UMA HISTÓRIA DA IMIGRAÇÃO NOS EUA – PARTE I

 

9 de março de 2020

A história dos Estados Unidos começa com a migração de europeus no início do século XVII. Os pioneiros colonos do Mayflower  atravessaram o Atlântico para fundar uma nova sociedade onde pudessem viver longe dos males que os afligiam no Velho Mundo: as perseguições de caráter religioso-político. Mas havia também aqueles que fugiam da extrema pobreza e que, com o tempo, se tornariam a parcela predominante dos colonizadores e, mais tarde, dos imigrantes. A “terra do trabalho e das oportunidades” converteu-se, ela mesma, em um lugar mítico.

Evitemos as armadilhas da ideologia nacionalista: a história dos Estados Unidos não começa com a história dos povos ameríndios. Os nativos não só foram excluídos desse empreendimento colonizador e expansionista, como foram sistematicamente combatidos até o ponto do extermínio. Já os africanos, trazidos à força como escravos, se tornaram um contingente de milhões de pessoas nunca verdadeiramente assimilado pela nação branca – como o atual movimento black lives matter nos lembra.

Parte fundamental da história dos Estados Unidos está relacionada à sua expansão territorial. Das treze colônias originais fundadas na costa do Atlântico, a marcha para o oeste empurrou as fronteiras até o oceano Pacífico, totalizando 50 estados organizados na forma de uma república federal. Nesse processo, os protagonistas foram os imigrantes europeus vindos de diferentes partes do Velho Mundo em diferentes épocas.

Entretanto, quando nos debruçamos sobre essa história, percebemos uma forte contradição entre a nação que se orgulha e exalta seu passado imigrante e, ao mesmo tempo, a tentativa permanente de bloquear esses mesmos fluxos imigratórios. No começo do século XX, um ditado imigrante: a América atrai, os americanos repelem.

Hoje, a nação simbolizada pela Estátua da Liberdade constrói muros em sua fronteira contra novos imigrantes; separa crianças de suas famílias em prisões desumanas; exclui povos inteiros com base em argumentos de segurança. A nação que emergiu da Segunda Guerra Mundial como a líder inconteste do Ocidente vira as costas para o passado recente e abraça, uma vez mais, o nativismo.

Para narrarmos essa longa história, iniciamos uma série em cinco partes: 1- País de colonos ou país de imigrantes?; 2 – O “perigo amarelo”; 3– Os mexicanos; 4– A Era dos Direitos Humanos; 5 – Guerra às drogas e ao terror global.

Mapa-expansão

Expansão territorial dos Estados Unidos: marcha para o oeste

 

PAÍS DE COLONOS OU PAÍS DE IMIGRANTES?

Existem duas correntes no pensamento sociológico norte-americano quando se trata de discutir o seu “caráter nacional”: uma enxerga um país de colonos; a outra, um país de imigrantes. A distinção é fundamental. Os defensores dos “colonos” são adeptos do nativismo, alinhados a ideias xenófobas e racistas, enquanto os que falam em “imigrantes” acreditam no melting pot: o cadinho de povos e culturas que resultou na nação pujante, empreendedora, liberal e capitalista na qual os EUA se transformaram.

A chegada de milhões de imigrantes vindos de diferentes partes do planeta desde cedo trouxe para a nação que se formava o debate sobre como tratar os recém-chegados e se, de fato, era desejável que eles pudessem entrar sem qualquer restrição. Se, na prática, os imigrantes iam se instalando e forjando novas comunidades, isso não evitava choques periódicos com os já estabelecidos, sobretudo quando os recém-chegados não podiam ser identificados aos Wasp (white, anglo-saxon, protestant), o cidadão ideal.

Os que entendiam as coisas desse modo acreditavam que a verdadeira nação acabaria dominada ou desvirtuada se não fossem impostos limites à imigração, sobretudo a grupos vistos como inassimiláveis, fosse por questões raciais (como os chineses), ou religiosas (como os judeus; hoje são os muçulmanos). Essa é a origem da principal corrente nacionalista da história norte-americana: a dos nativistas.

O nativismo é uma ideologia nacionalista específica dos EUA. Sua particularidade se deve ao fato dos americanos, ao contrário dos europeus, não poderem reivindicar uma pureza de sangue ancestral, uma vez que, naquele solo, todos eram recém-chegados.

