JUDAÍSMO DIASPÓRICO E JUDAÍSMO ISRAELENSE

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Cópia do painel do arco triunfal romano mostrando os despojos do templo de Jerusalém (81 d.C.) 

 

Bernardo Sorj

(Professor Titular de Sociologia – UFRJ; diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática – PPD)

 

Nos tempos modernos, a identidade é produto da interação criativa dos indivíduos com seus contextos sociais. O judaísmo diaspórico, tanto quanto o israelense, inclui as mais variadas correntes religiosas e seculares. 

Apesar da diversidade, tratar estes universos como contrapostos justifica-se, até certo ponto, pela existência de uma diferença fundamental entre ambos. A vivência do judaísmo diaspórico possui um substrato comum: ela reflete a condição de ser uma minoria. Em Israel, por outro lado, os judeus são uma maioria controlando um Estado nacional, que inclui o fato de ser parte de um país em estado permanente de guerra.

Afirmar que o judaísmo diaspórico e o judaísmo israelense possuem caraterísticas diferentes é uma constatação empírica, mas também confirma o objetivo declarado pela ideologia que criou o Estado de Israel, o sionismo. O sionismo visava “normalizar” o povo judeu – sempre sujeito a perseguições antissemitas na condição de grupo minoritário na diáspora – criando um “homem novo”.

 

Judaísmo diaspórico

A formação do judaísmo moderno está associada ao processo de secularização que separou Estado e religião e permitiu aos judeus se transformarem em cidadãos plenos. Ao mesmo tempo, eles continuaram vivendo em sociedades onde o processo de secularização não eliminou as tradições culturais associadas à religião dominante, que continuou presente tanto na sociabilidade cotidiana como na organização política (o calendário é o exemplo mais óbvio). 

Ao ser parte integral da sociedade e, ao mesmo tempo, uma minoria, um cidadão legalmente igual, mas que pode ser estigmatizado e excluído, produziu-se uma insegurança vital e uma suscetibilidade aguda sobre o futuro e os ventos da história, nacional e internacional. O resultado foi uma sensibilidade particular, associada à necessidade constante de decifrar o ambiente, frente à possibilidade ser tratado como um estranho.

Assim a condição judia diaspórica, nas sociedades modernas, produziu uma psicologia e uma sensibilidade particular que exige aprender a conviver com a dissonância cognitiva, ou seja, manter crenças próprias perante uma maioria com crenças religiosas diferentes. Essa dissonância cognitiva limita o processo de disciplinamento da sociedade, denominado pelo sociólogo Pierre Bourdieu de habitus, pelo qual as pessoas interiorizam, e se resignam, às posições sociais que lhes foram destinadas. 

Não compartilhar as crenças da maioria favorece o questionamento dos códigos e as hierarquias dominantes, alimenta a dúvida, a curiosidade e a procura de novas respostas, atitudes afins com o espírito inovador da vida moderna. Tais caraterísticas favoreceram o sucesso social e econômico, igualmente parte da identidade judia contemporânea, tanto na autoimagem como para o olhar externo.

 

Judaísmo israelense

Já no caso do judaísmo israelense, parte da sensibilidade e dos valores trazidos da diáspora se diluíram, passando a sobressaírem sentimentos e valores impulsionados pelas condições de vida locais. É uma cultura que valoriza o pragmatismo e um certo anti-intelectualismo, e uma visão de mundo que coloca em primeiro lugar a força como estratégia de sobrevivência, acompanhada de uma dessensibilização em relação aos que consideram seus inimigos.

A política do primeiro governo de Israel, de transferir vários poderes jurisdicionais à corrente rabínica ortodoxa, acabou negando, de fato, o pluralismo do judaísmo como religião, com consequências fundamentais para o desenvolvimento do judaísmo em Israel. Aquela política opôs o secularismo a uma versão do judaísmo construída em oposição aos valores da modernidade. A escolha acabou empobrecendo as possibilidades de diálogo entre o judaísmo secular e a rica tradição espiritual do judaísmo religioso moderno.

Theodor Herzl (1860-1904), o fundador do sionismo moderno

Nas últimas décadas, a ocupação dos territórios palestinos, como resultado da guerra de 1967, produziu um movimento sísmico no interior da sociedade israelense. Ele levou ao fortalecimento de correntes ideológicas estranhas, pela própria natureza, ao judaísmo diaspórico: um nacionalismo xenofóbico e racista, e movimentos religiosos messiânicos dispostos a utilizar a violência para impor seus objetivos. Ao mesmo tempo, registrou-se expansão demográfica de grupos ultra-ortodoxos que não se identificam com o sionismo e o Estado democrático, mas se utilizam de sua força eleitoral para impor uma agenda teocrática na organização da sociedade e tirar vantagens orçamentárias para manterem seu estilo de vida. 

