DROGAS: DO RITUAL AO CRIMINAL (I)

 

DO SAGRADO AO MERCADO

O uso de drogas pelos seres humanos é tão antigo quanto as primeiras sociedades e foi observado em todas as partes do mundo. De acordo com a oferta natural, diferentes plantas e substâncias alucinógenas foram utilizadas para fins rituais e médicos. Também foram utilizadas para fins criativos e recreativos, às vezes sob forte reprovação moral por serem usadas fora do circuito do sagrado, que envolve uma experiência ritual, coletiva e orientada.

 A partir da ligação marítima entre Ásia e Europa, nos séculos XV e XVI, o ópio como produto medicinal poderia ser encontrado em qualquer reino europeu. Já da América veio a coca, uma planta amplamente empregada pelas populações ameríndias da área andina (atuais Peru, Bolívia, Equador e Colômbia), por suas qualidades anestésicas e estimulantes.

Com a industrialização, nasceu o lucrativo setor químico-farmacêutico, prometendo oferecer remédios para muitos males, sobretudo dores. O ópio foi estudado mais a fundo e os farmacêuticos aprenderam a extrair morfina e codeína e, mais tarde, a heroína. Foi uma revolução no mundo anestésico e para o bem-estar humano. Até hoje, morfina e codeína, classificadas como opiáceos naturais, são empregadas em diversos fármacos.

Cartaz de propaganda: Cocaína para crianças

Propaganda farmacêutica do século XIX

 

EUA, puritanismo e racismo

A história de como as drogas passaram a ser tratadas como algo eminentemente mau e criminalizadas guarda relação direta com o despontar dos Estados Unidos como potência hegemônica no século XX. É uma nação ancorada em duas crenças: a excepcionalidade da escolha religiosa (Destino Manifesto) e a superioridade natural da “raça” branca sobre todas as outras (o que reafirmava a primeira crença).

Então, quando a imensa maré imigratória dos séculos XIX e XX alimentou a expansão da classe operária, a urbanização acelerada e o caos social, no qual o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas se destacavam, os problemas foram atribuídos à origem “estrangeira” dos trabalhadores. Eram gentes do Mediterrâneo, do México, das Filipinas… “Raças inferiores”, como ensinava o pensamento racial do século XIX.

A elite branca e protestante que governava o país – e reagia à chegada dos imigrantes formulando sua ideologia nativista – associava diversão, alegria, gozo e comportamento não abstêmio à suposta “inferioridade racial” dos recém-chegados, como já fizera com os africanos escravizados e continuava a fazer após a Guerra Civil e o fim do sistema escravista. Enquanto isso, os “brancos como lírios” demonstravam sua superioridade cristã por meio do autocontrole.

LeiSeca_EUA_Reprodução

Lei Seca nos EUA: policiais jogam fora tonéis de bebida produzida ilegalmente

Foi esse pensamento que conduziu à multiplicação das Ligas de Senhoras Cristãs no início do século XX, em campanha contra o alcoolismo. Foram elas as patrocinadoras da famosa Lei Seca (1919-1933), que proibiu a produção e distribuição de bebidas alcoólicas por todos os EUA. A história demonstrou que a política proibicionista resultou no substancial aumento do consumo de álcool em todo o país, além de fazer da Máfia e outras organizações criminosas um problema federal.

A convicção puritana de que o ser humano deve ser reformado para ser um bom cristão justificará cruzadas morais em nome de um bem maior. Essa visão de mundo seria levada para a diplomacia do país, definida conceitualmente como “idealista” (em contraposição à diplomacia “realista” europeia). Internamente, ela se traduziu na concessão de excessivos poderes a agentes públicos, cujas ações muitas vezes arbitrárias e letais ganharam impunidade quase completa.

 

A Guerra do Ópio e a disputa pela China

Os trabalhadores chineses foram muito importantes na construção das ferrovias transcontinentais dos EUA que interligaram o Atlântico e o Pacífico na segunda metade do século XIX. Eles começaram a chegar à Califórnia pouco depois da derrota do Império Chinês para o Império Britânico na Guerra do Ópio (1839-1842).

O conflito começou quando autoridades chinesas no porto de Cantão decidiram jogar ao mar cargas de ópio transportadas por navios britânicos a partir da Índia. O que estava em jogo era a abertura da China ao mercado estrangeiro. Para o governo imperial chinês, foi o reconhecimento de um problema de saúde pública e de corrosão da autoridade central, resultado da continuidade do contrabando promovido pelos ocidentais. O Parlamento de Londres apoiou a guerra em nome do “direito à indenização pela propriedade privada destruída” (o ópio lançado ao mar). Derrotada, a China abriu seus portos, indenizou os comerciantes e cedeu o controle da ilha de Hong Kong para o Reino Unido por um período de cem anos.

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Chineses fumando ópio na Califórnia

Os Estados Unidos, interessados no acesso ao mercado chinês, agiram para enfraquecer o Reino Unido. Em 1906, Washington estabeleceu relações com o Partido Nacionalista chinês (Kuomintang), inimigo do governo imperial, responsabilizado por não reagir aos “arrogantes ocidentais”. Imprimindo a marca de uma diplomacia moralista, a potência americana se ofereceu para “ajudar a China em sua batalha contra o ópio”.

Enquanto isso, os chineses e seus descendentes vivendo nos EUA sofriam  discriminação racial, agravada pela campanha contra o consumo de ópio e derivados. Em 1919, quando entrou em vigor a Lei de Imigração, pessoas “amarelas” (asiáticas) foram simplesmente proibidas de entrar no país.