Entretanto, com tantos milhões de recém-chegados tão diferentes entre si, a nação “verdadeira” seria a soma de todos eles – o melting potou apenas dos descendentes Wasp?

 

O pacto do Mayflower

Gravura-pais peregrinos

Wasp (white, anglo-saxon, protestant), o cidadão ideal

Os primeiros colonos ingleses chegaram à América do Norte no início do século XVII buscando liberdade de consciência, em oposição a uma Europa tomada pelas guerras de religião que opunham católicos e protestantes.

Trazidos na embarcação Mayflower, esses primeiros colonos, ao desembarcarem em Plymouth, assinaram um acordo conhecido como o Pacto do Mayflower, considerado por muitos o embrião da futura constituição. A ideia central é que todos ali eram seguidores da Bíblia e do cristianismo, independentemente da igreja a qual estavam ligados. Na essência, era um pacto em nome da liberdade religiosa (dos cristãos).

Na prática não foi bem assim. À medida que novos colonos chegaram, cada grupo religioso se instalou em um determinado ponto distante dos demais. Os quakers, por exemplo, logo deixaram Massachussets em direção à Pensilvânia, assim como os católicos se concentravam em Maryland. O que não existia eram conflitos armados entre as diferentes comunidades. Mas cada um no seu quadrado – ou na sua colônia.

A falta de um controle efetivo da metrópole inglesa sobre essas colônias do norte – a chamada Nova Inglaterra – favoreceu a autonomia legislativa local. Cada comunidade passou a criar leis próprias para regular e discriminar a entrada de novos habitantes, fosse por questões religiosas, preconceitos morais (recusa de prostitutas e condenados, por exemplo), ou condição de saúde (estar fora do padrão de normalidade costumava ser visto como castigo divino). Esses preconceitos influenciaram as leis criadas pós-independência.

 

A era das “Portas Abertas”

Após a independência, as antigas treze colônias levaram alguns anos para decidir se integrar a uma mesma unidade política. Esse contrato social inspirado pela filosofia iluminista foi materializado na Constituição elaborada em 1787, ainda em vigor.

Ali ficou definida a competência do governo federal (União) para tratar das leis de naturalização, mas o tema da imigração continuou em aberto. A primeira lei de naturalização, aprovada em 1790, concedia esse direito apenas a “homens brancos sem condenação legal”. Leis complementares posteriores estabeleceram prazos de moradia e a renúncia a lealdades prévias (como títulos de nobreza) como pré-requisitos para a naturalização. E, enquanto a Europa mergulhava nas Guerras Napoleônicas, em 1798 a Lei contra Inimigos Estrangeiros permitiu a expulsão de estrangeiros considerados perigosos.

Até 1820 não houve registro oficial e unificado da quantidade de imigrantes que chegaram; estima-se 250 mil entradas entre 1790 e 1820. Esses números não incluem os africanos escravizados, que não podem ser classificados como imigrantes e, de qualquer modo, deixaram de chegar ao país a partir de 1808, quando foi proibido o tráfico.

De 1820 a 1880 entraram pelos portos, oficialmente, mais de 10 milhões de imigrantes, sobretudo na costa leste. Parte majoritária desse contingente era formada por irlandeses católicos. Fugindo inicialmente da fome provocada pela praga da batata, cerca de 20% da população irlandesa emigrou para a América entre 1840 e 1850. No mesmo período houve também uma expressiva imigração alemã, majoritariamente católica.

Em ritmo cada vez mais acelerado, de 1882 a 1914 chegaram cerca de 20 milhões de imigrantes. Entretanto, o Reino Unido, a Escandinávia e mesmo Alemanha e Irlanda deixaram de ser os principais pontos de emigração. Nesse período, predominaram italianos, húngaros, poloneses, russos (os dois últimos com amplas maiorias judaicas). Essa segunda onda alterou significativamente a composição étnica e religiosa da sociedade dos Estados Unidos.

Postal - Estátua da Liberdade

Aos seus pés, o poema de Emma Lazarus: “Give me your tired, your poor, your huddled masses yearning to breathe free.” (Tragam-me seus cansados, seus pobres, suas massas amontoadas ansiando por liberdade.)