Essa análise, em grandes linhas, reflete oposições reais. Desconhece, porém, que a ênfase exclusiva na oposição deixa de lado as transformações profundas que aconteceram tanto na diáspora como em Israel e, em particular, aquelas que são produto da interação entre ambos. 

 

Mutações do judaísmo diaspórico 

As diásporas são realidades em permanente  mutação, tanto pelas transformações no conjunto da sociedade e do sistema internacional, como no interior das comunidades judias. 

A identidade judia moderna, e estamos nos referindo a um período histórico que se estende do século XVII até os tempos atuais (com cronologias diferentes em cada país e região), expressou os conflitos de uma transição que carregava dois desafios. De um lado, um mundo que se abria como promessa de igualdade, mas que na prática mantinha em boa parte da população não judia os preconceitos do passado ou atualizados por novas ideologias racistas. De outro lado, os laços de solidariedade e elos subjetivos que cada judeu à sua maneira mantinha com a tradição, incluindo relações familiares e comunais. 

A possibilidade de integração ativa na sociedade gerou um duplo movimento: a) a reconstrução da tradição judaica, reinterpretando-a de forma a permitir absorver os valores modernos de forma o menos contraditória possível com os novos valores hegemônicos, b) a modificação das subjetividades de forma a integrar a realidade de um mundo onde a divisão judeus/não judeus (cristalizada tanto nas normas religiosas como na experiência imposta pelo mundo exterior) se faziam cada vez menos presente na convivência cotidiana.

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Grafite da suástica nazista em um prédio na cidade de Nablus, na Cisjordânia, perto da fronteira com Israel, em 2022

Com a eliminação, pelo Holocausto, de grande parte do judaísmo da Europa central e oriental, os judeus nas Américas e em grande parte da Europa são descendentes de emigrações recentes: segunda, terceira e quarta gerações. E cada geração se integrou cada vez mais nas culturas nacionais. Se os recém-chegados falavam Yidish (ou ladino) e seu meio social era majoritariamente judeu, os filhos e ainda mais seus descendentes deixaram de falar a língua de seus pais, se profissionalizaram e expandiram seus campos de atividades, onde a origem étnica perdeu sua relevância.

A própria palavra diáspora mal expressa o sentimento atual de boa parte dos judeus. Diáspora é um conceito muito distante da palavra pela qual durante quase dois milênios era chamada a situação de viver fora da terra de Israel: Galut. Galut é exílio, um castigo de Deus que algum dia acabará com a chegada do Messias. Diáspora é uma constatação neutra, a indicação de que o grupo se encontra disperso, sem conotação teológica nem teleológica. 

Junto com a crescente integração social houve, naturalmente, uma diminuição da intensidade das caraterísticas anteriores que tipificavam a psique e o sentimento de estar no mundo da condição judia moderna. A Igreja Católica, que por milênios promoveu o antissemitismo, modificou sua relação com o judaísmo após a Segunda Guerra Mundial. As sociedades avançaram no sentido de uma maior secularização e respeito pelos direitos humanos, apesar de ruídos no sentido contrário. 

O sentimento de mundo e a sensibilidade associada à condição diaspórica, caraterísticas sobre as quais os judeus nunca tiveram o monopólio, passaram a ser compartilhadas e valorizadas por amplos setores da sociedade. Com os processos de globalização, a capacidade de conviver com culturas diferentes passou a ser uma habilidade cada vez mais demandada, em particular para a elite globalizada, e os meios de comunicação bombardeiam constantemente com notícias sobre os mais diversos rincões do globo.

Não que tenham desaparecido os sentimentos e a subjetividade associados a ser parte de uma minoria cognitiva, mas certamente foram amortizados.  O antissemitismo certamente não desapareceu, mas na maioria dos países não ocupa um lugar relevante no cotidiano dos judeus. Não obstante, causa apreensão o peso crescente de líderes e partidos de extrema-direita em muitos países democráticos, assim como  de grupos de esquerda e muçulmanos que escorregam rumo a posturas antissemitas mais ou menos veladas.

O   campo da luta contra o antissemitismo ficou mais complexo com a expansão de lutas de outros grupos sociais que se sentem vítimas da história e da sociedade, e que competem pelo reconhecimento.

 

O solo de Israel

Se a diáspora não é mais o que foi no passado, o Estado de Israel está longe da normalidade imaginada pelos idealizadores do sionismo. A história, como sempre, mostra-se mais complexa e ambígua que as ideologias. 

