INFÂNCIAS MARCADAS NA SELVA DE DARIÉN

 

Elaine Senise Barbosa

 

15 de abril de 2024

 

Não para de crescer o número de pessoas dispostas a deixarem seus países para tentar a sorte na arriscada travessia pela selva de Darién em direção aos Estados Unidos, ainda visto como a “terra das oportunidades”, apesar do seu histórico de racismo e nativismo. A imigração tornou-se o tema mais candente na campanha eleitoral para a presidência do país, onde as leis de imigração são cada vez mais restritivas.

Ainda assim, apenas em 2023, 520 mil pessoas se dispuseram a atravessar, a pé, o que é hoje considerada a mais perigosa rota de imigração do continente americano: a selva ou “tampão” de Darién, um local inóspito que marca a fronteira entre Colômbia e Panamá, bem ali na estreita ligação terrestre entre América do Sul e América Central. Mais de meio milhão de pretendentes a imigrantes e refugiados apenas em Dárien!  

Darien-familia venezulena

Família de venezuelanos em meio à selva. Os venezuelanos são, de longe, o principal grupo de imigrantes em todo o continente. Na fronteira dos EUA, só perdem para os mexicanos. (Foto: Unicef)  

 

Há uma triste novidade nessa onda migratória que ganhou força pós-pandemia:  o expressivo aumento do número de crianças nessa aventura tão arriscada. De cada cinco pessoas que completam a travessia da selva e são registradas, uma é menor de idade. E, sim, a subnotificação é reconhecida por todos.

Crianças e adolescentes representaram 22% do total de pessoas que cruzaram a selva em 2023. O crescimento em relação a 2022 foi expressivo. A Unicef contou 40 mil menores de idade apenas no primeiro semestre do ano passado, metade deles com menos de cinco anos. Parte dessas crianças e adolescentes estava desacompanhada. Foram encontrados ao longo do caminho por terceiros e levados até os postos de entrada no Panamá.

Os menores que atravessam a selva estão expostos a múltiplas formas de violência (abuso sexual, tráfico de pessoas, tráfico de órgãos); à falta de alimentos e água potável (o que aumenta consideravelmente a chance de enfermidades como diarreia, muito perigosas para os menores de 5 anos), às picadas de insetos e ataques de animais selvagens, ao súbito aumento no volume de água dos rios, com muitos afogamentos.

Que tipo de horrores testemunharam essas crianças, cujo direito à infância está sendo comprometido? Como esquecer o cheiro pútrido dos corpos em decomposição pelo caminho, que todos relatam? E descobrir-se subitamente só, mal dizendo o próprio nome? E se isso terminar num posto de fronteira do Texas onde crianças são separadas dos seus pais e encarceradas – um absurdo do governo de Donald Trump que Joe Biden não reverteu?  

 

Travessia da morte

Mapa: localização de Darién

A região de Darién ocupa cerca de 5 mil quilômetros quadrados cobertos por densa selva tropical, com montanhas íngremes, rios com correntezas, temperatura elevada e abafada (uma mistura favorável à disseminação de doenças como dengue e malária), além da presença de animais selvagens.

Ainda mais perigoso, a selva do lado colombiano é controlada pelo narcotraficante clã do Golfo, enquanto o lado panamenho sofre a ação de gangues indígenas locais. Nos dois lados, cobranças de pedágios, roubos, estupros e assassinatos são cotidianos.

Então por que as pessoas escolhem esse percurso? Porque é mais caro viajar de avião e mais fácil ser barrado nos serviços de imigração dos aeroportos, de onde serão prontamente deportados. Porque, para a massa de pessoas empobrecidas que arriscam suas últimas economias, a opção é fazer o caminho terrestre – a pé, de ônibus, de canoa. Segundo informação do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR), a travessia pode durar mais de dez dias, dependendo das condições físicas dos imigrantes e da presença de crianças e idosos no grupo.

Grande parte dos que chegam ao Panamá entram pela Estação de Recepção Migratória de Lajas Blancas ou por Bajo Chiquito, onde são recebidos e triados pelo serviço de fronteiras panamenho (Senafront). Nesses pontos, a Unicef e outras organizações humanitárias mantêm bases, fornecendo alimentos e água potável (muitos chegam desidratados), atendimento médico e serviços de assistência aos menores, “incluindo o trabalho com as autoridades locais para identificar crianças não acompanhadas e separadas”, informa a agência da ONU.

