“Essa Mulher”, álbum da cantora Elis Regina, foi lançado em 1979, mesmo ano da Lei de Anistia, um marco legal que sinalizava a crise da ditadura militar brasileira. Elis gravou a música “O Bêbado e a Equilibrista”, composta por João Bosco e Aldir Blanc, falando da esperança de um novo tempo no qual o “irmão do Henfil” (Herbert de Souza, o Betinho) e “tanta gente que partiu num rabo de foguete” pudessem voltar do exílio.
Naquele ano e nos seguintes, “O Bêbado e a Equilibrista” foi tocada nas rádios e TVs, e cantada por todo um povo que pedia por democracia. O hino da anistia, como ficou conhecida a canção, dizia também sobre a “dor pungente de Marias e Clarices” legada pela perseguição política, a tortura e o desaparecimento de entes queridos.
Prisões ilegais e execuções sumárias foram levadas a cabo pelo Estado brasileiro durante os anos do regime militar, que se estendeu de 1964 a 1985. Mas a ditadura de fato começou a acabar em 1979, com a aprovação da Lei de Anistia.
A lei possibilitou o retorno dos exilados e a liberdade (gradual) de opinião. A partir de 1979 os exilados começaram a voltar e a atividade civil foi reocupando a cena política. José Sarney foi o primeiro presidente civil, embora indiretamente eleito pelo Congresso Nacional. Apenas em 1989 o Brasil pôde escolher seu presidente pelo voto popular. Nunca mais se falou em ditadura. Foi o acordo: os militares sairiam do poder e ninguém seria punido. Nossas elites civis e militares, seguindo sua mais longeva tradição, promoveram uma grande conciliação por cima para evitar processos de transição política mais traumáticos, do tipo capaz de colocar o povo nas ruas.
A emergência do bolsonarismo como convergência real de diferentes tendências na sociedade brasileira, com forte apelo aos meios militares, demonstra que o significado da ditadura permanece mal compreendido por grande parcela dos brasileiros. Ao aceitarmos um acordo pelo qual o país deixa de lidar com suas próprias sevícias, de cumprir acordos internacionais de combate à tortura, perdemos a chance de educar política e civicamente a sociedade para o significado de viver na democracia. Foi esse o preço da impunidade de agentes do Estado que, em toda a cadeia de comando, violavam conscientemente direitos humanos básicos.
É por isso que, tanto tempo depois, precisamos falar sobre a ditadura e também sobre a Lei da Anistia.
João Figueiredo sancionava, em 28 de agosto de 1979, a Lei da Anistia
Sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo último presidente da ditadura militar, o general João Figueiredo, a Lei da Anistia completa 44 anos. Ela selou o compromisso pelo fim do regime militar, acelerado pela crise do “milagre econômico” de tipo estatista que era seguido aqui. Mas o caminho à democracia seria tutelado pelos próprios ditadores.
Ernesto Geisel, general que antecedeu Figueiredo na presidência, comprometeu-se com uma abertura “lenta, gradual e segura”. Era a resposta à mobilização da sociedade civil e lideranças políticas da oposição organizadas no Movimento Democrático Brasileiro, o MDB, que cresciam desde 1974.
Os militares começaram a se preocupar em como promover uma democratização que não viesse acompanhada de “revanchismo” – como descreviam e muitas vezes ainda descrevem os pedidos de julgamento dos responsáveis por violações de direitos. A solução foi uma Lei de Anistia que incluiu “todos quantos cometeram crimes políticos ou conexos com estes”.
O jurista Dalmo Dallari, defensor da democracia e das liberdades fundamentais, disse saber, naquele momento, ser inevitável permitir a criminosos participantes do governo escaparem de qualquer punição. O acordo para proteger os torturadores era condição inegociável para beneficiar os perseguidos e suas famílias. Favorecendo os que se aproveitaram de uma função pública para cometer crimes, usou-se uma artimanha jurídica: foram incluídos na redação do texto a concessão de anistia àqueles que tivessem cometido “crimes políticos” ou “conexos”.