Em 1900, a cidade de Nova York tinha tantos residentes irlandeses quanto Dublin, a capital da Irlanda; abrigava mais italianos do que qualquer cidade, exceto Roma; mais poloneses do que qualquer cidade, exceto Varsóvia; mais judeus do que qualquer cidade no mundo; e um crescente número de eslavos, lituanos e escandinavos.

Enquanto esse imenso contingente entrava por Nova York para depois rumar ao oeste em busca de terras e oportunidades, na costa oeste milhares de chineses chegavam a cada ano para trabalhar nas ferrovias e nas minas recém-descobertas na Califórnia. Sem contar os mexicanos, que realizavam um movimento sazonal, ou seja, chegavam para as colheitas e depois partiam, não estando sujeitos a nenhum controle.

 

Evolucionismo e racismo

Em meados do século XIX Charles Darwin publicava na Europa a Origem das Espécies. O conceito de evolução das espécies que ele apresentava foi capturado por aqueles que buscavam explicar cientificamente as diferenças humanas por meio de teorias raciais. Tais teorias afirmavam haver raças mais e raças menos evoluídas, hierarquicamente organizadas, sendo a cor da pele o indicador da evolução, em uma escala cromática que ia das peles mais escuras em direção às mais alvas.

O racialismo converteu-se em ideologia política – o racismo – e tornou-se a justificativa central do movimento neocolonialista lançado pelos Estados europeus em direção à Ásia e África: era a “missão civilizadora do homem branco”. O pensamento racialista também condenava a miscigenação e falava em “pureza racial” como um tesouro a ser preservado em nome da humanidade.

Nos EUA, nas universidades e junto à elite intelectual – na maioria vinculada às tradicionais famílias Wasp – o racialismo servia para explicar coisas tão díspares como o “caráter” anglo-saxônico e branco do povo americano e a exclusão social dos afrodescendentes e ameríndios. Foram essas cabeças estudadas e localizadas em posições de poder que ajudaram a dar consistência intelectual a um novo movimento político: o nativismo.

O encontro entre os preconceitos cotidianos vividos pelos trabalhadores de diferentes origens e o racismo intelectualizado das elites começou a produzir resultados concretos na forma de partidos e leis que iam desenhando o perfil ideal do “homem americano”, definindo critérios de pertencimento e exclusão: se os negros não eram livres, não podiam ser cidadãos; os chineses eram livres, mas “amarelos”, portanto também não poderiam mergulhar no melting-pot.

 

O movimento nativista

Foi em meio à primeira grande onda imigratória pós-independência que surgiram movimentos contrários à política de “portas abertas”. A xenofobia era justificada pela crença na excepcionalidade da nova nação americana. Esse excepcionalismo apresenta duas vertentes: a secular, que preza o modelo político republicano, democrático e liberal (desenvolvido originalmente ali); e a mais enraizada ainda hoje, a vertente religiosa, expressa no célebre “Destino Manifesto”.

Quando os irlandeses e alemães católicos começaram a criar suas próprias cidades, bairros e, principalmente, igrejas, as hostilidades extrapolaram as palavras e tornaram-se atos. Em primeiro lugar disseminou-se a teoria conspiratória sobre a existência de um plano papista para dominar o país; em seguida, multiplicaram-se os questionamentos sobre a capacidade dos católicos se integrarem a uma sociedade liberal e individualista, uma vez que sua fidelidade maior era devida não às próprias consciências, mas ao papa. Desconfianças e provocações mútuas resultaram em conventos e igrejas atacados e incendiados, e pastores e pregadores agredidos fisicamente. Nenhum grupo assumia a responsabilidade e ninguém era punido; o anticatolicismo tornou-se “natural”.

Por volta de 1850, os vários grupos anti-imigração se articularam em um movimento mais amplo conhecido como Know-Nothing. Inicialmente, era uma irmandade secreta fundada em Nova York: a Ordem do Pendão Semeado de Estrelas, em referência à bandeira. A organização só aceitava homens brancos, protestantes e nascidos na América, todos unidos pela defesa das instituições do país, em oposição à Igreja de Roma. Sua regra de ouro era o dever de negar qualquer conhecimento sobre a associação ou suas atividades, de onde derivou o know-nothing (“não sei de nada”).