 

Ação internacional contra as drogas

A disputa entre EUA e Reino Unido pelos mercados da Ásia impediu que houvesse uma regulação única sobre o comércio do ópio, cada vez mais valorizado pela indústria farmacêutica, especialmente depois que a Alemanha entrou no jogo.  Washington aproveitou o surgimento das primeiras organizações diplomáticas internacionais para capitanear uma “cruzada” contra o ópio e derivados.

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Reunião da Primeira Conferência Internacional sobre o Ópio, em 1912

Em 1911, aconteceu a Primeira Conferência Internacional sobre o Ópio, da qual resultou a “Convenção do Ópio (1912)”, que só seria plenamente  aprovada após a Primeira Guerra Mundial. O acordo estabeleceu normas para a produção e comercialização de morfina, heroína e cocaína, admitidas apenas para fins farmacêuticos ou religiosos, desde que assim reconhecidos. Os países signatários comprometeram-se a criar condições institucionais para honrar tais compromissos. Em 1925, a Segunda Conferência sobre o Ópio incluiu a Cannabis e o haxixe no rol de proibições.

Quatro décadas depois, no mundo do pós-Segunda Guerra, da Guerra Fria e da hegemonia dos EUA, a ONU aprovou a Convenção Única sobre Entorpecentes (1961), que levava o proibicionismo para a esfera mundial. Ao mesmo tempo em que instituíam um sistema internacional de controles e ações comuns, os Estados se comprometiam a incorporar aqueles princípios às próprias legislações nacionais. O ambicioso plano previu a eliminação do consumo ilegal do ópio e derivados no prazo de 15 anos, e de 25 anos para cocaína e Cannabis.

 

DROGAS E MISCIGENAÇÃO RACIAL

O avanço dos movimentos por direitos civis nos EUA após a Segunda Guerra Mundial provocou a reação da elite dirigente. O FBI teve um papel particularmente importante nessa história, sobretudo pelas decisões e ações de J. Edgar Hoover, primeiro diretor do poderoso órgão policial, entre 1935 e 1972.

Além dos “vermelhos” (os “inimigos externos”), minorias étnicas presentes na racializada sociedade dos EUA foram associadas a comportamentos impróprios e estigmatizados, de modo a reafirmar a segregação. A partir dos anos 1960, o “traficante” substituiria o gangster no imaginário social como tipo criminoso. Era uma política de controle social na qual a classe média branca era representada, inclusive no cinema, como vítima, enquanto os malvados traficantes pertenceriam às minorias raciais.

Harry Anslinger, 1962

Harry Anslinger, um homem com uma missão

Outro grande responsável pela política proibicionista adotada pelos EUA foi Harry J. Anslinger, comissário do Departamento Federal de Narcóticos entre 1930 e 1962. Tratava-se de pintar a maconha em uma “droga terrível” e pedir sua total proibição.

Primeiro, afirmava o comissário, porque os fumantes eram em sua maioria negros, hispânicos, filipinos ou artistas. Segundo, porque numa época em que o jazz ganhava a classe média branca, era preciso declarar guerra ao “ritmo satânico” e sua perigosa ameaça: a mistura de raças. O ritmo sensual levaria as mulheres brancas a se misturarem “com negros, artistas e quaisquer outros”.

A fixação na ideia de que as mulheres brancas buscariam relações sexuais com homens negros depois de fumarem maconha era a expressão de uma elite patriarcal que temia a miscigenação racial, num tempo em que as leis de segregação racial (Leis Jim Crow) sofriam crescente contestação.

 

“Chapados” contra o Sistema

Com a Guerra do Vietnã (1963-1975), a ordem social foi contestada por novas forças oriundas dos movimentos de juventude, dos hippies e dos Panteras Negras. A reação do governo foi combater os críticos pregando-lhes a imagem não apenas de “esquerdistas”, mas sobretudo de “drogados”. A visão negativa e criminal sobre as drogas voltava-se agora à associação entre periferias violentas e locais de tráfico, justificando uma vez mais que o problema social fosse tratado como problema policial, com ampla liberdade de ação para a repressão.

O presidente Richard Nixon usou pela primeira vez a expressão “guerra às drogas” em 1971. Ele qualificou o “abuso de drogas” como o “inimigo público número um”. Dois anos depois, foi criada uma nova agência federal: a Drug Enforcement Administration (DEA). Então, verbas cada vez maiores foram destinadas às políticas de repressão e encarceramento em massa.

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A DEA, polícia especial

A estratégia foi desenhada pelo conselheiro para assuntos domésticos do presidente, John Ehrlichman, que assim a descreveu, anos depois:

“(…) O governo Nixon tinha dois inimigos: a esquerda anti-guerra e os negros. Você entende o que estou dizendo? Nós sabíamos que não conseguiríamos tornar ilegal ser contra a guerra ou ser negro, mas ao fazer com que o público associasse os hippies com a maconha e os negros com a heroína, e criminalizando os dois pesadamente, nós poderíamos ‘quebrar’ essas comunidades. Nós poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, acabar com suas reuniões e difamá-los noite após noite nos noticiários noturnos.” E ainda acrescentou: “se nós sabíamos que nós estávamos mentindo sobre as drogas? É claro que sim.”

Em meados dos anos 1970 a cocaína começou a chegar em grandes quantidades ao mercado dos EUA, derrubando os preços em até 80%. O pó branco tornou-se uma febre entre a classe média branca. Ao mesmo tempo, surgia outra substância derivada da pasta de cocaína e ainda mais barata e fácil de produzir: o crack, imediatamente associado às comunidades mais pobres.  

 

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