A crise dos refugiados de 2015 impactou a política externa da União Europeia em dois pontos fundamentais. Primeiro, transferiu o problema da imigração para o campo da segurança. Segundo, adotou como estratégia o que está sendo chamado de “externalização”, ou seja, a transferência do problema para países não-europeus, que assumem o papel de barrar o avanço dos imigrantes.
O fluxo migratório rumo à Europa segue três rotas principais para cruzar o Mediterrâneo: a oriental, via Turquia e Bálcãs; a ocidental, via Marrocos; e a central, via Líbia ou Tunísia em direção à Itália e Malta. A política de externalização tem conduzido à negociação com governos autocráticos e com senhores da guerra na Líbia, Tunísia, Egito e Turquia com o objetivo de impedirem imigrantes e refugiados de alcançarem a Europa. Passados alguns anos, observa-se que, após uma redução inicial dos fluxos de migrantes, houve uma reorganização ainda mais estruturada de máfias explorando o contrabando e o tráfico de imigrantes. Nos últimos dois anos os números se aproximaram daqueles registrados em 2015.
Outro efeito da mescla securitização/externalização tem sido colocar as fronteiras meridionais da Europa na dependência dos interesses voláteis de seus “aliados”, governos autoritários ou meros senhores de guerra, conferindo-lhes uma capacidade de pressão considerável. Acordos para transferências de milhões de euros têm sido negociados nas últimas décadas para garantir que tais parceiros cumpram o papel de “guardiãos da fronteira”.
A externalização pretendia, ainda, eliminar do debate público o próprio tema da imigração, um dos principais responsáveis pela polarização política da última década, especialmente porque os defensores de políticas humanitárias cobram o compromisso com os valores éticos que alicerçam as sociedades europeias desde a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. Dissonância de valores perigosa, que afeta a ordem interna das sociedades e é rapidamente apontada por governos de países do Sul como cinismo.
Existem centenas de organizações e milhares de pessoas na Europa que defendem tratamento humanitário para os imigrantes
Antes da década de 1990, a conversa sobre imigração na Europa concentrava-se em questões econômicas. Encerrada a Guerra Fria, os partidos de direita voltaram-se para a nova realidade imigratória com o velho olhar xenofóbico, semeando ansiedades demográficas (o “genocídio do homem branco”) e culturais (a “invasão do Islã” contra o mundo cristão) contra um “outro” ameaçador. Esse discurso começou a render votos pela exploração de um suposto viés econômico: o imigrante seria uma ameaça aos empregos “europeus”.
Quando estourou a Guerra da Síria, em 2011, os sistemas de imigração europeus não estavam preparados para aquela avalanche de pessoas. Entre 2014 e 2015, quase um milhão de refugiados e migrantes econômicos entraram na Europa, reforçando o sentimento popular de insegurança causado pela espúria associação entre muçulmanos e terrorismo. Foi aqui que as nascentes redes sociais e a extrema-direita encontraram-se num mesmo pátio – e multiplicaram-se as teorias da conspiração.
O avanço dos partidos de extrema-direita e a submissão dos velhos partidos de centro-direita ao discurso anti-imigração ignoram o quanto todos os indicadores econômicos gritem que a Europa precisa dessa mão de obra. Mas o novo ambiente político-eleitoral refletiu-se nas instituições governamentais, nacionais e europeias. Em comum, a securitização do problema imigratório, que se torna assunto de profissionais de segurança, como polícias e forças de fronteira (a Frontex).
Sob o paradigma securitário, os agentes de fronteiras são treinados para identificar e neutralizar alvos, supostamente ameaçadores. São inúmeros os episódios nos quais, no lugar de salvamento e acolhimento, as embarcações das guardas-costeiras acompanham, quase sem ação, as tragédias com barcos de imigrantes. Não poucas vezes embarcações da guarda-costeira grega aproximam-se de naufrágios mas “não conseguem” salvá-los. Idem para italianos, franceses e espanhóis.
Presente da União Europeia para o fundo de ajuda aos refugiados
Para conter os imigrantes e refugiados foi preciso atravessar o mar, barrando-os antes que pudessem alcançar o Mediterrâneo. Isso teria que ser feito pelos países vizinhos. Algo parecido com o que os Estados Unidos de Donald Trump havia conseguido junto ao governo de Lopez Obrador, no México: pagar para outro proteger sua fronteira.
