16 de setembro de 2024
Liberdade somente para os partidários do governo, somente para os membros de um partido, por mais numerosos que sejam, não é liberdade. Liberdade é sempre a liberdade de quem pensa de modo diferente. Não por fanatismo pela ‘justiça’, mas porque tudo quanto há de vivificante, salutar, purificador na liberdade política depende desse caráter essencial e deixa de ser eficaz quando a ‘liberdade’ torna-se privilégio.
(Rosa Luxemburgo, A Revolução Russa, 1918)
Rosa Luxemburgo (1871-1919)
A passagem anterior é o núcleo da crítica da comunista alemã Rosa Luxemburgo à anulação das liberdades políticas pelos bolcheviques triunfantes na Rússia. Aplica-se à perfeição aos arreganhos autoritários do Supremo Tribunal Federal (STF), no curso dos inquéritos intermináveis sobre as fake news e as manifestações golpistas, conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes.
No final de agosto, Moraes ordenou o bloqueio do X (antigo Twitter) no Brasil, uma decisão endossada por unanimidade pela Primeira Turma do STF. O motivo: Elon Musk, principal acionista do X, desobedecera ordens do juiz de indicar um representante legal da empresa no país e de pagar multas pela recusa de derrubar perfis envolvidos nos inquéritos.
Narrada assim, a partir do fim, a história parece simples. Empresas que desacatam decisões judiciais ficam sujeitas a sanções – inclusive à suspensão de suas atividades. O problema é que a história começa bem antes, com uma coleção de ordens de derrubada de perfis, cujas extensão e motivações permanecem em sigilo de justiça. De fato, o STF apela à censura prévia, algo vedado pela Constituição brasileira.
Inexistem direitos absolutos, pois todos os direitos inscrevem-se numa moldura jurídica que os equilibram com outros direitos. A liberdade de expressão não é exceção: as democracias estabelecem limites legais ao uso da palavra, definindo certas manifestações como crimes. No Brasil, são crimes a calúnia, a injúria, a difamação e a pregação direta da violência contra instituições, grupos populacionais ou indivíduos.
Fica, vetada, porém, a censura prévia. Eventuais crimes de palavra são sujeitos à persecução criminal somente – como é óbvio – depois que foram cometidos.
O STF ignora a lei ao derrubar perfis. A medida parte do pressuposto puramente especulativo de que usuários de redes sociais acusados por crimes de palavra voltarão a incorrer em condutas criminosas em postagens futuras. Não há diferença de substância entre derrubar um perfil de rede social e proibir determinado indivíduo de escrever textos num jornal ou publicá-los na forma de livro.
Post infantil de Elon Musk ironizando a figura do juiz do STF brasileiro Alexandre de Moraes
As ordens de derrubada de perfis causaram pouco alvoroço na imprensa brasileira, o que é curioso e preocupante. Como regra, aceitou-se a censura prévia. O motivo, fácil de adivinhar: os indivíduos atingidos pertencem à militância radical bolsonarista e participaram do coro golpista nas redes sociais, antes e logo depois das eleições de 2022. Seriam, portanto, atores desprezíveis, que não merecem o “privilégio” da liberdade de expressão.
Não foi apenas a derrubada de perfis. Filipe Martins, que serviu como assessor do ex-presidente Jair Bolsonaro para política externa, investigado no inquérito do golpismo, passou seis meses em prisão preventiva determinada pelo STF, supostamente por ter se ausentado do Brasil. Ganhou a liberdade depois que, finalmente, o tribunal admitiu inexistirem provas de uma viagem ao exterior. Contudo, por decisão do juiz Alexandre de Moraes, foi proibido de conceder uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
A alegação de Moraes é que Martins poderia utilizar a entrevista como forma de comunicação com outros investigados, algo vedado pelas medidas judiciais cautelares. Trata-se, uma vez mais, de censura prévia, sob a patética justificativa de presunção de um crime futuro. Diversos especialistas destacaram que a medida excepcional viola tanto sua liberdade de expressão quanto o princípio da liberdade de imprensa. Mas o caso não gerou reações maiores na própria imprensa, com a parcial exceção da Folha de S. Paulo.
A liberdade dos outros – dos que divergem, por mais desprezíveis que possam ser suas opiniões – é o fundamento do sistema democrático. O STF brinca com a democracia enquanto jura defendê-la.
O arcabouço jurídico da Alemanha abrange o conceito de “democracia militante”, base para leis e regras que criminalizam a propagação de ideias neonazistas. Gilmar Mendes, ministro do STF, argumentou anos atrás que o mesmo conceito oferece amparo a decisões do tribunal de vetar discursos antidemocráticos. No fundo, implicitamente, os atos de Moraes nos dois inquéritos adquirem um verniz de legitimação teórica a partir da argumentação de Mendes.