O Estado de Israel, como qualquer outro Estado Nacional, não é igual aos outros. Ele foi construído na suposição da unidade do povo judeu. A chegada de emigrantes dos mais diversos países mostrou a enorme diversidade e heterogeneidade cultural dos judeus. A onda de emigrantes advinda dos países árabes, logo após a independência, e que dobrou a população do país, era culturalmente distante do judaísmo secular europeu que montou as bases do Estado, e que ocupava os cargos dirigentes, gerando ressentimentos que se traduziram em partidos políticos étnicos tradicionalistas. Processo paralelo se deu com a emigração da União Soviética, que chegou a partir dos anos 1980, de orientação secular e de direita.

Declaração do Estado de Israel, em 1948. Na foto quem conduz a cerimônia é David Ben-Gurion. Ao fundo, a imagem de Theodor Herzl

O sionismo surgiu da diferenciação entre identidade nacional e identidade religiosa, que estiveram amalgamados por quase três milênios. Movimento fundamentalmente secular, o sionismo decidiu não esperar a chegada do Messias, retirando o destino dos judeus das mãos de Deus. A separação entre Estado Nacional e religião, contudo, nunca foi claramente resolvida, sobretudo na relação entre judaísmo e democracia. Pelo contrário, com a passagem do tempo ela ficou cada vez mais confusa. 

Inicialmente, porque o judaísmo religioso foi a referência dos líderes israelenses laicos, mas o judaísmo rabínico tradicional, e não as correntes reformistas e conservadoras embebidas dos valores da modernidade. Com a criação do Estado, parte das competências de direito civil e da definição de quem é judeu foram transferidas para as autoridades religiosas ultra-ortodoxas.

Posteriormente, com a conquista dos territórios palestinos, a religião foi utilizada para justificar políticas de colonização em nome de um passado bíblico. Além disso, sobretudo, alimentou um nacionalismo religioso messiânico, que convergiu com o nacionalismo extremista secular sionista. 

As relações conflitivas entre os princípios de um Estado democrático secular e as tradições religiosas pregressas não são alheias à maioria dos países democráticos. No caso de Israel, a relação ficou mais conflitiva pela escolha, no momento de criação do Estado, dos judeus ultra-ortodoxos como únicos representantes e interlocutores legítimos da religião judaica. Essa escolha aguçou o potencial destrutivo da presença de narrativas e interesses religiosos na vida política. 

Em Israel a visão da diáspora como uma longa noite de perseguições que devia ser esquecida, promovida pela ideologia sionista, conviveu sempre com o sentimento cotidiano dos israelenses de que a vida na diáspora era cheia de oportunidades e conforto. Não podemos esquecer que o movimento migratório para Israel, nos grandes números, foi de países com padrões de vida mais baixos ou com perseguições políticas. Os idealistas foram minoritários. Hoje, calcula-se que em torno de um milhão de cidadãos israelenses, boa parte deles judeus, vive fora de Israel, sendo um quarto deles nativo.

 

Encontros e desencontros

A particular sensibilidade da condição diaspórica foi mudada pela existência do Estado de Israel. Os judeus finalmente possuem um Estado próprio para o qual podem se mudar, se assim o desejarem, sem ter que esperar a chegada do Messias.

Na diáspora, sobretudo, a existência de Israel produziu um sentimento de empoderamento associado à capacidade militar do país e orgulho por suas realizações no campo científico e tecnológico. Ele teve um efeito difícil de exagerar na psique de um povo que viveu durante dois milênios sem capacidade de se defender da violência da maioria. 

Paradoxalmente, se a existência do Estado de Israel produziu um empoderamento psicológico, transformou-se também, dados os desafios geopolíticos do país, em fonte renovada de angústia existencial. O país que gerou um sentimento de segurança não eliminou as inseguranças e medos enraizados na psique coletiva, pelo contrário.

O Estado de Israel passou a ser parte da identidade do judeu diaspórico, isto é, sua existência é uma referência que mobiliza os mais diversos sentimentos, mas nunca a indiferença e, quase sempre, preocupação com seu destino. Um dos efeitos secundários sobre a identidade diaspórica produzidos em parte pelo Estado de Israel foi a perda, por parte de setores da comunidade judaica, do que podemos chamar de sabedoria histórica incorporada à condição de grupo minoritário.

Em particular, setores de maior sucesso econômico que temperavam seus interesses de classe com uma maior sensibilidade social e cultural perante as causas de setores oprimidos, passaram a apoiar agendas de extrema direita. Nesta nova constelação, setores das comunidades judaicas se alinham com líderes antidemocráticos na política nacional brasileira e apoiam as posições de governos de direita de Israel, distantes dos valores e dos interesses de longo prazo da vida na diáspora.