“A externalização criou, assim, uma troca implícita de poder: a UE e os Estados-Membros deram aos países parceiros influência e recursos financeiros e materiais consideráveis para melhorar as suas estruturas de segurança – mas ganharam pouca ou nenhuma influência sobre eles em troca. E deu aos líderes dos países parceiros o poder de chantagear os europeus ameaçando abrir as comportas migratórias. O presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, chantageia regularmente a UE, ameaçando descartar o acordo. O Marrocos facilitou a passagem dos imigrantes para os territórios espanhóis, aparentemente para influenciar a política de Madri no Saara Ocidental. O presidente egípcio Abdel-Fattah al-Sisi aproveita a migração para atrair quantias cada vez maiores de financiamento europeu para ajudar em sua crise econômica. Os acordos também criaram danos significativos à reputação – já que a UE e os Estados-membros parecem cúmplices dos abusos dos direitos humanos de seus parceiros.” (L.S. Martini & T. Megerisi. Road to nowhere).
O contrabando de pessoas e o tráfico de pessoas são atividades distintas. O primeiro refere-se a um serviço pago para transportar pessoas ilegalmente através das fronteiras; o segundo é um ato de coerção violenta que se vale da fragilidade das vítimas para traficá-las com fins de exploração econômica ou sexual.
Imigrantes em centro de detenção na Líbia durante visita da organização MSF (Médicos sem Fronteiras)
Na Líbia existem inúmeros relatos que mostram que as experiências dos migrantes mesclam contrabando e tráfico. Pessoas pagam para serem transportadas e acabam vendidas ou capturadas em centros de detenção, onde senhores da guerra as forçam a trabalhar para comprar a própria liberdade, enquanto são submetidas a maus tratos e violência sexual.
A externalização reforçou esse problema, como tem sido demonstrado, especialmente após o governo italiano assinar o acordo Minnitti, em 2017, que transformou alguns desses chefes contrabandistas em aliados. A securitização deixou em suas mãos o controle do gerenciamento da imigração, isto é, como os centros onde os migrantes devem aguardar o processamento de seus pedidos para que entrem como imigrantes regularizados. Agora, obscuras redes que operam em países distantes oferecendo o serviço de contrabando terminam na entrega dessas pessoas para os centros de detenção, onde, antes de mais nada, elas são roubadas.
No leste da Líbia, a partir de 2020, Saddam Haftar, filho do ditador local, Khalifa Haftar, comandou a ampliação de duas novas rotas para a Europa. Uma tem conexões com Bangladesh e Síria e, provavelmente, a cooperação do Grupo Wagner da Rússia. A outra traz egípcios e sudaneses por terra. O negócio tornou-se tão lucrativo que Haftar atacou o leste da Tunísia e tem sob controle a cidade de Sfax. Em 2023, mais da metade das pessoas que saltaram da Líbia à Itália partiram dessas duas rotas.
A armadilha para a UE é que o outro lado entendeu que pode receber verbas imensas cada vez que ameaçar “deixar passar”. E que os investimentos baseados em conceitos de controle e segurança resultam em muito mais poder local.
A ideia de que seja possível impedir o fluxo de imigrantes é irreal quando essas pessoas fogem de situações cada vez mais miseráveis e violentas. Muitos dos locais mais vulneráveis às mudanças climáticas globais situam-se no Oriente Médio e na África. A partir do segundo semestre de 2022, os africanos subsaarianos se tornaram o maior grupo migrando da Tunísia para a Europa. Enquanto isso, uma crise de refugiados imensa desenrola-se no Sudão e a União Europeia nada faz.
Para controlar a migração e escapar do ciclo de crise-extorsão, os europeus precisam quebrar o negócio dos traficantes de seres humanos. Isso pode ser feito com ações como a ampliação do número de vistos e processamento mais rápido dos pedidos de asilo político e, em prazo maior, investindo cooperativamente em países africanos a fim de criar oportunidades e fixar a população.
A Itália apresentou o Plano Mattei, que propõe uma parceria estratégica com os Estados africanos para realmente promover o desenvolvimento econômico, e ajudá-los a se adaptarem às mudanças climáticas. A ver.
O impacto mais notável da política de externalização até agora não foi, portanto, reduzir a imigração ou neutralizar contrabandistas e traficantes. Pelo contrário: elevou o valor dos serviços das redes ilegais de atravessadores e os riscos às vidas daqueles que os contratam.
Centro de refugiados das Nações Unidas na Líbia
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