Cartaz nativista

No cartaz de propaganda da ordem do Pendão Estrelado, a ironia amarga fica por conta dos indígenas, invocados como símbolos dos americanos originais

Em dois anos a irmandade pulou de menos de 50 integrantes para mais de um milhão. Considerando-se que, à época, o eleitorado era de seis milhões de homens, fica evidente a força do movimento e sua influência na política nacional, expressa pela eleição de governadores, prefeitos (em Boston, Filadélfia e Chicago, por exemplo) e centenas de congressistas.

Eles defendiam a ampliação do período de residência para 14 anos antes de se obter a naturalização e a proibição de estrangeiros assumirem quaisquer cargos públicos. No Congresso, tentaram aprovar leis proibindo católicos de assumir cargos públicos; vinculando a concessão de cidadania ao domínio da língua inglesa; exigindo residência durante 21 anos antes de conceder o direito de voto.

O Know-Nothing logo criou seu braço político, o Partido Republicano Americano (American Republican Party, 1843), mais conhecido como Partido Nativista Americano (Native American Party), até se tornar apenas Partido Americano (American Party), por volta de 1855. Na eleição presidencial de 1856, o partido lançou a candidatura do ex-presidente Millard Fillmore, que obteve 22% dos votos.

A Guerra Civil (1861-1865) e a abolição da escravidão (13ª Emenda, 1865) enfraqueceram o Partido Americano, que praticamente colapsou. A demanda por mão de obra, tanto nos estados do norte quanto do sul, impediu a aprovação de leis restricionistas. Por outro lado, estavam surgindo as primeiras entidades de trabalhadores e, em comum, o discurso contra “quem rouba o nosso trabalho”, fazendo com que essas entidades frequentemente se unissem aos nativistas. No caso da restrição à entrada dos chineses, tal junção seria muito evidente.

No final do século XIX, mais de cem publicações genericamente nativistas circulavam pelo país.

De acordo com o cientista político Wellington G. do Amaral Júnior, a ideologia nativista apresenta três características fundamentais: o anticatolicismo, o antirradicalismo e o racismo. Os nativistas, em sentido estrito, são contra qualquer imigração – com a óbvia exceção dos Wasp. Restricionistas ou exclusionistas são nativistas em sentido mais genérico, opondo-se à imigração de grupos específicos rotulados como inassimiláveis ao “modo de vida americano”.    

 

A imigração como política de Estado

A atuação direta da União sobre a questão da imigração acompanhou a própria consolidação do governo federal, originalmente constituído por uma máquina burocrática muito enxuta e focada em dois assuntos, tal como previa a Constituição: comércio exterior e política externa. Com o tempo e a expansão territorial para o oeste, a autonomia legislativa estadual gerou uma multiplicidade de leis, às vezes tão conflitantes entre si que a intervenção federal se tornou fundamental, como ficou evidente na Guerra Civil, com a abolição da escravidão.

Desde o início, a questão imigratória foi alvo de debates e dissensos, refletindo os humores estaduais. Na era das “portas abertas”, o governo federal estabeleceu uma única lei específica sobre imigração, em 1818, instituindo a contagem do número de ingressantes a cada ano e definindo regras mínimas de higiene para as embarcações de transporte dos imigrantes.

Quando irlandeses e alemães começaram a chegar em massa, estados como Massachussetts e Nova York impuseram taxas para permitir o desembarque dos imigrantes a fim de dificultar-lhes a entrada. Tal prática acabou contestada na Corte Suprema e foi revogada em 1849; o tribunal decidiu que apenas a União poderia tratar da matéria. Foi a primeira vez que se debateu a fundo a competência para a criação de leis imigratórias no país. Mesmo assim, não houve uma postura mais intervencionista de parte do Congresso ou do Executivo.

Encerrada a Guerra Civil, o Partido Republicano, de tendências liberais, assumiu o controle político dos EUA por décadas. Já o Partido Democrata, então identificado com o escravismo sulista, viveu um período de pouca influência no governo federal.

Após a aprovação da 13ª Emenda, a situação legal da população negra continuou sujeita a contestações e artifícios legais destinados a barrar-lhes o acesso à cidadania plena. Por isso em 1868 foi ratificada a 14ª Emenda, responsável por definir um princípio fundamental para a história futura dos Estados Unidos: a nacionalidade ficava definitivamente vinculada ao chamado jus soli, ou seja, qualquer pessoa nascida em solo americano, independente de raça ou religião, seria considerada cidadã. Isso valia tanto para ex-escravos e seus descendentes quanto para os imigrantes.