 

Novas migrações

Os números apontam para uma transformação qualitativa na mais recente onda imigratória rumo aos EUA. A avaliação das organizações humanitárias é a de que, enquanto o fluxo tradicional de imigrantes é composto majoritariamente por homens adultos que ajudarão suas famílias de longe até que possam buscá-las, agora se intensifica o fluxo de famílias inteiras, com muitas crianças pequenas, mães-solo com filhos pequenos inclusive. Essa mudança no perfil demográfico dos imigrantes indica um deslocamento muito motivado pela violência nos países de origem, que vem somar às já conhecidas dificuldades econômicas.

Infâncias marcadas pela selva de Darién - CAPA

Crianças, idosos, mulheres desacompanhadas – o crescimento dos números desses grupos entre os imigrantes sinaliza motivações para emigrar ligadas à insegurança familiar. (Foto: Unicef)

Não por acaso, o ranking dos países com maior número de pessoas cruzando a selva de Darién, em 2023, traz a Venezuela em primeiro lugar (30,2 mil pessoas), seguida por Haiti (23,6 mil) e Equador (14,3 mil). Países onde ditadura ou incapacidade do Estado de combater o crime organizado e o crescimento do narcotráfico têm empurrado milhões para fora de suas casas. A ironia trágica dessa história é que a “guerra às drogas”, encabeçada por Washington nas últimas décadas em nome de combater o tráfico, está na raiz dessa onda de violência que se espalha por todo o continente.

Após deixarem o Panamá em direção à Costa Rica, esses migrantes terão que atravessar mais seis países antes de alcançarem a fronteira terrestre dos EUA. No caminho, se juntarão aos salvadorenhos, hondurenhos e guatemaltecos que também fogem da violência, além do imenso contingente de mexicanos que ruma para os EUA todos os anos.

Na onda migratória de agora foi detectado um número crescente de imigrantes vindos da Ásia e África. Eles ingressam no continente americano aproveitando políticas benéficas de imigração, como ocorre no Brasil, para depois seguirem viagem rumo à América do Norte. O número de chineses, afegãos, vietnamitas, angolanos e somalis chamou a atenção das autoridades imigratórias brasileiras. Já o governo da Nicarágua tem facilitado a entrada de imigrantes como forma de provocar os EUA.

É nesse cenário que se inscreve o número relativamente alto de crianças com nacionalidade brasileira entre esses imigrantes e refugiados. Desde 2020, mais de 15,7 mil, a maioria filhos de haitianos, segundo a contagem oficial. Muitos são haitianos e venezuelanos que chegaram ao Brasil há alguns anos, tiveram filhos e tentaram a vida mas decidiram se arriscar em busca de salários melhores, pois quase todos têm famílias nos países de origem aguardando ajuda.

 

Imigração é o tema da eleição

Infâncias marcadas pela selva de Darién

Fonte: Patrulha da Fronteira dos Estados Unidos

Donald Trump foi eleito em 2016 com um discurso xenófobo e críticas à política imigratória do país. Ele não conseguiu erguer completamente o muro físico na fronteira com o México, mas conseguiu erguê-lo na cabeça dos americanos. Em 2024, a questão da imigração se tornou o assunto mais importante da campanha eleitoral, de acordo com todas as pesquisas. Coisa inédita.

Política imigratória é a pauta com pior avaliação na presidência do democrata Joe Biden, com apenas 18% de aprovação. Entre o eleitorado do partido republicano, 90% consideram a imigração ilegal uma ameaça crítica ao país. Preocupante foi o aumento de 40% para 54% dessa mesma opinião junto ao eleitorado independente. Esses números foram revelados pelo Instituto Gallup.

Biden tentou reverter a má avaliação com um projeto de lei bipartidário sobre segurança de fronteira prevendo um alto orçamento para a contratação de pessoal a fim de acelerar os processos de pedido de refúgio e imigração. O argumento é que a média de sete anos de espera para a resposta aos pedidos de refúgio e imigração favorece a entrada de muita gente no país, que organiza a vida e depois desaparece das vistas das autoridades. Com maior agilidade processual, haveria um efeito dissuasório por conta do risco ser obrigado a retornar rapidamente.

Mas a proposta foi recusada pelo Congresso, onde os republicanos preferem manter a corda esticada para Trump tocar sua melodia macabra contra os que tentam imigrar. Ele disse num comício há algumas semanas: “Eles vêm de prisões, vêm de instituições psiquiátricas, e vêm de manicômios, e são terroristas”. A mentira descarada funciona.

 

 

 

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