A palavra permite alegar que aquele que matou alguém numa sessão de tortura estaria perdoado porque seu objetivo não era matar, mas combater um adversário político. Assim se chegou à Lei da Anistia, que sinalizava para a futura transição de poder dos militares para os civis. E, incluindo essa mesma palavra, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a Lei da Anistia em 2010, recusando pedidos de revisão para que o Estado brasileiro cumprisse os compromissos com os tratados que assina e punisse os responsáveis por tortura. O STF reafirmou a legitimidade do grande pacto pela impunidade dos autores de crimes contra a humanidade.
A articulação reacionária que instaurou a ditadura civil-militar inscreveu-se em um contexto muito agitado. A crise política que precedeu o golpe denunciava o colapso do populismo, um movimento político modernizante, mas de raízes conservadoras, que havia emergido na América Latina nos anos 1930, mas não respondia mais aos novos atores políticos da Guerra Fria.
Depois da Revolução Cubana, em 1959, por toda a América Latina despontaram movimentos revolucionários e, como resposta, brutais ditaduras militares. Os Estados Unidos formularam a Doutrina de Segurança Nacional e a disseminaram pelo continente americano por intermédio das forças armadas nacionais.
O inimigo a ser combatido eram os grupos de esquerda, cujas atuações poderiam desencadear novas revoluções: a segurança nacional encontrava seu foco no “inimigo interno”. No Brasil, a doutrina coagulou-se na Escola Superior de Guerra, centro de estudos do Exército para o planejamento da defesa nacional.
A ditadura brasileira cerceou as liberdades públicas e os direitos políticos, sufocando as diversas formas de expressão da sociedade civil. Por meio de uma série de Atos Institucionais, que culminaram no AI-5 de 1968, o poder militar perverteu a legalidade na Constituição de 1967 – ela própria elaborada por um Congresso bastardo que, em sua composição, refletia a vontade do regime militar.
O aniversário da Lei de Anistia nos convida a refletir sobre o fato de, em menos de meio século, parte da nação ter voltado a flertar com o golpismo militar. Ver e rever os acontecimentos, como faz a historiografia, permite compreender as operações de revisionismo histórico destinadas a absolver, moral e politicamente, a ditadura militar brasileira.
As etapas do processo de abertura política foram planejadas para atender ao ritmo cauteloso ordenado pelo presidente Geisel. Jarbas Passarinho, da Arena (Aliança Renovadora Nacional), então líder do governo no Senado, admitiria que “o gradualismo, planejado como se fosse uma operação de Estado-Maior, deveria prosseguir pela anistia e a reformulação partidária”.
José Sarney, à época presidente da Arena e muito integrado ao regime, depois candidato a vice-presidente na chapa oposicionista de Tancredo Neves (PMDB) e presidente por fatalidade em 1985, fez registro similar. Afirmou que “tudo aquilo (a anistia e o fim do bipartidarismo) era uma coisa feita segundo um planejamento rígido, em nível de Estado-Maior, pelo Golbery (do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil da Presidência) e pelo presidente Geisel”.
O planejamento da abertura considerava que a anistia, além de ser uma medida considerada simpática pela opinião pública, serviria para dividir o MDB, como admitiu Passarinho. O regime tinha interesse em anistiar líderes como Brizola, Arraes e Mário Covas. Isso levaria ao enfraquecimento eleitoral do MDB como o único partido que agregava diferentes correntes oposicionistas. A Lei de Anistia deveria preceder a reformulação partidária, e foi o que aconteceu.
Figueiredo encaminhou um projeto de lei ao Congresso que excluía “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”, chamados genericamente pelos militares de “terroristas”. Uma hipótese plausível é a de que a exclusão desse grupo tenha sido uma estratégia dos militares para desviar a atenção do artigo que consideravam mais importante: aquele destinado a afastar a ameaça do “revanchismo”.