Conselho Parlamentar da Alemanha Ocidental em 1949. Dele, nasceu a Lei Fundamental de Bonn, que funcionaria como Constituição da RFA
Ocorre que o Brasil não é a Alemanha. O Brasil experimentou ditaduras, como a do Estado Novo ou o regime militar, mas nada similar ao Holocausto. O trauma histórico singular da Alemanha configurou o sistema legal da República Federal Alemã, fundada em 1949, que continua a sustentar a legislação da Alemanha unificada. No Brasil, porém, a Constituição de 1988 não prevê a proibição de alguma ideologia política específica. Mendes inventou uma “democracia militante” num país que escolheu ser uma democracia comum.
Os inquéritos conduzidos por Moraes, com seus cortejos de medidas de exceção, têm sido justificados pelo STF como resposta imperativa às circunstâncias excepcionais geradas pelo golpismo bolsonarista. “Tudo para salvar a democracia!” – a alegação, que tinha a sua força persuasiva durante o governo Bolsonaro, desafia a passagem do tempo.
A conspiração golpista foi derrotada. Alguns dos conspiradores, civis e militares, foram sentenciados e outros sofrem denúncias judiciais. Os processos contra o ex-presidente arrastam-se lentamente, mas por responsabilidade do próprio STF. A perenização da excepcionalidade serve apenas para a concentração de poderes ilegais nas mãos do tribunal supremo.
À primeira vista, o Brasil não é caso único. Diante das plataformas globais de redes sociais, os Estados movimentam-se para reafirmar sua soberania jurisdicional. Regimes autoritários, como a China, a Rússia, o Irã e tantos outros ignoram os direitos dos cidadãos e, simplesmente, erguem muralhas tecnológicas de censura à internet. As democracias, por outro lado, tentam equilibrar o direito à liberdade de expressão com a necessidade de limitar o espaço para a criminalidade no ciberespaço.
A União Europeia regulamentou, de forma um tanto detalhista, as redes sociais. A França prendeu o fundador do Telegram. Os EUA ameaçam banir o Tik Tok. Qual seria, nesse contexto, a singularidade brasileira?
Pavel Durov, do Telegram
A prisão de Pavel Durov, do Telegram, não implicou a suspensão da rede social. O provável banimento do Tik Tok ampara-se no forte argumento de que a empresa chinesa opera sob os auspícios do Estado chinês: a liberdade de expressão é uma prerrogativa de indivíduos, não de poderes estatais estrangeiros. O Congresso brasileiro recusou-se, até o momento, a regulamentar as redes sociais – e, portanto, o STF derruba perfis sem uma nítida base legal.
O vale-tudo judicial aproxima o Brasil de democracias precárias, como a Índia, que ensaia limitar mensagens criptografadas, ou a Malásia, que pretende submeter postagens sobre temas religiosos à supervisão do Departamento de Desenvolvimento Islâmico. Hoje, o STF pratica censura prévia contra perfis vagamente acusados de promoverem “desinformação” ou “discursos de ódio”. Amanhã, em outras circunstâncias políticas ou sob composição diferente do tribunal, quais perfis poderiam ser alvos dos vetos judiciais?
Juízes-legisladores são péssima receita. Para não esquecer: anos atrás, Bolsonaro engajou-se na missão de preencher vagas no tribunal supremo com juízes “terrivelmente evangélicos”.
A decisão judicial de bloqueio do X no Brasil inclui uma pérola: prevê multa punitiva contra usuários que acessem a rede social, a partir do país, utilizando VPN (rede virtual privada). Os serviços de VPN utilizam criptografia e são capazes de simular acesso à internet a partir de outros países.
As VPN funcionam como ferramentas de indivíduos que vivem sob ditaduras para acessar sites proibidos nos seus países. Dezenas de milhões de chineses as empregam como forma de circundar a “Grande Muralha virtual”. A ameaça de multa erguida por Moraes não passa de um delírio autoritário.
Autoritário porque os cidadãos em geral não são parte do processo contra o X. Uma coisa é suspender o sinal da rede social no Brasil; outra, bem distinta, é suspender os direitos elementares dos usuários. Ao dar esse passo, o STF inventa, sem base na lei, uma conduta ilegal.
E delírio porque a proibição não é passível de fiscalização. Os juízes todo-poderosos carecem de meios para identificar usuários de VPN que acessam esta ou aquela rede social. De fato, só podem saber aquilo que usuários pretendem tornar público.
Não por acaso, parlamentares e militantes ligados ao bolsonarismo correram às VPN para fazerem postagens no X, como forma de desafiar o STF. O tribunal fornece munição política aos inimigos da democracia, construindo o palanque no qual se exibem como campeões da liberdade de expressão. É hora de Moraes e seus pares togados lerem Rosa Luxemburgo.
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