 

Paradoxos

AMIA

Suspeita-se que o atentado sangrento na Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em Buenos Aires, em 1994, teve envolvimento do grupo libanês xiita Hezbollah e do governo iraniano

Paradoxalmente, o sentimento de insegurança existencial que era associado à condição diaspórica se manteve até com maior intensidade em Israel, pelo risco representado por um meio ambiente hostil, incluindo países e organizações que declaram a vontade de destruição da “Entidade Sionista”. Igualmente paradoxal, parte do antissemitismo vivido hoje na diáspora origina-se em grupos islâmicos ligados ao conflito no Oriente Médio. 

O vórtice que une Israel e a diáspora é o Holocausto. A destruição do Segundo Templo foi interpretada pelos rabinos como dando início ao Galut, que terminaria com a chegada do Messias. O drama humano muito maior que foi o Holocausto não levou a nenhuma mudança singular nas narrativas das diversas correntes religiosas. Elas ficaram entre o silêncio e o reconhecimento de que estamos em face do indecifrável, quando não em explicações indecentes, feitas por alguns poucos rabinos ultra-ortodoxos, como sendo um castigo divino. Para a maioria dos judeus a resposta dada pela história foi de ordem secular.

Para boa parte dos judeus da diáspora, a lição do Holocausto foi que somente o respeito aos direitos humanos e à democracia asseguram um ambiente no qual podem prosperar e onde não serão perseguidos. No Estado de Israel, o Holocausto foi associado aos riscos de destruição do país por seus vizinhos e à necessidade de possuir forças armadas que assegurem sua sobrevivência. 

Israel, que deveria ser um lugar onde os judeus estariam a salvo das perseguições, dada a disposição de países muçulmanos e de grupos palestinos de destruí-lo, forjou um elo que une a maioria dos judeus do mundo em torno do apoio e da defesa do país. 

 

Uma morfologia de tensões

O risco existencial de Israel criou um vínculo profundo na diáspora mas, inversamente, tornou o Estado dependente de seu apoio. 

A visão de Ben-Gurion, no início dos anos 1950, mostrou-se equivocada, assim como a de muitos israelenses, como por exemplo, o escritor A. B. Yehoshua. Ben-Gurion afirmou que, com a criação do Estado de Israel, o sionismo deixaria de existir e que os judeus deveriam imigrar (fazer Aliá) ou se assimilar. Acontece que a diáspora não só continuou a existir como, em particular a comunidade nos Estados Unidos, passou a ser um apoio importante da política externa israelense

A. B. Yehoshua, por sua vez, sempre expressou seu desprezo pela diáspora, afirmando que somente em Israel poderia existir uma vida verdadeiramente judia. É uma afirmação curiosa vinda de um judeu secular e humanista. Ela desconsidera que somente na diáspora todas as correntes do judaísmo convivem e florescem sem discriminação entre elas e o judaísmo não é utilizado por correntes políticas para justificar posturas nacionalistas xenofóbicas e racistas. 

A defesa dos direitos humanos na diáspora e o uso da força militar em Israel são duas faces da mesma experiência histórica que, em situações como as relacionadas à questão palestina, produz rasgos e divisões no interior das comunidades judias. 

Assentamento israelense na Cisjordânia ocupada

O Estado de Israel se auto-delegou a representação do povo judeu, e boa parte das instituições judaicas da diáspora foram transformadas em instrumentos de defesa do Estado de Israel perante a opinião pública. Consequências: o apoio e justificação de toda e qualquer política do governo e a perda de autonomia política.

O fenômeno manifesta-se nos mais diversos planos. Emerge em temas gerais, como a defesa dos direitos humanos, numa visão pluralista do judaísmo ou na avaliação de episódios de antissemitismo (que os governos israelenses muitas vezes sobrestimam para promover a imigração). Também aparece no reconhecimento da diversidade de correntes religiosas dentro do judaísmo ou na procura de uma solução pacífica para o conflito com os palestinos.

No fim, a relação entre os governos de Israel e as diásporas contém tensões geralmente não explicitadas. As lições extraídas do Holocausto, de defesa dos direitos humanos, são colocadas em suspenso frente a eventuais transgressões das Forças Armadas israelenses na medida em que elas protegem o país de ataques inimigos. A ocupação dos territórios palestinos após a guerra de 1967 e a posterior política de colonização são ignoradas ou tratadas com declarações inócuas sobre a expectativa de uma futura solução do conflito.