O presidente do Senado durante o governo Geisel foi Petrônio Portella, outro expoente da Arena. Ele conduziu a chamada “missão Portella”, a tentativa de comprometer os setores mais moderados da oposição com a abertura política segundo a fórmula do governo. Depois, como ministro da Justiça no governo Figueiredo, Portella foi responsável pelo projeto de lei para a anistia. Golbery, o grande estrategista militar de toda essa operação, elogiou o senador porque ele sabia deixar claro “o que queremos de fato, o que nunca cederemos ou até onde poderemos negociar e ceder”. Impedir o “revanchismo” – como eles chamam a punição aos torturadores e abusadores – era um ponto em que os militares nunca cederiam.
A vaga figura jurídica dos “crimes conexos” era a bala de prata dos militares e sua interpretação exigia extrema habilidade de manipular. A fórmula confusa revelou que o aparato repressivo que sustentava a ditadura não estava apenas preocupado com a impunidade aos torturadores. Ao garantir perdão aos “crimes políticos ou praticados por motivação política”, o projeto garantia que, no futuro, nenhum agente do Estado seria punido em função de outros crimes cometidos durante a ditadura.
Mesmo depois de 1979, dezenas de atentados foram registrados contra políticos opositores, a imprensa e entidades civis. Seus autores eram grupos aglutinados no porão da ditadura, o Centro de Operações de Defesa Interna, o DOI-Codi.
Em 30 de abril de 1981, pelo menos 20 mil pessoas estavam na comemoração do Dia do Trabalho, no pavilhão Riocentro, no Rio de Janeiro. O plano dos militares deu errado
O mais notável foi o atentado à bomba que integrantes da chamada “linha dura” perpetraram contra uma comemoração do Dia do Trabalho, em 1981, no pavilhão do Riocentro, no Rio de Janeiro. A imprensa exerceu um papel exemplar e, mesmo sem um Judiciário e Ministério Público independentes, revelou a farsa que pretendia atribuir o ato bárbaro à esquerda.
O desagrado no meio civil seria “irrelevante” e “passageiro” porque, apesar dos embates sobre o assunto na sociedade civil, prevaleceu o consenso de que o acordo que levou à anistia deveria se transmutar em esquecimento. A anistia deveria abranger, de uma forma ou de outra, os que estiveram envolvidos no processo de “exacerbação dos ânimos”. Foi esse o caráter do parecer do Instituto de Advogados Brasileiros encaminhado ao deputado federal e presidente do MDB, Ulysses Guimarães.
A posição foi endossada por Therezinha Zerbine, assistente social, fundadora do PDT e líder do Movimento Feminino pela Anistia, que firmou um documento no qual apelava ao MDB para que votasse favorável à proposta do governo. O que interessava era a “felicidade do povo” e não uma “inútil e contraditória confrontação”. Devido à Lei da Anistia, qualquer militar jamais se sentou no banco dos réus em razão dos crimes cometidos durante a ditadura.
A Lei da Anistia resultou de um processo de transação política. A oposição, basicamente organizada no MDB, sabia que a redemocratização só poderia acontecer com a cooperação dos militares. E a opinião pública estava reaparecendo e influenciando as esferas de poder.
Ato pela Anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979
No Congresso, após intensas negociações, incertezas e vaivéns, Arena e MDB votaram o substitutivo apresentado pelo deputado arenista Djalma Marinho, que propunha estender a anistia a todos os presos e condenados por atos de exceção. Por cinco votos de diferença, 206 contra 201, o Congresso rejeitou a alteração.
A proposta oficialista, parcial e restritiva, foi aprovada com algumas modificações que ampliaram seu alcance, beneficiando dirigentes sindicais cassados. A emenda contou com o apoio de 15 deputados da Arena. O resultado mostrou que a anistia ampla, geral e irrestrita era uma causa capaz de dividir até o partido de sustentação do governo.