Escola publica-simbolos

No dinal do século XIX, o estabelecimento do ensino público obrigatório serviu ao empreendimento nacionalista de ensinar a língua inglesa a todos, bem como a cultuar símbolos pátrios como a bandeira, o hino e seus líderes, de modo a facilitar a americanização e dissolver as diferenças

 

A federalização das políticas de imigração

Abolida a escravidão, os Estados Unidos finalmente se tornaram uma única nação, conduzida em seu desenvolvimento pelo vitorioso projeto liberal nortista. A União conseguiu, desse modo, legislar de modo mais convergente, especialmente como no caso das políticas imigratórias. A unificação das normas indica a maturação de um “modelo nacional” a ser implementado – ou defendido, segundo os nativistas.

A liberalidade do governo federal foi deixada de lado quando o país passou a receber um número cada vez maior de imigrantes chineses, no último terço do século XIX. Os “amarelos” despertaram xenofobia generalizada. Os novos imigrantes passaram a ser vistos como absolutamente estranhos e inassimiláveis. O resultado é que os chineses foram o primeiro grupo nacional a ter sumariamente negado o direito à imigração para os Estados Unidos, de acordo com a Lei de Exclusão dos Chineses, de 1882.

Se o caso dos chineses é paradigmático pela generalização baseada em preconceito racial, isso não significa que os defensores do nativismo não aprovassem leis mais individualizadas para os demais imigrantes, como a Lei de Imigração, também aprovada em 1882. Em nome das despesas para a implantação de medidas de controle e apoio aos recém-chegados, o Congresso estabeleceu uma taxa per capita a ser paga na chegada. Depois, em nome de garantir que a estirpe nacional se mantivesse empreendedora e vitoriosa, os imigrantes eram submetidos a um teste de alfabetização no qual deveriam ler um parágrafo, em texto da própria língua e não obrigatoriamente em inglês. Se um homem fosse alfabetizado e sua esposa e filhos não, todos obtinham acesso ao país.

A questão da língua aparece como tema constante nas discussões no Congresso. Nativistas e restricionistas tentavam restringir o acesso apenas aos alfabetizados em inglês, brancos e protestantes, ou gente intelectualmente qualificada capaz de aprender rapidamente. As várias tentativas de impor testes de domínio da língua inglesa foram vetadas na última hora por presidentes como Theodore Roosevelt e William H. Taft.

A lei de 1882 apresentava um último pré-requisito: uma avaliação física e moral dos solicitantes. Estavam sumariamente excluídos os portadores de deficiências físicas e mentais; mães solteiras; prostitutas; alcoólatras; jogadores; homossexuais declarados; criminosos condenados; anarquistas; socialistas…  Ao mesmo tempo, eram admitidos imigrantes condenados por delitos políticos (definidos como delitos de consciência), refletindo a crença americana de que o país era um refúgio para os perseguidos pelas tiranias. Nesses casos, os imigrantes eram dispensados da prova de alfabetização.

 

Enforcement

A necessidade de arrecadar dinheiro, organizar provas, inspecionar embarcações e avaliar os imigrantes foi o que motivou o efetivo envolvimento do governo federal nas políticas de imigração. O respeito à lei exigia fiscalização; exigia funcionários com poder de polícia dedicados à execução das normas e meios concretos para realizar a tarefa – isto é, o chamado enforcement. Por isso, em 1891 o governo federal criou a Bureau de Imigração, bem como seu braço operacional, o Serviço de Imigração.

Inicialmente o Bureau de Imigração estava subordinado ao Departamento de Comércio e Trabalho (a partir de 1913, somente Departamento do Trabalho), indicando que a princípio os recém-chegados eram vistos como mão de obra para uma economia em expansão. Esse era o motivo pelo qual muitas das propostas restricionistas não vingavam. O lobby pró-imigrantes era formado por muitos magnatas das indústrias, minas e ferrovias. Na outra ponta, as associações de trabalhadores costumavam cerrar fileiras com nativistas e restricionistas, a fim de evitar a concorrência no mercado de trabalho.

