para influenciar a política de Madri no Saara Ocidental. O presidente egípcio Abdel-Fattah al-Sisi aproveita a migração para atrair quantias cada vez maiores de financiamento europeu para ajudar em sua crise econômica. Os acordos também criaram danos significativos à reputação – já que a UE e os Estados-membros parecem cúmplices dos abusos dos direitos humanos de seus parceiros.” (L.S. Martini & T. Megerisi. Road to nowhere).

 

A indústria de contrabando de pessoas

O contrabando de pessoas e o tráfico de pessoas são atividades distintas. O primeiro refere-se a um serviço pago para transportar pessoas ilegalmente através das fronteiras; o segundo é um ato de coerção violenta que se vale da fragilidade das vítimas para traficá-las com fins de exploração econômica ou sexual.

Lybia, centro de detenção - MSF

Imigrantes em centro de detenção na Líbia durante visita da organização MSF (Médicos sem Fronteiras)

Na Líbia existem inúmeros relatos que mostram que as experiências dos migrantes mesclam contrabando e tráfico. Pessoas pagam para serem transportadas e acabam vendidas ou capturadas em centros de detenção, onde senhores da guerra as forçam a trabalhar para comprar a própria liberdade, enquanto são submetidas a maus tratos e violência sexual.

A externalização reforçou esse problema, como tem sido demonstrado, especialmente após o governo italiano assinar o acordo Minnitti, em 2017, que transformou alguns desses chefes contrabandistas em aliados. A securitização deixou em suas mãos o controle do gerenciamento da imigração, isto é, como os centros onde os migrantes devem aguardar o processamento de seus pedidos para que entrem como imigrantes regularizados. Agora, obscuras redes que operam em países distantes oferecendo o serviço de contrabando terminam na entrega dessas pessoas para os centros de detenção, onde, antes de mais nada, elas são roubadas.

No leste da Líbia, a partir de 2020, Saddam Haftar, filho do ditador local, Khalifa Haftar, comandou a ampliação de duas novas rotas para a Europa. Uma tem conexões com Bangladesh e Síria e, provavelmente, a cooperação do Grupo Wagner da Rússia. A outra traz egípcios e sudaneses por terra. O negócio tornou-se tão lucrativo que Haftar atacou o leste da Tunísia e tem sob controle a cidade de Sfax.  Em 2023, mais da metade das pessoas que saltaram da Líbia à Itália partiram dessas duas rotas.

A armadilha para a UE é que o outro lado entendeu que pode receber verbas imensas cada vez que ameaçar “deixar passar”. E que os investimentos baseados em conceitos de controle e segurança resultam em muito mais poder local.

 

Uma nova abordagem

A ideia de que seja possível impedir o fluxo de imigrantes é irreal quando essas pessoas fogem de situações cada vez mais miseráveis e violentas. Muitos dos locais mais vulneráveis às mudanças climáticas globais situam-se no Oriente Médio e na África. A partir do segundo semestre de 2022, os africanos subsaarianos se tornaram o maior grupo migrando da Tunísia para a Europa. Enquanto isso, uma crise de refugiados imensa desenrola-se no Sudão e a União Europeia nada faz.

Para controlar a migração e escapar do ciclo de crise-extorsão, os europeus precisam quebrar o negócio dos traficantes de seres humanos. Isso pode ser feito com ações como a ampliação do número de vistos e processamento mais rápido dos pedidos de asilo político e, em prazo maior, investindo cooperativamente em países africanos a fim de criar oportunidades e fixar a população.

A Itália apresentou o Plano Mattei, que propõe uma parceria estratégica com os Estados africanos para realmente promover o desenvolvimento econômico, e ajudá-los a se adaptarem às mudanças climáticas. A ver.

O impacto mais notável da política de externalização até agora não foi, portanto, reduzir a imigração ou neutralizar contrabandistas e traficantes. Pelo contrário: elevou o valor dos serviços das redes ilegais de atravessadores e os riscos às vidas daqueles que os contratam. 

refugiados na Libia -UN

Centro de refugiados das Nações Unidas na Líbia

 

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