As tensões só cresceram com a perpetuação da ocupação dos territórios palestinos. Governos israelenses como o atual – com seu ataque às instituições democráticas, com ministros que não se envergonham de expressar em público opiniões racistas e xenofóbicas, enquanto se aproximam de grupos da extrema-direita europeia – dificilmente poderão seguir sendo tratados com condescendência. 

 

Judaísmo no Brasil

O judaísmo latino-americano e o judaísmo brasileiro compartilham características relevantes. O judaísmo em nossa região é um judaísmo periférico, isto é, com pouca autonomia cultural, associado a uma baixa e decrescente densidade demográfica. 

O judaísmo sempre teve centros hegemônicos que influenciaram as diásporas periféricas. Historicamente, o mais importante estava situado na Babilônia. Na atualidade, as influências predominantes vêm dos Estados Unidos e de Israel, em torno dos quais as instituições judaicas latino-americanas passaram a orbitar.

De forma simplificada, pode-se dizer que do judaísmo americano recebemos a influência religiosa: do movimento conservador, do reformista e dos Lubavitch. Este último modificou o panorama do judaísmo ortodoxo tradicional, trazendo técnicas de proselitismo inovadoras, e transformou-se na principal referência do judaísmo religioso ortodoxo. As correntes reformistas e conservadoras, que inicialmente se encontravam na margem da comunidade, associadas às comunidades vindas da Alemanha, passaram a concentrar o maior número de afiliados. 

De Israel, veio a influência política por intermédio das instituições representativas da comunidade, que passaram a ter como uma de suas prioridades a defesa do Estado judeu. Ela penetrou nas escolas judaicas pela adoção do Hebraico como matéria obrigatória e pela utilização de símbolos e narrativas associadas com Estado de Israel.  

Na América Latina, a baixa densidade demográfica se expressa em uma maior dependência, seja de ordem política como psicossocial, em relação aos centros hegemônicos, em particular de Israel, e uma produção cultural limitada. É uma situação potencializada tanto pelo afastamento de parte dos setores seculares das instituições da comunidade quanto pela tendência de parte dos indivíduos com maiores recursos econômicos de concentrarem seus apoios em grupos religiosos ortodoxos ou em Israel. 

As transformações sociais, econômicas e políticas da região afetaram igualmente as caraterísticas das comunidades judias, uma área muito pobre em pesquisas empíricas. Um tema merece especial atenção: a expansão no Brasil, mas também em outros países latino-americanos, das correntes evangélicas. O tema tem sido analisado sob a perspectiva da atual conjuntura política, em particular pela utilização de símbolos judaicos por grupos de extrema-direita, caso da bandeira do Estado de Israel. Sem desmerecer a importância do fenômeno, creio que existe uma outra dimensão da relação entre cultos evangélicos e judaísmo, que é a de um olhar diferente do judaísmo. Em que medida este olhar pode ser dissociado dos atuais usos políticos é uma pergunta em aberto.

 

Olhar para o futuro

Nos tempos modernos, os judeus transitaram por um longo caminho. Desde quando o grande filósofo Moisés Mendelssohn entrou em Berlim pelo portão onde passava o gado, pagando o mesmo imposto que uma cabeça de animal, no fim do século XVIII, até as sociedades atuais, em que somos cidadãos plenos, há um longo percurso marcado pelo abismo do Holocausto.

As sociedades se transformaram e, com elas, a condição judia. Seguimos enfrentando desafios particulares como uma comunidade, mas somos, sobretudo, cidadãos dos países onde vivemos e parte da humanidade que enfrenta enormes desafios: o futuro das democracias e a crise ambiental, os usos da inteligência artificial e os conflitos bélicos.

A nova realidade requer a capacidade de olhar para o futuro, sem ficarmos paralisados em visões que olham o presente através das imagens que nos transmite o espelho retrovisor. O que não implica que devemos idealizar a complexidade da condição judaica, nem nos iludirmos pensando que conceitos como identidades hifenizadas ou múltiplas se referem a dimensões de nossa subjetividade e da vida social que convivem de forma harmoniosa. Nunca é o caso. 

Seja na vida interior ou na convivência social, enfrentamos constantemente conflitos entre o particular e o universal, e os choques entre as demandas de diversos valores, interesses e afetos. O primeiro passo, como cientistas sociais e como indivíduos, é explicitar os conflitos do presente e os herdados do passado, de forma que sejamos capazes de lidar com as exigências contraditórias de uma identidade judaica que, como toda identidade coletiva numa sociedade democrática, exige a valorização da liberdade, da autonomia e o reconhecimento, inclusive, da dimensão trágica da existência humana e dos caminhos da história.

 

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