Em 1891 entrou em vigor a lei da inspeção sanitária. Em defesa da saúde pública (na qual estavam inclusas as mesmas subjetividades morais previstas na lei de 1882), instituiu-se a triagem médica do recém-chegados. Eis a origem do famoso posto de inspeção na pequena ilha de Ellis, implantado em 1892. Até sua desativação em 1954, a ilha de Ellis foi a porta de entrada aos EUA. Mais da metade da atual população americana, de quase 330 milhões, tem antepassados que entraram no país pela cidade de Nova York entre as décadas de 1890 e 1920

A sujeição de todos os corpos ao olhar de um estranho, que tinha o poder de decidir o destino de cada um após a longa travessia do Atlântico, foi uma prática fundamental para afirmar a autoridade dos novos agentes de imigração. Aqueles homens receberam poder discricionário para aplicar as leis e, com o tempo, obtiveram cobertura legal  destinada a protegê-los de seus atos de discriminação.

Exame medico em Ellis Island

Fila para o controle médico na ilha de Ellis

 

Entre 1892 e 1907, o Serviço de Imigração deportou poucas centenas de estrangeiros a cada ano; a média subiu para 2 mil a 3 mil por ano entre 1908 e 1920, a maioria retirada de asilos, hospitais e prisões. Era um contingente estatisticamente insignificante, quando se considera que, entre 1890 e 1914, cerca de um milhão de pessoas entraram oficialmente no país a cada ano. Havia, ainda, um imenso movimento sazonal na fronteira com o México que não fazia seu caminho até as estatísticas. 

Em 1924 o exame físico deixou de ser realizado no posto de Ellis e o imigrante deveria obter o visto em seu próprio país. A pequena ilha converteu-se, então, em ponto de controle das cotas de imigração, transformando-se em centro de detenção e deportação de estrangeiros excedentes ou indesejados.

 

Portas fechadas

Foi com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, que, de fato, a preocupação com o controle das fronteiras tornou-se objeto de atenção de parte do governo da União. As decisões tomadas nesse período responderam mais a razões de controle territorial e segurança nacional do que à argumentação racista dos nativistas. Em 1915, o presidente Woodrow Wilson pediu a aprovação de leis duras em nome da segurança nacional e do patriotismo. Em 1917 o Congresso aprovou o Ato de Espionagem e, em 1918, o Ato de Sedição.

Uma nova Lei de Imigração, de 1917, complementou a anterior. Foram adicionadas seis novas categorias à lista de deportáveis; ampliou-se para cinco anos o risco de deportação de um imigrante recém-chegado e, no caso de alguns grupos específicos, eliminou-se qualquer prazo. O custeio da burocracia necessária a todos esses controles seria pago pelos imigrantes: a taxa de admissão de meio dólar prevista na lei de 1882 foi ajustada para oito dólares.

Palmer Raids, 1919-1920

Os maiores alvos da lei foram os anarquistas e comunistas. No início da década de 1920, por exemplo, houve brutal repressão à militância trabalhista, culminando com as Incursões Palmer (Palmer Raids), durante o inverno de 1919-1920, quando as autoridades prenderam dez mil supostos anarquistas e deportaram cerca de 500

Mas a lei mais representativa da postura chauvinista adotada pelos Estados Unidos no entre-guerras foi a Lei da Imigração de 1924 e sua predecessora, a lei de 1921.

O insucesso dos ideais expressos nos 14 Pontos de Wilson no cenário europeu reavivou o sentimento isolacionista e o discurso nativista na sociedade americana. Em 1921 foi eleito um Congresso bastante restricionista e o Partido Republicano retomou o controle do Executivo por toda a década que terminou no crash da Bolsa de Nova York, em 1929.

Fechando-se definitivamente à enxurrada de imigrantes empurrada pela guerra e pelo desmoronamento dos impérios europeus no leste, a nova legislatura aprovou uma lei radical. Por ela, atribuiu-se um número máximo de imigrantes a cada país, dividido em cotas de 3% do número de pessoas da mesma nacionalidade contados no censo de 1910. O resultado foi reduzir a imigração de italianos e europeus orientais (sobretudo judeus) a menos de um quarto dos níveis anteriores a 1914.

Mas os nativistas queriam mais, e os debates no Congresso prosseguiram. Nas palavras do senador restricionista Ellison DuRant Smith, da Carolina do Sul: “Estamos aumentando a tal velocidade que, no curso natural das coisas, em poucos anos os recursos agrários, os recursos naturais, serão absorvidos pelo aumento natural de nossa população. Parece-me agora que devemos resguardar as reservas e os recursos virgens do país das multidões que correm a  invadi-los, de modo a garantir a multiplicação da nossa população.”