O entendimento político, capitaneado por personalidades conciliadoras como Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, justificou o perdão aos torturadores como o preço a pagar para que o país voltasse à normalidade política. Poderia haver futuras tentativas de reabrir a questão, especialmente por parte daqueles mais próximos das vítimas da tortura. Mas, aquele momento foi, para o melhor ou o pior, uma lição da política sobre a arte da conciliação.
O Supremo Tribunal Federal foi provocado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a se pronunciar sobre a constitucionalidade da Lei da Anistia, em 2008, 29 anos depois da sanção da lei e 20 anos após a promulgação da Constituição de 1988. A posição da OAB, na época da negociação do texto legal, era diferente da que inspirou o pedido protocolado na Corte.
Em 1979, junto ao consenso majoritário que embalava a sociedade, a OAB havia trabalhado na negociação para garantir que a lei de anistia incluísse os criminosos da repressão e os considerados “terroristas” pela ditadura. Já sob a democracia, a entidade pediu ao Supremo para excluir “os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar”.
Tanto o tema quanto a decisão do Supremo, evidentemente, reverberam em questões técnicas de natureza jurídica, mas sobretudo na história e na política. Por um lado, amparando o pedido de revisão, há o argumento de que a Constituição de 1988 tornou o crime de tortura inafiançável, sendo insuscetível de graça ou anistia. Por outro, replica-se que o princípio da irretroatividade da lei penal mais severa assegura aos torturadores o benefício concedido pela lei. Em 2010, a maioria do STF ratificou a lei de 1979, defendendo o argumento principal de que o Poder Judiciário não estava autorizado a dar outra redação diversa à Lei da Anistia.
A petição inicial solicitou ao STF que interpretasse a Lei da Anistia de acordo com a ordem democrática vigente, no sentido de que a lei não se estendesse aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão. Ainda há recurso sobre o assunto para ser julgado, mas não há previsão para que aconteça. Paradoxalmente preocupado com a governabilidade, a estabilidade ou a segurança, o tribunal supremo isentou as Forças Armadas de suas responsabilidades e fechou as portas à cidadania que cobra respostas pelos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.
A decisão do Supremo propiciou ao Brasil descumprir os compromissos assumidos por meio dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos. Grave, também, foi a postura do Congresso Nacional, casa da soberania popular, que não exerceu a competência e autoridade que lhe cabiam para revisar a lei e enfrentar o problema legado pela conciliação de 1979.
No caso, há nítida diferença entre o Brasil e seus vizinhos Argentina e Chile, que processaram e julgaram os agentes públicos envolvidos nos aparatos de tortura das ditaduras, além de manterem políticas permanentes de memória e educação cívica para a democracia. Ao contrário de enfrentar a ditadura como uma experiência coletiva, a sociedade brasileira dissimulou e esqueceu. Eis aí uma das causas mais relevantes para a relativização sobre o que, de fato, foi o regime militar.
Os rastros deixados pela tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, em Brasília. Os golpistas pediam “intervenção militar com Bolsonaro no poder”
Disse o jornalista e cartunista Millôr Fernandes que o Brasil tem um enorme passado pela frente. De fato, só depois de 26 anos do fim da ditadura, o país começou a elaborar o seu último período autoritário, por meio da Comissão Nacional da Verdade, iniciativa que ganhou vida no governo da então presidente Dilma Rousseff.
O revisionismo histórico como arma política mostrou a sua real dimensão com a eleição de um defensor da tortura para ocupar a presidência da República, em 2018. É por isso que, 44 anos após a Lei da Anistia, ainda precisamos falar sobre a ditadura militar.
A urgência é óbvia, na hora em que correm processos para responsabilizar os participantes da intentona golpista de 8 de janeiro de 2023. Mais uma vez, a nação deve encarar as consequências da opção de não enfrentar, na esfera jurídica, os crimes cometidos pelo regime militar. Nessa omissão histórica encontra-se um motivo pelo qual as Forças Armadas continuam a pairar como uma sombra agourenta sobre a vida política nacional. Alguém disse “poder moderador”?
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