Já o deputado Robert H. Clancy, representante de Detroit, rebatia: “Os Know-Nothing – ancestrais diretos da Ku-Klux Klan – denunciaram amargamente os irlandeses e alemães como vira-latas, escória estrangeira e uma ameaça para nossas instituições, assim como outros grandes ramos da raça caucasiana de história e antecedentes gloriosos são repreendidos hoje. Todos são inassimiláveis, diabos estrangeiros, porcos, inadequados para se associarem com o grande povo escolhido – uma forma de orgulho e alucinação nacional tão antiga quanto a divisão de raças e nações. Hoje, porém, são os italianos, espanhóis, poloneses, judeus, gregos, russos, balcânicos e assim por diante, que são os leprosos raciais (…).”

No fim, a nova Lei de Imigração de 1924, oficialmente Lei Johnson-Reed, aprovada por apenas seis votos de diferença, era ainda mais dura que a anterior. E incluía duas leis complementares: a Lei das Origens Nacionais e a Lei de Exclusão dos Asiáticos. De forma explícita, as concepções de raça e eugenia – em sua fase hegemônica – sustentavam a política de imigração adotada pelo Estado. A partir daquele momento haveria uma limitação ainda maior para o número de imigrantes admitidos a cada ano. Mas, sobretudo, haveria uma limitação por país ou região do globo.

Charge Cotas 1921

Lei de cotas de 1921: os 3% admitidos ainda seriam reduzidos para 2%

 

Cotas, racismo e nativismo

As cotas evidenciavam qual fenótipo se desejava favorecer ou impedir que se espalhasse: a concepção eugênica de rejeitar pessoas consideradas fora dos padrões de normalidade e moralidade. Seriam admitidos 2% do número de pessoas de mesma origem nacional de residentes nos EUA em 1890. Os alvos eram italianos e judeus, cujas entradas ganharam força depois dessa data. Veja a tabela com as cotas por país.

Outra novidade instituída por essa lei foi a Guarda de Fronteira, subordinada ao Serviço de Imigração, para reprimir a figura do “imigrante ilegal”. Por fim, o exame médico da chegada foi substituído pelo visto previamente concedido. A inspeção era sobre documentos, não sobre corpos, mas na prática as avaliações mantiveram-se subjetivas e os preconceitos continuaram a definir a admissão e deportação dos imigrantes.

A partir de 1925 como efeito das novas regras e controles, o número de deportações explodiu. Deportar tornou-se rapidamente uma das principais atividades do Serviço de Imigração. Em 1927, para tornar a expulsão mais eficiente, o Serviço de Imigração permitiu aos ilegais sem registros criminais partirem voluntariamente, economizando tempo e custo do processo formal de deportação. O número de estrangeiros expulsos aumentou de 2.762, em 1920, para 9.495 em 1925 e 38.795 em 1930. Mais de metade era formada por estrangeiros com documentação irregular, sem contar os que partiam espontaneamente.

Em 1927 o Escritório de Imigração relatou que o “contrabando de estrangeiros ilegais” era “uma indústria lucrativa só ultrapassada pelo contrabando de bebidas alcoólicas”. E enfatizou: “O estrangeiro contrabandeado é indubitavelmente o menos desejável. O que mais possa ser dito acerca dele: quer ele seja enfermo ou não, quer ele tenha opiniões contrárias a nossas instituições, ele é, na melhor das hipóteses, um violador da lei desde o começo.”

A convicção de que o imigrante sem documentação era o estrangeiro menos desejável de todos revelava uma nova concepção da nação, que colocava o princípio de soberania nacional acima de tudo. A partir de então, o controle sobre o território tornou-se pedra angular das políticas de imigração. A necessidade de mão de obra; a reunião familiar; o refúgio da perseguição tornaram-se secundários.

Hoje, quase um século depois, a linguagem oficial americana reativa as frases e conceitos daquela época.

Melting-pot filtrado

Na legenda da charge: “Não podemos digerir a espuma” (que também pode ser traduzida por escumalha e escória). Na espuma flutuam efeitos da Primeira Guerra Mundial, como bolchevismo, anarquia, ideais antiamericanos.

 

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